Em muitas culturas e em outros tempos, o silêncio tinha (tem) aspectos altamente positivos. Em nossa recente cultura urbana, no entanto, optou-se por enfrentar o silêncio contínuo que existe lá fora, a nossa espreita. E a melhor maneira de “domesticá-lo” seria dividi-lo em alguns tipos específicos. Do mesmo modo como os esquimós conseguem enxergar dezenas de tipos de neve em seu mundo branco e gelado, é crível supor que se possa perceber também várias formas de silêncio.
O silêncio pode ser visto como uma ausência de significado, embora por vezes carregado de algum sentido. Ele é mais bem percebido quando se limita com aquilo que não é silêncio. Em alguns casos, o silêncio dentro da linguagem pode ser um signo (que adquire valor em função de suas diferenças para com os demais signos), com significado e tratado como elemento da própria comunicação – um intervalo entre signos e textos, de modo a preparar os limites da expressão. Imaginem se não houvesse um espaço (silêncio) entre as palavras ditas ou escritas!
Porém, existem “outros” silêncios que adquirem importância em função de sua utilidade como limite do sentido. Há também o silêncio absoluto, que habita além de nossa percepção mais profunda – o silêncio da ausência, daquilo que ainda não é, e daquilo que deixou de ser.
É o silêncio daquilo que ainda não está ao alcance da linguagem – o porvir.
É o silêncio que nem mesmo a linguagem pode definir – o inefável.
É o silêncio que era antes e continua sendo depois, e que pode eventualmente ser definido de maneira negativa, ou seja, catalogando-se tudo aquilo que ele não é. Como o silêncio mais profundo é inominável, o único modo de se aproximar de seu entendimento é tatear os limites além dos quais têm início os seus domínios.
Todo esforço para falar desse silêncio inefável requer a construção de um farol intelectivo próximo à fronteira da significação, além da qual ele reina soberano. Mas acaba sendo um farol enguiçado, que ilumina apenas a borda de nossa percepção, porque é impotente para vencer a névoa densa que se forma além dos limites da linguagem, e que desce sobre o signo fronteiriço, obscurecendo o seu sentido mais denotado.
O ato de significar é o de gerar unidades de sentido para incorporá-las a um tecido (texto) de signos; é um ato de discriminar, distinguir e, por exclusão, de afastar o silêncio da homogeneidade para longe de nós. Quando separamos do imenso continuum algumas percepções e a estas oferecemos um sentido e um significado, depositamos o conteúdo dessas experiências em um texto. Assim, a linguagem estabiliza o movimento do sentido, evitando sua flutuação na indistinção do continuum, criando um limite além do qual o silêncio nos espreita.
Embora o silêncio seja apenas um, da mesma forma como discriminamos os signos para sedimentar o sentido, também devemos categorizar o silêncio para melhor compreender sua ubiquidade.
a) Um de seus tipos mais comuns é o “silêncio intersticial”, que habita os intervalos entre as palavras, entre os signos não-verbais, e funciona como uma espécie de fôlego entre uma semiose e outra. Este tipo de silêncio detém significado, embora negativo. Sua principal função é encadear os signos de um texto pelo eixo sintagmático (associação) e pelo eixo paradigmático (escolha). O silêncio intersticial é um resquício do tempo em que ainda não havia linguagem para significar o mundo humano.
b) Há também o silêncio proveniente do “silenciamento”, inclusive como relata Michel Foucault, em seu livro A História da Sexualidade. Embora dotado de significado, este tipo de silêncio também detém um aspecto negativo, porque ele reprime a expressão daquilo que detinha (detém) sentido, gerando silêncio por meio do esquecimento proposital (uma espécie de anti-semiose intencional). Trata-se do silêncio imposto pela censura de qualquer ordem, tal como a sexual, política, moral, religiosa etc.
c) Pode-se inferir a respeito do silêncio como incompletude ou deficiência da linguagem, em que todo o dizer mantém uma relação fundamental como o não-dizer. Ou seja, trata-se do silêncio wittgensteiniano: “…sobre aquilo que não se pode falar, deve-se permanecer em silêncio” (WITTGENSTEIN, 1995). Este tipo de silêncio sempre atormentou inúmeros filósofos ao longo da história, porque ele aponta, de certa forma, para a incompetência da linguagem em substituir completamente o mundo real, deixando por todos os lados pelos quais se observa, lacunas de sentido e significado. Para Wittgenstein, com relação à capacidade limitada do homem em semiotizar o mundo, dever-se-ia recorrer ao silêncio obsequioso pelo reconhecimento de nossa ignorância.
d) Existe o “silêncio estético”, proveniente da percepção auferida pelos sinais estéticos que, embora não significando nada de lógico-representativo (a exemplo da linguagem verbal), transmite tão-somente uma sensação, um afeto, que por ser subjetivo, depende exclusivamente do receptor. Isto é, não tendo função codificada e representativa, subsiste como uma forma particular de silêncio.
e) e há o “silêncio ultramontano”, que habita além do horizonte, como iminência do sentido, que aponta para fora da linguagem (ORLANDI, p. 11-29, 1997). Este é o silêncio do porvir, que depende do esforço humano para alcançá-lo, nas formas da ciência, das artes, da cultura como um todo. Porém, toda vez que chegamos perto de seus domínios e avançamos o pé um pouco adentro de suas fronteiras, ele se afasta ainda mais, tornando nosso esforço um constante caminhar rumo à expansão das fronteiras do conhecimento. Este é o silêncio extra-semiótico, que está além de nosso entendimento.
Quem é aquele que pergunta pelo silêncio? – apesar de manter-se prisioneiro da mediação entre o signo e o real, o ser humano é um híbrido: ele mesmo é um signo (PEIRCE, p. 306, 2003), assim como também é seu próprio objeto e intérprete. Embora seu corpo pertença à realidade imediata, parte considerável de sua mente está apartada desta realidade, por conta da mediação imposta pelos sentidos físicos e signos interpretantes. O ser humano, portanto, talvez seja o único objeto que vive em busca de um sentido.
Como um objeto animado, constituído de capacidade de comunicação e, portanto, dependente da linguagem para manifestar-se no mundo, o ser humano busca evoluir seus instrumentos de interferência do sensível, enquanto avança sempre rumo ao inominável. Talvez aí resida a irresistível gana pelo desconhecido, a fome incontrolável pela superação das fronteiras, mesmo porque elas habitam o seu próprio íntimo.
Quanto mais faróis se instalam nas fronteiras com o inominável – exercício feito pelas ciências, pelas artes e pela cultura em geral –, quanto mais o ser humano vence a densa névoa que oculta o sentido formado logo à frente, tanto mais temos a inexata impressão de que o silêncio se avoluma diante de nós, talvez porque ao ampliar o contato com suas fronteiras, percebemos o quão incomensurável pode ser o tamanho que ele assume perante do homem.
Nestes primeiros anos do século XXI parece haver um refluxo da antiga paixão pelo desconhecido, uma certa fadiga de material causada pelas frustradas tentativas de se abarcar o silêncio, na forma de utopias esgarçadas, prognósticos falidos, profecias não cumpridas e revoluções esvaziadas. Hoje, o homem ocidental prefere encaixotar a angústia provocada pelo silêncio, por meio de sua linguagem (controlar o silêncio), utilizando-a como um anti-silêncio ofuscante e ensurdecedor. E assim, exausto da árdua missão civilizatória de iluminar a escuridão imposta pelo silêncio, o homem resolve agora chafurdar em meio aos berros lancinantes da mensagem ininterrupta – o mundo como um permanente e alucinante videoclipe intersemiótico. Agora, ao desconfiar da ideia do novo como algo sacado ao silêncio, o homem contemporâneo apenas recicla velhos textos e requenta seu repertório simbólico com os mesmos discursos redundantes, mas seguros e destituídos de surpresas amargas.
A ressaca como conceito filosófico – apesar de querermos negar a presença constante e insidiosa do silêncio entre nós, ele insiste em avançar sobre nossos sentidos (em duplo sentido), especialmente quando nosso estado de crença (Peirce, mais uma vez) parece caminhar rumo a dúvidas atrozes. Se agora o silêncio se apresenta como uma placa enferrujada à beira da estrada que recusamos trilhar, não quer dizer que o silêncio foi vencido pela força do abandono. Mais dia, menos dia, o ser humano deverá empreender novamente sua viagem rumo ao silêncio. Depois do porre da linguagem inesgotável e onipresente ,se abrirá diante dos humanos a nova trilha em direção ao silêncio.
Nossos ancestrais hominídeos moldaram o caráter da espécie Homo sapiens, espalhando-se pelo mundo afora, enfrentando o desconhecido (silêncio) e vencendo as barreiras mais inóspitas, imprimindo indelevelmente essas marcas genéticas no DNA humano, que hoje impulsionam o homem a ir sempre mais adiante, em busca do sentido do mundo.
Após a embriaguês da linguagem videoclipada, mais brevemente do que pensamos, há de retornar ao íntimo do humano outras perguntas a respeito do além-fronteiras, a respeito do silêncio que habita as terras exóticas que são avistadas ao longe, como um pálido vislumbre que se reflete ao contato com o farol da ciência, da arte, da filosofia, da cultura.
O que é preciso fazer, trata-se de livrar o silêncio do significado negativo e alienante que lhe foi impingido pela estrepitosa gritaria contemporânea. As “nets” arrastam-nos como peixes em redes, para um só lugar – uma ágora indistinta e superpovoada de signos em múltiplas conotações por segundo. Aí, nos embriagam os sentidos com metralhas de significados em alta velocidade, que anulam qualquer possibilidade de atuação do silêncio intersticial. Com essa produção ininterrupta de mensagens redundantes, provocam o silenciamento a respeito de temas que deveriam ser comunicados, mas que emudecem sob o entorpecimento dos tímpanos, por conta dos milhões de decibéis e zilhões de fótons que queimam nossas retinas.
Para que não tenhamos consciência daquilo que não podemos saber, este século tonitruante nos grita mensagens anulando o silêncio wittgensteiniano. Nem nos permitem considerar positiva a experiência do silêncio estético, até porque é preciso evitar que descubramos nossa condição de alienados. E isso tudo tem por motivo exaurir nossas forças para caminhar rumo ao desconhecido, ao novo, em busca do silêncio ultramontano.
Mais cedo ou mais tarde, porém, vamos acordar numa fria manhã, com um gosto amargo na boca, para nos dar conta de que dormimos sobre a colcha da história, vestidos com a fantasia do videoclipe contemporâneo. E ali, em meio ao silêncio, começaremos a curtir nossa ressaca filosófica.
Bibliografia
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio. Editora da Unicamp, Campinas, 1997.
PEIRCE, C.S. Semiótica, Editora Perspectiva, São Paulo, 2003.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo, EDUSP, 1995.