Lembro-me com ar de cansaço dos Manuais de Psiquiatria que carregávamos na Faculdade de Psicologia: CID-10 e DSM-IV. Hoje já virou DSM-V, afinal sempre surgem diagnósticos para serem encaixados em comportamentos que consideramos disfuncionais. Lá pelas tantas páginas dos Manuais, nos deparávamos com os “Transtornos de Identidade Sexual” ou “Disforia de Gênero”, entre os quais estava registrado o “Transexualismo”(assim mesmo, com “ismo”). Nada mais velho que chamar de doenças as sexualidades e identidades de gênero não tradicionais, como forma de controle social sobre o sexo, já diria Foucault. Ele diria, aliás: “psiquiatrização do prazer perverso”, designando justamente essa narrativa de acusar de patológica a “sexualidade que se desvia”.
Anos se passaram até que a Medicina reconhecesse o que já era vivido nas ruas, nas casas, nas políticas e até mesmo nas ciências humanas, as primas pobres das hard sciences. Anos, até que a Organização Mundial de Saúde resolveu assumir seu atraso, que denotava mentalidade colonialista – aquela típica de quem controla o saber sobre um tema. Assim como foi com a homossexualidade na década de 1990, a transexualidade, enfim, acaba de sair do capítulo psiquiátrico na Classificação Internacional das Doenças Mentais, passando às folhas de cuidado geral à saúde, reconhecendo-se que o estigma social pode trazer – e frequentemente traz – sofrimentos que requerem atenção de saúde.
A ação da OMS não é apenas simbólica. Interfere em políticas públicas, impacta nas prioridades de atendimento à população LGBT, além, é claro, de mudar paradigmas. A língua e as instituições sustentam o status das coisas. Por isso, uma mudança como essa representa um passo significativo para o tema mundialmente. A despeito da confusão ainda vigente entre transexualidade, transgeneridade, homossexualidade, cisgeneridade, travestismo, o que fica na essência é que é preciso eliminar qualquer forma de pensamento que desqualifica maneiras pacíficas e legítimas de vivenciar gênero e sexualidade.
E não por acaso chegamos ao momento brasileiro em que o STF se posicionou sobre a criminalização da LGBTfobia. É preciso não se iludir. As ações recentes da OMS, do Senado (que também correu para mostrar serviço) e do STF só ocorreram porque a contingência mundial e nacional mudou. Essas mesmas instituições que agora se apressaram para fazer sua tarefa pública são as que atravancaram o debate por mais de uma década, já que no Brasil desde 2001 há projetos apresentados na Câmara para criminalizar a homotransfobia e só agora, 18 anos depois, é que se assume publicamente a gravidade do tema. Mesmo tendo eleito um presidente que foi condenado a pagar multa por declarações homofóbicas, o contexto mundial de informações, a militância política, a pressão social das redes, tudo leva-nos a um momento que não tolera mais omissões institucionais acerca de um tema que fere a dignidade e envolve violência.
Enquanto as instituições de poder não oficializam que as narrativas discriminatórias contra LGBTs são criminosas porque promovem violência, sofrimento, exclusão e invisibilização, quem pratica homofobia tem sua visão de mundo e suas práticas protegidas. Um Estado que não se pronuncia formalmente sobre a homofobia e os crimes de ódio é um Estado que tem sangue nas mãos, conivente e cúmplice de cada morte que ocorre por ataque homo e transfóbico. A história está recheada de exemplos de Estados omissos, coniventes ou promotores de práticas discriminatórias e violentas, desde o nazismo alemão, passando pela política de segregação racial ocorrida nos EUA e na África do Sul, até o extermínio de povos nativos para fins de colonização das terras. Assim seguirá sendo sempre que o Estado e as demais instituições de poder (ciência, religião, entidades de classe, empresas…) se omitirem ou confirmarem legitimidade a quem ofende, subjuga e mata.
Enfim, antes tarde do que nunca.
Clarissa De Franco é psicóloga, servidora da Universidade Federal do ABC, Doutora em Ciência das Religiões, com Pós-Doutorado em Estudos de Gênero.