Silmar Leila dos Santos
Estamos vivenciando situações nunca antes imaginadas para o ano de 2020. De certo que, os últimos anos também não foram de tranquilidade, pelo contrário, haja vista o número de desempregados e o aumento da pobreza no Brasil.
No entanto, é a primeira vez que passamos por uma pandemia de tamanha proporção e que alterou a rotina de vida de milhões de brasileiros e brasileiras. E aqui, o verbo ALTERAR não se restringe à apenas o sair, ou não sair de casa, mas sim a forma como as pessoas passaram a se relacionar, mesmo quando resolvem que não vão atender às orientações de afastamento social. O sair de casa nesses dias, significa que mesmo que você sinta fome e tenha dinheiro no bolso, não encontrará um restaurante para se alimentar, significa que você não conseguirá treinar em uma academia, significa que você não conseguirá sair e espairecer, transitando pelos corredores de um Shopping Center. Em grande parte do Brasil, o simples “sair à rua” está se caracterizando de maneira totalmente diferente ao que, até o mês de fevereiro era algo tão rotineiro que só não pode ser denominado de “impensado”, devido ao triste registro de situações de violência em espaços públicos em todo país.
Há, no entanto, um espaço cujo fechamento tem causado alterações em cadeia e, em diferentes proporções: A ESCOLA.
Desde meados do mês de março de 2020, gradativamente, os estados brasileiros vêm suspendendo as aulas em instituições públicas e privadas, da educação infantil ao ensino superior, sob o intuito de evitar o contato social e as aglomerações que fazem parte da rotina de qualquer espaço educacional e a fim de diminuir a probabilidade da transmissão do coronavirus e, consequentemente, a multiplicação de possível contágio aos núcleos familiares e de amigos dos estudantes, dos professores e dos demais funcionários destes estabelecimentos. Buscando evitar também que docentes e funcionários que fazem parte do denominado grupo de risco: maiores de 60 anos, mulheres grávidas, hipertensos, diabéticos, asmáticos e portadores de doenças autoimunes, venham a contrair o novo vírus.
São, portanto, milhares de estabelecimentos educacionais que, diante do distanciamento social passaram a buscar alternativas para minimizar os impactos de tal distanciamento, no processo de ensino e aprendizado de seus alunos/alunas. E, a partir daqui, gostaria de propor a você, leitor/leitora, um processo de reflexão sobre as estratégias apresentadas pela rede municipal de São Paulo para atender aos seus mais de 900 mil alunos/alunas, dentre eles, crianças, adolescentes, jovens e adultos (incluindo-se, neste montante, as crianças atendidas em Centros de Educação Infantil Conveniadas, parceria administração público-privada).
Dentre as primeiras medidas tomadas pela Secretaria Municipal de Educação (SME) da cidade de São Paulo identifica-se a antecipação do recesso escolar, via instrução normativa nº 13/2020, passando este a vigorar entre os dias 23 de março e 09 de abril. Contudo, como o distanciamento social ainda está em vigor em todo o estado de São Paulo, as aulas presenciais continuam suspensas e por tempo ainda indeterminado. Assim, por meio de nova instrução normativa, a de número 15/2020, a Secretaria Municipal de Educação determinou que:
O processo de aprendizagem após o término do recesso escolar, que ocorrerá no dia 13 de abril, acontecerá prioritariamente por meio de material pedagógico impresso que será enviado aos estudantes via correio e ajuda complementar os estudos através de uma plataforma digital a ser disponibilizada pela SME.
[…]
As equipes gestoras e docentes poderão utilizar diferentes tecnologias, desde que gratuitas, para organizar reuniões virtuais, bem como, planejar as atividades complementares que serão realizadas com os estudantes. (SME, Instrução Normativa nº 15, de 09 de abril de 2020).
Identifica-se, portanto que, há uma organização para que os quase 1 milhão de alunos da rede municipal de ensino de São Paulo, venham a receber, em suas casas, o material pedagógico para desenvolverem atividades à distância, com o auxílio dos professores e professoras da rede, por meio da tecnologia. Tal estratégia, no entanto, não se caracteriza como inovadora, diante da disponibilidade de diferentes plataformas educacionais que já introduziram a Educação à Distância (EAD) no Brasil há décadas, principalmente no ensino superior. E você, leitor/leitora pode muito estar agora pensando sobre a funcionalidade de tal prática, em diferentes escolas da rede privada, mesmo para alunos e alunas da educação infantil. O que, de fato, também já é uma realidade. No entanto, se faz necessário apontar algumas especificidades da rede pública de ensino da cidade de São Paulo e que podem sim, vir a influenciar no DIREITO UNIVERSAL À INSTRUÇÃO PÚBLICA E GRATUITA, pelo menos nos níveis fundamentais, previsto no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
A foto apresentada no início deste artigo retrata a região da Brasilândia, zona norte da cidade de São Paulo que se caracteriza como região periférica e, assim, como em outras regiões de periferia sofre com ausência de saneamento básico; com a ausência de atendimento médico-hospitalar; com a falta de vagas nas escolas, principalmente para a educação infantil; com o desemprego; com a falta de políticas habitacionais, o que acarretou a ocupação de espaços que ainda não estão regulamentados, enfim, as dificuldades são inúmeras e também públicas. Exemplo disso é a organização, também por parte da Prefeitura de São Paulo, para a distribuição de cartões de vale alimentação (cartão merenda) para cerca de 350 mil crianças, matriculadas em todas as unidades educacionais da cidade. Tal informação encontra-se disponível no site da própria SME (https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/prefeitura-de-sao-paulo-ira-repassar-r-24-milhoes-para-familias-adquirirem-alimentos-em-casa/) e descreve que os valores estão atrelados à etapa escolar em que a criança encontra-se matriculada:
Etapa Escolar |
Valor Mensal |
Creche / CEI | R$ 101,00 |
EMEI | R$ 63,00 |
EMEF | R$ 55,00 |
A Prefeitura descreve ainda que:
Além do cartão, as famílias vão receber informações com orientação nutricional, indicando os alimentos mais saudáveis, os gêneros que devem ser evitados (bolachas, embutidos, entre outros) e os itens proibidos (bebidas alcoólicas, cigarro, etc).
Destaca-se, portanto, o reconhecimento do poder público quanto à vulnerabilidade social de muitas das crianças e adolescentes atendidos pela rede municipal de ensino de São Paulo e que, neste momento, fazem parte do Programa Bolsa Família do governo federal. Tal destaque se faz necessário, pois há uma solicitação judicial realizada pelo Ministério Público e a Defensoria Pública para que a Prefeitura amplie tal distribuição do cartão merenda para todos os alunos e alunas da rede de ensino do município.
Eis, portanto, o ponto a ser considerado em nossa reflexão: se não há o que comer, como essas crianças e adolescentes poderão se dedicar a qualquer tipo de concentração em estudos? Talvez, alguns de vocês, leitores e leitoras, possam estar um pouco mais confortados/confortadas, diante da preocupação inicial por parte da Secretaria Municipal de Educação em enviar para as residências dos alunos e alunas os cadernos impressos para estudos. Contudo, é importante ressaltar que: não houve, no ano de 2020, a distribuição de materiais didáticos para estes alunos/alunas e, diante da situação de vulnerabilidade, para muitas famílias, a compra de lápis, borracha e canetas para uma, duas, três ou mais crianças, pode se caracterizar como um “luxo”, no momento inatingível. Outra questão a ser posta é: será que esses cadernos de estudo, realmente chegarão a todos/todas, uma vez que, em regiões de ocupação, por exemplo, costuma-se não existir nomes de ruas e/ou código de endereçamento postal (CEP)?
No que se refere à orientação dada aos professores, pela instrução normativa de nº 15/2020, espera-se que os professores e professoras utilizem da tecnologia para promover atividades e auxiliar os alunos/alunas em suas dúvidas. Contudo, como sabemos, a internet ainda não é uma tecnologia disponível a todos/todas e ainda tem um custo alto, considerando a renda da maioria dos brasileiros/brasileiras e, acrescenta-se à este custo a necessidade de que, para que essas crianças e adolescentes possam ter acesso às atividades e orientações à distância, se faz necessário que se possua pelo menos, um smartphone em casa, sendo no entanto preferível que se tenha equipamentos com telas um pouco maiores, como por exemplo tabletes, notebook ou mesmo um computador de mesa (PC), mas será que podemos contar com a existência destes equipamentos na residência de todos/todas os quase 1 milhão de alunos/alunas da rede municipal paulistana? Terão também todos os professores/professoras acesso à internet e também aos equipamentos tecnológicos?
Faz-se necessário apontar também que a iniciativa da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo, em tentar minimizar o impacto da suspensão de aulas por conta da pandemia do coronavirus utilizando-se da distribuição de cadernos de estudos e atividades e também promovendo o acompanhamento pedagógico à distância com o auxílio da tecnologia, é também uma importante contribuição para o grupo de alunos e alunas que possuem as condições mínimas necessárias para se apropriar dos conteúdos educacionais previstos por seus professores. Porém, o presente artigo tem por objetivo, instigar a reflexão quanto à necessidade de que a Educação em Direitos Humanos seja cada vez mais difundida, promovendo um olhar mais apurado da sociedade brasileira às questões de vulnerabilidade social, que neste caso específico do atendimento educacional EaD, tende a promover a NÃO efetivação do direito à instrução para TODOS/TODAS! Sendo necessário destacar também que estamos tratando aqui da rede de educação da maior cidade da América Latina. Dá para imaginar o impacto dessa vulnerabilidade e a ausência dos direitos básicos para milhares de brasileiros/brasileiras, quando pensamos nos munícipios menores e muito mais pobres, espalhados por todo território nacional?
Estamos vivendo um momento histórico de calamidade pública, sem precedentes, onde os seres humanos estão sendo ameaçados no que lhes é primordial: SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA! Mas, este período há de passar e, ao retomarmos às nossas rotinas, precisamos estar mais atentos/atentas aos nossos semelhantes, ou seja, ainda há muito o que se estudar, conhecer, divulgar e fazer!
#ficaemcasa!
REFERÊNCIAS
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (1948)
RODRIGUES, Artur. Justiça manda Doria e Covas pagarem compensação por merenda a todos os estudantes em SP. FOLHA DE SÃO PAULO. 09/04/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/justica-manda-doria-e-covas-pagarem-compensacao-por-merenda-a-todos-os-estudantes-em-sp.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa&fbclid=IwAR2zg0TwKW2YLm2iRoJQi-qcAd4miFkYl4h7Yxn66IBzGOuZqgNT0qWrCxY
SÃO PAULO (Município). Instrução Normativa nº 13, de 19/03/2020. Disponível em:
http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/instrucao-normativa-secretaria-municipal-de-educacao-sme-13-de-19-de-marco-de-2020
SÃO PAULO (Município). Instrução Normativa nº 15, de 08 de abril de 2020. Disponível em: http://www.docidadesp.imprensaoficial.com.br/NavegaEdicao.aspx?ClipID=5bc36497e5e53f44683b580dd4c99c9e&PalavraChave=estudantes
SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Educação: Prefeitura de São Paulo irá repassar R$ 24 milhões para famílias adquirirem alimentos em casa. 02/04//2020. Disponível em: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/prefeitura-de-sao-paulo-ira-repassar-r-24-milhoes-para-familias-adquirirem-alimentos-em-casa/
SILVEIRA, Daniel. Crise levou 4,5 milhões a mais à extrema pobreza e fez desigualdade atingir nível recorde no Brasil, diz IBGE. PORTAL G1. 06/11/2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/11/06/crise-levou-45-milhoes-a-mais-a-extrema-pobreza-e-fez-desigualdade-atingir-nivel-recorde-no-brasil-diz-ibge.ghtml.