Porque a Retórica?
Há mais de cem anos, estamos acostumados a definir a Retórica como uma técnica discursiva utilizada para enganar e ludibriar as pessoas. Essa má fama, segundo a lenda, deve-se à crítica feita pelos românticos, desde fins do século XVIII, aos recursos discursivos da Retórica, empregados para fazer mentiras e falsidades passarem por verdades sólidas e objetivas.
Mas, o tempo dos românticos passou e chegou a hora de revermos essa má fama da Retórica e, se possível, devolver a ela sua importância no âmbito da comunicação humana. Desse modo, precisamos, novamente, definir a Retórica como uma técnica discursiva, um instrumento de comunicação que pode ser usado tanto para o bem, quanto para o mal – a depender do juízo de quem critica. O fato é que a comunicação humana não pode prescindir da Retórica, que é praticada todos os dias, entre todos os interlocutores, mesmo sem o saber. Em vista disso, seguem adiante informações elementares sobre a Retórica, que julgamos pertinentes e de interesse comum.
Origens da Retórica
- A palavra Retórica é originária do grego clássico rhetoriké, e significa “arte retórica” ou a arte do rhector, palavra grega que significa “orador”. Basicamente é entendida como a técnica discursiva que permite a expressão eloquente e persuasiva de um orador.
- O nascimento da Retórica no século V a.C., entre os gregos clássicos, resultou do aperfeiçoamento de técnicas discursivas que visavam disputas públicas por direitos de terras e outras questões políticas. Evoluiu para uma verdadeira arte que os oradores, advogados de causas e líderes políticos, utilizavam para defender seus pontos de vistas, teses e argumentos, junto às assembleias de cidadãos, nas cidades-Estado gregas. A Retórica desenvolveu-se plenamente, no entanto, após a consolidação da democracia ateniense. Todos os cidadãos atenienses participavam diretamente nas assembleias populares, que possuíam funções legislativas, executivas e judiciárias. Portanto, o exercício da função política dependia da habilidade em raciocinar, falar e argumentar corretamente perante os demais cidadãos.
- Havia já entre os gregos clássicos, aqueles que condenavam as técnicas retóricas por entenderem que tais habilidades podiam ser utilizadas para o mal. Isto é, um orador mal-intencionado poderia conduzir os cidadãos a um julgamento errôneo (demagogo), só por conta de suas habilidades de eloquência e persuasão. Um dos mais famosos adversários da Retórica foi Platão. Em dois de seus “diálogos”, Górgias e Protágoras, Platão denuncia a manipulação desenfreada e imoral das técnicas retóricas com o intuito de subverter a verdade. No Górgias, introduziu a noção de crença (doxa) e de saber (episteme), referindo-se à Retórica como criadora de crença, a partir da persuasão e eloquência, mas nunca do saber, baseado somente na verdade. A lógica formal, desenvolvida a partir da primeira filosofia, vai então preocupar-se com a “verdade”, independentemente da adesão pela crença. Do ponto de vista da ciência e da filosofia, a busca pela verdade (independentemente da adesão pela crença) é importante e fundamental. Mas, no restante das relações humanas, colocar uma “verdade” acima e além da adesão dos demais torna-se um claro convite ao autoritarismo, à escravidão dos fracos perante os fortes que detêm a “verdade”.
- Aluno de Platão, na Academia, Aristóteles (384-322 a. C.) escreve por volta do ano 332 a C. seu tratado, denominado Arte Retórica, considerado desde que surgiu uma obra fundamental sobre Retórica, apesar de inúmeros estudiosos terem acrescentado desenvolvimentos posteriores de grande valia. (BARILLI, 1987).
Segundo Aristóteles, a Retórica…
a) É a contraparte da Dialética. Enquanto a Dialética se preocupa com a busca pela verdade, seja no campo científico ou filosófico, a Retórica está voltada para a eleição do que é preferível para uma assembleia, mesmo que por vezes a preferência não recaia sobre a causa verdadeira.
b) E a Dialética são instrumentos de análise dos mesmos objetos de estudo. As duas técnicas são utilizadas para fornecer argumentos.
c) É tão universal quanto a Dialética. E sua função não é apenas persuadir, mas inventar os meios pelos quais se pode alcançar a persuasão em qualquer caso particular. Nisso, a Retórica se parece com outras artes (técnicas), como por exemplo: não é função da Medicina curar uma pessoa, mas colocá-la em estado de bem-estar, porque é possível oferecer excelente tratamento mesmo para aqueles que nunca mais terão saúde.
d) É útil porque as coisas que são verdadeiras e justas têm uma tendência natural de serem aceitas ao invés de suas oponentes. Assim, se a decisão das assembleias não é aquela que deveria ser, a derrota deve ser imputada ao defensor das causas. Além disso, diante de algumas audiências, nem mesmo a posse da melhor sabedoria pode facilitar a convicção. Porque argumentos baseados em sabedoria implicam uma audiência instruída. Aqui, no entanto, devemos utilizar os modos de persuasão e argumentos construídos das mesmas noções que todos partilham.
e) Pode ser definida como a faculdade de observar em qualquer caso os meios disponíveis para persuadir. Isto não é função de qualquer outra técnica ou arte. Qualquer outra arte pode persuadir através de seu objeto, tal como a Medicina, que persuade pela possibilidade de trazer a cura; a matemática pelos números, a filosofia pelas ideias. Mas, somente a Retórica visa o conhecimento dos meios e modos de persuadir.
f) Transforma o interlocutor em um juiz a quem precisamos persuadir. (Aristóteles)
Premissas básicas da Retórica:
a) A Retórica exerce a persuasão por meio do discurso, nunca recorre a violência, pois tenta ganhar a adesão de um auditório.
b) A preocupação da Retórica é com a adesão a um assunto, e não o fato desse assunto conter a verdade. A verdade é preocupação da Dialética, que segundo Aristóteles, é a contraparte da Retórica.
c) A Retórica se utiliza de linguagem cotidiana, evitando linguajar técnico ou desconhecido de sua audiência.
d) A Retórica se propõe a modificar não apenas as convicções, como também as atitudes. Portanto, as técnicas retóricas a modificar o comportamento através da persuasão e da co-moção. (BARILLI, 1987)
Esplendor e miséria da Retórica
- A democracia é a condição indispensável para o florescimento da eloquência; reciprocamente, a eloquência é a qualidade superior do indivíduo que pertence a uma democracia – nenhum dos dois pode existir sem o outro.
- A eloquência vai conhecer seu declínio gerado por uma mudança histórica: o declínio da liberdade, o deslocamento da democracia em favor de um Estado forte, um império, uma ditadura. Com o desaparecimento da democracia, a eloquência perde seu sentido e utilidade, pois não é mais o povo em assembleia que delibera e julga os argumentos dos oradores. Quem tenta cercear a Retórica alheia, teme a crítica, porque detém caráter autoritário. Em seu Diálogo dos Oradores, de Tácito, há uma frase de abertura que diz: “Os séculos anteriores trouxeram uma proliferação abundante de oradores célebres, cujo talento é famoso, ao passo que nossa era, ela própria estéril e privada dessa glória oratória, quase esqueceu até mesmo o termo orador”.
- Em impérios onde o governo já é liderado “pelo mais sábio dos homens”, pelo “guia genial”, pelo “defensor perpétuo”, pelo “pai da pátria”, não há necessidade de oradores, nem de argumentos ou eloquência, assim como não há necessidade de um médico entre os saudáveis.
- Os séculos se passaram e a Retórica foi sendo confundida apenas como uma técnica de ornamentação das palavras, próxima da afetação e da vaidade. Torceram o sentido da palavra “ornamento”, para algo acessório, fútil, quando na origem, ornatio, ornare (do latim) significa equipamento, instrumentação. Os romanos “ornavam” seus exércitos com espadas, escudos, lanças, capacetes etc. Trata-se de uma metáfora para o equipamento necessário ao discurso, no sentido de alcançar a eloquência e a persuasão próprias do convencimento de uma audiência de jurados, as assembleias.
- Apesar de toda oposição à Retórica, Santo Agostinho viria a fazer sua maior e mais antiga defesa, quando escreveu em seu livro A Doutrina Cristã:
Quem ousaria, portanto, dizer que a verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados? Como? Esses oradores que se esforçam em defender o que é falso conseguiriam desde seu exórdio tornar receptível e dócil o público ouvinte, e os defensores da verdade, ao contrário, não saberiam fazê-lo (…) Uma vez que, portanto, a arte da palavra tem um duplo efeito, uma vez que ela possui um poder muito grande de persuadir seja para o mal, seja para o bem, por que motivos as pessoas honestas não envidariam seus esforços em adquiri-la, a fim de se por a serviço da verdade, no momento em que os maus a põem a serviço da injustiça e do erro, para o triunfo das causas perversas e mentirosas? (TODOROV, 1996)
A nova Retórica
a) Semelhante a uma semente em estado de latência, a Retórica aguardou por muitos séculos o ambiente propício para seu ressurgimento. Foram necessários desenvolvimentos históricos recentes, como a democracia representativa e a emergência dos meios tecnológicos de comunicação de massa, para que a importância de seu instrumental teórico voltasse a interessar o meio acadêmico.
b) Somente em meados do século XX, devido a importância dada à Filosofia da Linguagem, os estudiosos voltaram a considerar a Retórica como objeto digno de estudo. Em 1958, Chaïm Perelman, professor da Universidade Livre de Bruxelas, publica um livro que vai representar o renascimento contemporâneo da Retórica: Traitè de l’argumentation. La nouvelle Rhétorique (PERELMAN, 1999). Seu livro abre dizendo-se em ruptura com a concepção de razão e raciocínio saídos do pensamento cartesiano. Era uma premonição do que viria a ocorrer nas décadas seguintes, com relação à crítica pós-moderna da razão.
c) O campo de eleição da Retórica é o diferendo. Ao contrário do espírito cartesiano, que visa o critério universal, fora do qual tudo é erro. Perelman reclama a tradição antiga, que remonta ao Aristóteles, da Retórica, como também da Dialética, como artes de razoar, a partir de opiniões geralmente aceitas, detidas por um conjunto de indivíduos que a Retórica constitui em auditório.
d) O Auditório – enquanto que para a lógica formal as provas utilizadas são impessoais, devendo ser aceitas universalmente, para o discurso retórico é vital a relação entre o orador e o auditório a que se dirige. Segundo Perelman, o auditório é “todo o conjunto daqueles que o orador deseja influenciar mediante seu discurso”. A influência pela argumentação não é mais do que fazer uso público da razão. A noção de auditório passa pela de reconhecimento de outro, o que implica uma renúncia à violência. As técnicas retóricas visam à persuasão que, por sua vez, é sempre precária, porque está ligada à doxa (crença). Por isso, a ação discursiva visa obter um resultado no âmbito de uma troca relacional. E o estado de crença, como Charles Peirce também registrou, se faz necessário para que possamos nos relacionar uns com os outros e com o mundo em nossa volta.
e) Neste princípio de século XXI, a Retórica parece ter retornado para ficar entre nós, definitivamente, embora as razões para isso não estejam propriamente nela mesma. Como a democracia, os direitos humanos, a liberdade individual e de associação juntaram-se aos meios tecnológicos de comunicação para formar uma sociedade em que a vontade e a deliberação da maioria tornaram-se um credo universal, o espaço de atuação no palco da história volta a ser ocupado pela Retórica. Embora não seja mais aquela Retórica clássica organizada por Aristóteles e outros pensadores, tais como Cícero e Quintiliano, a Retórica contemporânea dialoga com as diversas filosofias da linguagem, com a semiótica e as teorias da comunicação, retomando seu lugar de direito entre os saberes da academia. Assim, também, a Retórica empresta seus instrumentos e mecanismos para a publicidade, para o jornalismo e seus sucedâneos, com vistas a melhorar o diálogo entre as pessoas, entre emissores e receptores, cada um desses representando seus papeis sociais em busca de interesses próprios e coletivos.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Arte Retórica. Editora Tecnoprint, Rio de Janeiro, s/d.
BARILLI, Renato. Retórica. Editorial Presença, Lisboa, 1987.
MANOSSO, Radamés. Elementos de Retórica. http://www.radames.manosso.nom.br/retorica/monografia.htm, acessado em 23 de abril de 2004.
- PERELMAN, Chaïm. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Editora Martins Fontes, São Paulo, 1999.
TODOROV, Tzvetan. Teorias do Símbolo. Papirus Editora, Campinas, 1996.