I
Há o homem que está sempre a ameaçar uma virada de página, há o que trocou a máquina de escrever pelo computador, mas nunca recalibrou, nos dedos, a gravidade. Se prestarmos um bocado de atenção, é fácil ouvir a máquina funcionando dentro dele, as hastes golpeando, sem piedade, o papel.
II
Górgonas amaldiçoadas por alguma deusa esquecida, bela e sábia e rancorosa. A mãe, a irmã, a companheira, as três Marias do evangelho apócrifo de Felipe; as parcas, as musas, as moiras, presas à volta de uma Singer antiga, tocada a pé. Manequins. “Uma perna que, ao fim, se abre em quatro pés”. “Um seio talhado, curado a durex – melhor, à fita adesiva.
II/2
Não tinha cabeça, nem braços, nem pernas. Era só o tronco que guardava silente a passagem dos dias, era só a forma desnuda, análoga ao corpo de uma mulher já feita, de uma rapariga depois que a idade talha outras geografias. Eram as moiras, as górgonas, as esfinges do sótão, entre a cozinha e o quarto, velando o meu sono.
II/2
Amaldiçoadas a sobreviveram à presteza, à obrigação de dar forma, de preencher as roupas que vestirão outros corpos, uma carne mais estendida, de membros e boca e língua, de pulmões tragando para o fundo as impurezas e os ventos de fora, do coração que faça circular por tudo um sangue espesso e morno, que dê à nudez uma coloração mais rósea, que vista de alma o aparente amontoado de músculos, ossos e pele. Não podem sonhar e, se somos feitos da mesma substância que os nossos sonhos, não podem fazer(-se).
III
Perguntei ao José o que achava sobre a popularidade d’A origem do mundo, de Gustav Courbet, e acerca do relativo desconhecimento no que se refere ao quadro de Orlan, A origem da guerra. Notam-se as flores mais que os talos! Ele disse, como quem acende, sem perceber, um cigarro pelo filtro, puxando, pelas narinas, um trago profundo. Há pouco, Jean-Jacques Fernier pensou ter descoberto, através de um colecionador, o rosto que escapou à moldura no século XIX. O arquiteto e historiador da arte acredita que as partes retratadas em 1866 pertenciam a Joanna Hiffernan, uma modelo irlandesa ligada ao pintor norte-americano James Whistler e também ao realista francês. Pouca gente sabe, no entanto – e, pelo visto, o detalhe passou despercebido para os especialistas – que Courbet, em uma carta desaparecida de 1874, já na Suíça, escrevera Il n’y avait plus rien. Elle était morte. C’est pourquoi je n’ai pas peint son visage. […] Nature morte, voilà tout. Deborah de Robertis, n’O espelho da origem, ao som consagrado da Ave Maria de Schubert, quase uma década depois da primeira exposição da obra, recriou o espanto.
La mort est la mère du monde. L’origine de l’humanité. Talvez, por isso tenham sumido com a carta. Ele matou aquela mulher.