DIREITO X PROTEÇÃO: FIXAÇÃO DE ALIMENTOS PARA VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Entre direito e justiça os caminhos nem sempre são lineares. Ainda mais quando relacionamos com violência doméstico-familiar e envolvimento do tema da fixação de alimentos para as vítimas, em especial as mulheres.

Angela Virgínia Brito Ximenes e Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti (Núcleo de Estudos sobre Direitos Humanos – NEDH/UCSAL)

Entre direito e justiça os caminhos nem sempre são lineares. Ainda mais quando relacionamos com violência doméstico-familiar e envolvimento do tema da fixação de alimentos para as vítimas, em especial as mulheres.
A violência contra mulheres (VCM) constitui-se em quaisquer atos de violência com base nas lentes de gênero, os quais venham resultar em danos sexual, físico ou psicológico, que acarrete dor e sofrimento em âmbito doméstico e familiar (AMARAL, 2013). Ainda que essa violência esteja velada em ameaças, coerção ou privação seja em âmbito privado ou público. A VCM também pode ser intitulada como violência doméstica (VD) ou de gênero (VG). Esse fenômeno advém de extensa complexidade e acomete meninas e mulheres no mundo inteiro, provêm desta forma, de fatores sociais, políticos, biológicos e econômicos.
Conforme Cavalcanti (2018), a VCM pode apresentar naturezas, motivações e padrões diferenciados, mas o que pode acontecer é que, em muitos casos, se verifica como uma sobreposição de violências. Por isso, é importante debater exaustivamente as várias nuances da violência contra mulheres para facilitar a compreensão da complexidade do fenômeno.

Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/05/14/lei-que-facilita-emissao-de-medidas-protetivas-e-aprovada-saiba-o-que-muda.htm

Inúmeras violências, ainda, podem ser desveladas, especialmente as relacionadas aos abusos sexuais – estupro, saúde sexual e reprodutiva, laboral, intelectual, psicológica, política, institucional e religiosa. Essas modelagens, para a delegada Eugência Villa (2018), “encapam” formas diferenciadas de violência, impedem a visão de suas peculiaridades e dificultam, portanto, o enfrentamento. Mesmo tipificadas, em ordenamento nacional, através da Lei Maria da Penha (LMP, 2006), as dinâmicas sociais e o processo de conscientização e busca de acesso à justiça e à cidadania marcam, ademais, urgências na abordagem, na organização e implementação de políticas públicas (com destaque especial ao sistema de justiça), garantias e proteção às vítimas (lembrando que a violência doméstico-familiar atinge não só à conjugalidade/intimidade, mas também ascendentes e descendentes).
Em que pese ter a violência de gênero revelado, finalmente, a ausência de uma dicotomia entre público e o privado, suas tipologias multifacetadas, e denunciado uma dinâmica social histórica perversa ao longo dos anos. No presente artigo, discute-se, especificamente, para a violência patrimonial e a medida protetiva de Pensão Alimentícia prevista na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Desta forma, a estratégia é a de ressaltar que o caráter combativo e preventivo da Lei Maria da Penha, coadunando com agenda internacional advinda desde 1975, com a conferência do México e com reforços, em 1994 em Belém do Pará e, com a CEDAW (Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – Assembleia Geral das Nações Unidas – AGNU), aprovada em 1979, precisa transcender ao emolduramento normativo brasileiro.

Apesar de todo o avanço em relação às normas, a violência e os abusos sexuais, além dos maus–tratos e da pressão psicológica, ainda se configuram como instrumentos que confirmam uma visão das mulheres-objetos e não sujeitos (CAVALCANTI, 2018, p. 107).

Nesse processo de último quartel de século, praticamente as respostas e as ações consubstanciaram-se a partir de diretrizes do direito e pactos internacionais, especialmente no âmbito dos Direitos Humanos. A Lei Maria da Penha possibilitou a visualização mais ampla dos diversos tipos de VCM (violência física, moral, patrimonial, psicológica e sexual) e em seu artigo 7º, o inciso IV foi bem específico no conceito da violência patrimonial:

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

[…]

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica.

a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b) ocorrida na comunidade e comedida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (BRASIL, 1996).

Fonte: https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=39627

O problema da VCM, em contexto nacional, é desafiador e nos obriga a observá-lo sob a perspectiva da integralidade com os diversos entes federativos e a sociedade civil. Segundo Suely Amarante (2019), o país apresenta altos índices de violência contra às mulheres. Em 2017, foram registrados 4.473 homicídios dolosos de mulheres (um aumento de 6,5% em relação a 2016). Muitas violências que ocorrem nos lares sequer são notificadas. Segundo o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, o número de estupros no Brasil cresceu 8,4% de 2016 a 2017, passando de 54.968 para 60.018 casos registrados. Isso significa que ocorreram cerca de seis estupros de uma mulher brasileira a cada dia. Os dados são alarmantes e demonstram um problema social, de acesso à justiça e à cidadania, bem como ação desenhada – pelo menos com maior frequência e marcos legais-institucionais – nas últimas duas décadas de agenda política brasileira. A ideia de que a violência possui um caráter interdisciplinar, conforme abordado por Amaral (2013), permite compreender as razões pelas quais tantas mulheres ainda convivem sob os abusos da violência familiar. A falta de autonomia financeira mínima, por exemplo, parece influenciar na decisão das vítimas, para que, assim, elas sigam nos relacionamentos com seus agressores, isto é, inviabilizando-as de romper o ciclo de violência e sofrimento.

De acordo com Mansur citada por Claire (2018), a eficácia da referida lei precisa ir além do que foi pretendido, inicialmente, quando se sabe que muitas mulheres violentadas vivem atreladas à dependência econômica imposta pelos seus companheiros autores, o que dificulta as ações de libertação face ao domínio masculino. Destarte, a “violência patrimonial”, também, está disposta na referida lei – artigo 5º, caput; artigo 7º inciso IV – e considerada como uma das categorias de violência doméstica mais lesivas contra a mulher, ao lado da violência física, psicológica, sexual e moral. Dessa maneira, a violação de bens, bem como o não pagamento de alimentos são considerados como violência patrimonial (DIAS, 2018).

Fonte: https://www.pactor.pt/pt/catalogo/ciencias-sociais-ciencias-forenses/ciencias-forenses-criminologia/violencia-domestica-e-de-genero/

O implemento da pensão alimentícia parece ser um mecanismo para validar o apoio para mulheres agredidas pelos seus companheiros, mesmo aquelas sem filhos, na medida em que viabiliza um maior encorajamento nas ações judiciais. Partindo desse princípio, surgiu o seguinte questionamento: qual o impacto jurídico e social da fixação de alimentos para as vítimas de violência doméstica? Compreende-se que é forçoso reconhecer que as ações civis e criminais decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher necessitam avançar. Desse modo, justifica-se o presente estudo haja vista que se trata de um tema que precisa ser discutido no âmbito acadêmico e aprofundado no campo científico, logo, a contribuição deste trabalho dar-se-á na propagação do conhecimento sobre a referida temática.

Desse modo, importantes instrumentos, mesmo que imperfeitos, já se encontram prontos na nossa legislação para serem usados na proteção das mulheres. Falar sobre as medidas protetivas, em especial sobre a concessão de alimentos, significa discutir de que forma o Estado pode se articular para que a arena jurídica invista mais no caráter assistencial e preventivo, e não apenas no punitivo. Quebrar obstáculos e promover a relevância da aplicabilidade das medidas protetivas representam um passo adiante na política de en­frentamento à violência contra as mulheres (CAMPOS, 2017).

O pedido de alimentos, inserido na Lei Maria da Penha, no rol das medidas protetivas, é um direito das vítimas, sobretudo quando elas são obrigadas por segurança a saírem dos seus lares. Iniciativas do poder legislativo – Projeto de Lei nº 296/2013; Projeto de Lei nº 1855/2011 – visam aperfeiçoar a legislação vigente para garantir de imediato a pensão alimentícia quando exarada a medida protetiva em favor da vítima de violência doméstica no seio do processo judicial, ambos ainda aguardam as devidas apreciações do Congresso Nacional brasileiro (LIMA, 2015). Portanto, através do presente trabalho, pretende-se trazer uma reflexão acerca da importância da fixação de alimentos para a vítima de violência doméstica, com o intuito de analisar a urgência de se garantir o mínimo existencialmente digno para as mulheres imersas em seus relacionamentos abusivos.

São diversas as razões pelas quais muitas mulheres não conseguem se desvencilhar dos seus parceiros violentos. A vergonha, o medo, a vã esperança de que seu companheiro mude de comportamento, o isolamento e a falta de apoio e, sobretudo, a dependência econômica parecem dar pistas dessa difícil decisão.

Estudar o combate à violência contra as mulheres no Brasil é um desafio abstrato e concreto, paralelamente. Concreto por que toda a sua legitimidade decorre diretamente das mais diversas mobilizações e ações dos movimentos de mulheres e grupos sociais na afirmação da dignidade humana. Visivelmente abstrato, também, quando se busca uma razoável compreensão dos obstáculos para a implementação dos seus instrumentos e mecanismos na efetivação dos direitos das mulheres violentadas. Dificuldades em avançar para além da norma, ou no mínimo aplicar a norma parecem silenciar os avanços tão durante conquistados.

A Lei Maria da Penha transformou a nossa sociedade, mas os ritos processuais e legais reproduzem o sentimento de falta de expectativa das mulheres vitimadas. Os entraves encontrados para uma correta quantificação e classificação das violências contra a mulher ultrapassam o “Segredo de Justiça” e são derrubados pela impressa diariamente. Como coadunar as normas de defesa e proteção da mulher com a realidade apresentada? Como resolver as contradições?

Em suma, as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha são essenciais para as mulheres em situação de violência doméstica. Desse modo, o que se espera delas, além da efetiva proteção a integridade da vítima e da sua família, é garantia da proteção patrimonial – a exemplo de concessão de alimentos provisórios. Tais medidas, de caráter preventivo e protetivo, podem ser observadas no início do registro da ocorrência da conduta criminosa, ainda nas delegacias e analisadas pelo judiciário de forma mais célere possível, de maneira que o enfrentamento inicial realizado pela mulher violentada não se transforme em mais uma violência perpetrada contra ela: a banalização do pedido de socorro.

 

REFERÊNCIAS

AMARAL, N. Mortalidade feminina e anos de vida perdidos por homicídio/agressão em capital brasileira após promulgação da Lei Maria da Penha. Texto contexto – enferm, v. 22, n. 4, p. 980-988. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072013000400014&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 23 out. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Acesso em: 14 jun. 2019.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Brasília, DF: Senado, 2006.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br Acesso em: 14 jun. 2019.

CAMPOS, H. Lei Maria da Penha: necessidade de um novo giro paradigmático. Rev. bras. segur. Pública, São Paulo v. 11, n. 1, 10-22, fev./mar., 2017.

CAVALCANTI, V. R. S. Violências sobrepostas: contextos, tendências e abordagens num cenário de mudanças. In: DIAS, I. (Org.). Violência doméstica e de género: uma abordagem multidisciplinar. Pactor: Lisboa, 2018.  

CLAIRE, M. A cada duas horas, uma mulher é assassinada no Brasil. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2018/03/cada-duas-horas-uma-mulher-e-assassinada-no-brasil.html. Acesso em: 23 jul. 2019.

DIAS, I. Violência Doméstica e de Gênero: Uma abordagem multidisciplinar. Lisboa: Pactor, 2018.

LIMA, R. F. Inadimplemento da Pensão Alimentícia e Contexto Familiar. 2015. Dissertação (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea) – Universidade Católica do Salvador, Salvador, 2015.

PASINATO, W. Oito anos de Lei Maria da Penha: Entre avanços, obstáculos e desafios. Rev. Estud. Fem. v. 23, n. 2, p. 533-545, 2010.

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Historiadora. Pós-doutorado pela Universidade de Salamanca (CNPq e CAPES, Brasil). Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de León, Espanha. Professora e investigadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, da Universidade Católica de Salvador. Investigadora associada ao Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e integrante do Núcleo de Estudos sobre Gênero e Direitos Humanos (NEDH/UCSAL).

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