Quando nasci em 1959, meu pai tinha 50 anos. Ser filho de pai velho, no entanto, acrescenta algumas variantes em nossas personalidades, transformando-nos em pessoas um pouco diferentes. Contaram-me, certa vez, que quando eu era ainda um bebê e não parava de chorar por algum motivo, meu pai me enrolava em uma manta e me deitava no tapete da sala, sob a radiola. Ligava o aparelho e esperava as válvulas se aquecerem. Logo depois, sacava de sua coleção um pesado disco de vinil, regulava para 48 ou 33 rotações por minuto e colocava a agulha no começo daquela bolacha preta, que já estava girando na velocidade adequada – eu dormia melhor ao som dos tangos. Naquele tempo era assim mesmo. Especialmente em Santo Antônio da Platina, cidadezinha do norte do Paraná, próxima da fronteira com São Paulo.
Eu cresci ouvindo, reconhecendo e, depois, cantando no chuveiro todos os principais tangos, decorando as letras e os nomes de alguns compositores, como Gardel, Discepolo, Cadícamo. Le Pera, amigo de Gardel e seu parceiro em tangos como Mi Buenos Aires Querido, Melodia de Arrabal, Por Una Cabeza, na verdade se chamava Alfredo Pereira, um brasileiro natural de São Paulo, que mudou-se para Buenos Aires no começo do século XX, transformando-se num dos maiores compositores do gênero, até sua morte, juntamente com Gardel, no famoso desastre aéreo em 1935, em Medellin, Colômbia.
Anos depois, já na faculdade, ousei comentar com um aluno argentino, sobre sua herança cultural, que o mundo todo já havia cantado. Mas ele, talvez porque à época do golpe militar na Argentina, estava bronqueado com seu país, me devolveu a gentileza com um ríspido argumento (típico?): “Tango é coisa de corno. Só se fala de traição, abandono, amor não correspondido e nostalgia. É muito passional”. – disse aquilo e calou-se sobre o assunto.
Ora, pensei comigo tempos depois, quais seriam os ingredientes da paixão, senão fossem a traição, o abandono, o amor não correspondido e a nostalgia (saudade)? Mas, naquela época nós não confiávamos em quem tinha mais de trinta anos, portanto, deixei o tango de lado por algum tempo. Recentemente, depois da chegada do pós-modernismo e do retorno do brega-chique, a patrulha ideológica da inteligenztia arrefeceu. O preconceito estético contra o tango foi se esvaindo, deixando revelar a superioridade de seus arranjos, os acordes impossíveis do bandoneón, o ritmo carregado, bem definido. Redescobriram a universalidade do tango, agora elevado ao mesmo patamar do blues, jazz e bossa nova. E as letras? Bem, as letras… são de tango. O blues é um lamento caipira de negros americanos, mas em inglês parece vip. Brega somos nós, latinos, quando expomos impudicamente nossa cultura por aí afora, ao invés de nos alinharmos à estética dominante.
Em tempos de Mercosul, basta conhecer um pouco de espanhol para se compreender a maior parte das histórias que são narradas pelos tangos. Mas não é só espanhol, há o lunfardo, um dialeto portenho do começo do século XX, falado pelos malandros dos arrabaldes e pela prostituição no cais, especialmente para fugir ao controle social e da polícia. Todo aquele linguajar buscava nominar coisas, personagens, ações, que eram do cotidiano da malandragem, como a palavra malevo/maleva que significava, ao mesmo tempo: malandro, malicioso, esperto, vivaldino. O lunfardo está muito presente em alguns dos tangos mais famosos, como no Mano a Mano (Gardel – Flores – Razzano). Em determinada parte da música, a letra segue assim: …Se dio el juego de remanye,/quando vos, pobre percanta,/gambeteabas la pobreza/ en la casa de pensión/… O termo “percanta” é lunfardo e significava “per quanto”, expressão originalmente italiana, que fazia parte da pergunta a uma prostituta. Por quanto ela faria o serviço. A história se resume ao caso de um gigolô que perde sua amante para um ricaço. Como se vê, não é só no Brasil que os gigolôs se apaixonam.
A Media Luz (Lenzi – Donato) é outro tango famoso, que descreve o interior de dois prostíbulos, um deles na Calle Corrientes, 348, segundo andar, sem porteiro nem vizinho. Certamente um antigo e imenso apartamento, chique, com piso de madeira instalado por Maple, como diz a letra.
O tango quase sempre evoca uma época passada, onde tudo parece mais vívido, mais apaixonante, querendo dizer que a virtude e o amor só eram verdadeiros naquele passado mítico. A letra de Volver (Gardel – Le Pera) é bastante reveladora dessa “utopia pelo avesso”, quando descreve o retorno de um homem a um endereço de sua juventude, envergonhado de seus cabelos brancos e suas rugas pela face, mas com a remota esperança de encontrar sua amada, que ele abandonara no passado. Cuesta Abajo (Gardel – Le Pera) também é um clássico do abandono. Sua história é mais ou menos assim: “Se arrastei por esse mundo/ a vergonha de haver sido/ e a dor de já não ser,/sob a aba do chapéu/quantas vezes empoçada/uma lágrima assomada/eu não pude conter./Se cruzei pelos os caminhos/como um pária a quem o destino/ se empenhou em destruir,/se fui frouxo, se fui cego,/ só quero que compreendam/ o valor que representa a coragem de querer…”.
Seria possível discorrer por toda a literatura de folhetim dos tangos, sem desviar daqueles ingredientes catalogados pelo estudante argentino (traição, abandono, amor não correspondido e saudade). O tango também é especial, por se tratar de uma música com endereço. Não é possível pensar o tango sem Buenos Aires, seus caminitos, seus bairros populares, da primeira metade do século XX.
As imagens da Buenos Aires dos tangos são tão impressionantes, que ainda me fazem evitar uma visita à real Buenos Aires. Minha recusa de ir a Buenos Aires, especialmente agora quando os pacotes turísticos estão bem mais acessíveis, representa uma heresia imperdoável para um amante do tango. Mas talvez compreensível. Pois tal como os tangos, que mitificam o passado glorioso daquela cidade, ao mesmo tempo que cantam sua impossibilidade, ir à verdadeira Buenos Aires pode quebrar um encanto que ainda acalento, quando oigo la queja de un bandoneón, [e] dentro del pecho pide rienda el corazón. (Mi Buenos Aires Querido [Gardel – Le Pera]).