Prof. Dra. Silmar Leila dos Santos
Segundo Webber e Vergani (2010) é no ano de 1964, que o trabalho docente passa a ser considerado como PENOSO, sendo incluído, por este motivo, como uma profissão que mereceria aposentadoria especial. Identifica-se para tanto o marco legal no Decreto 53.831, de 25 de março de 1964, no entanto, essa legislação foi revogada em 1968 e, desde então, o grupo docente passou a ser perseguido diante da possibilidade de obter uma aposentadoria especial, ano após ano, exemplo mais recente é o da Reforma da Previdência de 2019, que alterou a idade mínima para aposentadoria das professoras de 50, para 57 anos e para os professores, passou de 55 para 60 anos. Contudo, apesar da mudança na perspectiva legal sobre a insalubridade da vida de um profissional docente, na prática, essa insalubridade só tendeu a aumentar e, infelizmente, não é somente no que se refere à saúde, o que por si só já representa grandes prejuízos à vida de qualquer profissional, mas também no que se refere à valorização social.
O denominado mal estar docente é apresentado em diferentes pesquisas acadêmicas, inclusive na que eu desenvolvi entre os anos de 2004 e 2005, abarcando cinco escolas da periferia da cidade de São Paulo, para caracterizar o absenteísmo docente em seus postos de trabalho, o que me fez perguntar a esses professores: por que vocês faltam ao trabalho? E as respostas que mais obtive foram de que essas faltas ocorriam para que os docentes pudessem ir ao médico ou por não se sentirem bem de saúde, para trabalhar em alguns dias do ano (Santos, 2006, p. 88). Portanto, penso que não há muito que se argumentar no que se refere à precarização do trabalho docente no Brasil, porém, parece que esse processo de precarização ainda está muito longe de se extinguir e ao fazer tal afirmação, eu não estou me referindo à questão salarial, que é outro ponto nevrálgico na vida dos professores e professoras de nosso país, mas sim à situação mais recente: a da vida docente em meio à pandemia.
Solicito a você, leitor/leitora que observe atentamente as imagens a seguir, para que possa entender as considerações que lhes apresentarei em seguida:
As imagens apresentadas são apenas um pequeno registro do que acontece dentro das escolas públicas e privadas de todo território brasileiro. Nestas imagens estão perpetuados momentos de envolvimento social, de descobertas, de conhecimentos, de trocas, de afagos, de alimentação, de conversas, de alegrias, mas também de desentendimento, de decepções, de angústias e, agora mais do que nunca: DE MEDO! Sim, neste momento histórico, pensar em retomar este tipo de rotina significa ter medo! E aqui eu não estou me referindo a um medo imaginário, nem tão pouco ligado ao desconhecido, mas sim a um medo real, o medo pela contaminação, o medo da MORTE!
Desde o mês de março deste ano, todas as escolas públicas e privadas do Brasil foram fechadas por conta da pandemia do novo coronavírus. Contudo, este fechamento de escolas não se deu por completo. Exemplo disso pode ser localizado na Instrução Normativa de nº 13, de 19 de março de 2020, da Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, que implementou o regime de plantão diário, em todas as suas unidades educacionais, no horário das 10h às 16h, com a prerrogativa de que se tenha sempre dois funcionários nas Unidades, para a realização de atendimento telefônico e atividades internas. Impondo aos representantes da equipe gestora e também da equipe de apoio das escolas, que arrisquem suas vidas diariamente, uma vez que parte destes funcionários utiliza transporte público para chegarem aos seus postos de trabalho. Registra-se, porém, que esses plantões não se restringiram apenas ao atendimento telefônico, mas também à entrega de cartões merenda, cestas básicas e cadernos de atividades aos alunos e/ou seus responsáveis. Fato que certamente, tem exposto ainda mais esses funcionários da educação a uma possível contaminação.
Mas…voltemos aos docentes. Onde estão? O que fazem?
Segundo dados do Censo Escolar 2018, cerca de 80% de docentes da Educação Básica são mulheres. Isso significa que, na prática, desde o início pandemia e consequentemente, da indicação de isolamento social, mais de 1 milhão e meio de mulheres passou a ter que se adaptar no espaço interno de suas casas para exercer, concomitantemente e sem horário definido: os trabalhos domésticos; os cuidados com os filhos, uma vez que estes, também não estão frequentando suas escolas; as postagens de aulas; a preparação de atividades pedagógicas; a correção de exercícios e, em alguns casos, têm também que preparar vídeo aulas, gravar, editar e postar, tudo isso sob a supervisão dos gestores. Acrescentando-se ainda, a obrigatoriedade da participação em reuniões online e em lives.
Além de toda uma agenda atribulada e sem a previsão de tempo para descanso, identifica-se também toda uma preocupação quanto à possível contaminação pelo coronavírus, pois, infelizmente, o registro de educadores/educadoras e demais funcionários da educação que não resistiram à doença, é real e ainda não cessou.
Desde o mês de junho de 2020, as redes municipal e estadual de educação de São Paulo, iniciaram a divulgação de que a expectativa para o retorno às aulas presenciais é para o dia 08 de setembro. No que se refere especificamente à rede municipal de ensino de São Paulo, a promessa é que esse retorno se dê, inicialmente, com a frequência de 35% dos alunos, por dia, com revezamento destes alunos nas Unidades de Ensino Fundamental (EMEFs) e nas Escolas de Educação Infantil (EMEIs). Já nas conhecidas Creches (Centros de Educação Infantil) a promessa é de que todas as crianças retornem, porém com a divisão das turmas em mais salas, para evitar a proximidade entre as crianças. Além disso, segundo o secretário municipal de educação, senhor Bruno Caetano, as Unidades Educacionais deverão seguir um rígido protocolo de segurança.
A divulgação de tal notícia, por si só, já causa questionamentos: como manter protocolos de distanciamento e de higiene com bebês e crianças de colo? De que maneira será feito esse rodízio, onde apenas 35% das crianças serão atendidas, diariamente? Como as famílias mais numerosas, irão mandar um ou dois filhos para a escola e deixar os demais em casa?
Além, desses questionamentos iniciais, se faz necessário relembrar as imagens apresentadas inicialmente neste artigo, como evitar proximidades entre os colegas que não se veem há meses? Como evitar que crianças corram pelo pátio e não se esbarre durante o recreio, na tentativa de iniciar uma brincadeira? Como proceder com as máscaras na hora da alimentação e mesmo depois? E se uma criança aparecer com sintomas da covid-19, na escola? Como proceder? Ligar para os pais? E se os mesmos estiverem trabalhando?
Esses são apenas alguns dos questionamentos reais que, até o presente momento, ainda não foram esclarecidos pelos responsáveis, seja pela rede municipal de São Paulo, seja pela rede estadual de educação.
Registra-se, no entanto que, sob a alegação de que seria necessário ouvir os educadores da rede municipal, o secretário Bruno Caetano realizou, durante o mês de julho, vários encontros virtuais com representantes de docentes, gestores, supervisores escolares e demais funcionários e até com alguns pais/mães de alunos das 13 Diretorias Regionais de Educação (DREs) da cidade. Denominado de Fala Rede, esses encontros se caracterizaram como longos e foram marcados por inúmeras denúncias referentes aos problemas que já faziam parte das Unidades Escolares e que passaram a se agravar, diante do período da pandemia. Dentre os problemas citados por estes representantes estão: a diminuição do quadro de funcionários de empresas terceirizadas, para a limpeza das escolas; a diminuição de verbas para manutenção das Unidades, como poda de mato e limpeza de caixa d´água; o descontentamento dos funcionários públicos com a reforma de previdência municipal que aumentou o percentual de descontos previdenciários de 11 para 14%; o não pagamento de adicional noturno, mesmo para docentes e demais funcionários que continuam realizando suas atividades online, após às 19h. Além de algumas polêmicas.
Link de acesso aos encontros do Fala Rede (Secretaria Municipal de São Paulo): https://www.facebook.com/hashtag/falarede
E no que se refere às polêmicas, penso que uma delas, merece destaque aqui, uma vez que envolveu uma diretora de escola negra e que acabou repercutindo muito além do momento do encontro virtual.
O encontro online realizado no último dia 22 de julho foi entre os representantes da Diretoria Regional de Pirituba. Dentre os participantes, estava a Diretora de Escola Valéria Marques Mendes, que durante sua fala, realizou vários apontamentos contrários ao retorno às aulas presenciais, para setembro próximo, realizando também apontamentos críticos à gestão de governo, naquele momento, representada pelo secretário da educação. Contudo, diferentemente de outros encontros, o senhor secretário se posicionou extremamente incomodado com o pronunciamento da educadora, portando-se grosseiramente e chegando a dizer que a mesma sofria de “déficit de compreensão”. Não possibilitando que a mesma sequer, tivesse o direito de resposta!
Segue link referente à questão tratada no site Notícias Uol, cujo título é:
No entanto, o que inicialmente pode ser caracterizado como uma grosseria foi também classificada por muitos, como um ato de racismo. Isso porque, dias atrás, no encontro virtual promovido com representantes da Diretoria Regional de Educação do Butantã, outro diretor de escola também apresentou duras críticas ao secretário sem, no entanto, ter recebido uma resposta tão grosseira.
https://www.youtube.com/watch?v=P-ceTFIaa20
No que se refere ainda ao possível retorno às aulas presenciais, em setembro, o secretário da educação municipal de São Paulo, em entrevista ao telejornal Bom dia Brasil, no dia 10 de julho de 2020, ao ser questionado sobre a preocupação dos pais dos alunos com a ausência de aprendizagens das crianças e jovens, durante o ano letivo vigente, expôs a seguinte afirmação:
“(…) Nós vamos fazer um grande programa de recuperação e reforço escolar que não vai ficar só neste ano, não! Vai ficar inclusive no ano que vem. Então não precisa reprovar ninguém, não precisa reter ninguém, porque nós vamos trabalhar 2020 e 2021, como se fosse um grande ano, para que a gente possa dar os conteúdos necessários de 2020 e 2021 com mais tempo de aula presencial.”
Complementando ainda que:
“Caso a gente perceba, numa prova que será aplicada aos alunos, que o aprendizado foi muito ruim, não foi a contento, é muito provável que as aulas continuem em dezembro, em janeiro, em fevereiro, NOS FINAIS DE SEMANA, para que a gente tenha também condição de recuperar esses conteúdos (…)”
Quanto à educação à distância, imposta tanto pela rede municipal como estadual em São Paulo, o secretário afirmou que os Conselhos Nacional, Estadual e Municipal, já autorizaram a contabilidade dessas horas de atividades remotas, como dias de atividades pedagógicas. Porém, o secretário ponderou que
“(…) se os alunos, de fato, não aprenderam o suficiente, nós não vamos contabilizar todas essas horas, porque a gente tem que dar a oportunidade das crianças aprenderem e, se precisar utilizar os finais de semana, janeiro e fevereiro, nós vamos fazer sim, porque todo mundo tem que aprender, pelo menos tem que ter a chance de aprender”
Questionado sobre a necessidade de professores terem que trabalhar em dezembro e em janeiro, mesmo depois de dar aulas online, desde abril, a resposta do senhor secretário foi a seguinte:
“Todo mundo tem que fazer o seu esforço, todos nós estamos fazendo! A essência do serviço público é servir a população. É nossa obrigação enquanto servidores! É nossa obrigação enquanto educadores e também de outros servidores, em todas as áreas. O que não pode acontecer são as crianças ficarem para trás. Do nosso ponto de vista, a secretaria de educação vai dar todo o suporte necessário para que professores, pais, alunos, aa escolas possa cumprir todo nosso currículo de forma adequada (…)”
Link do áudio na íntegra da entrevista do secretário municipal da educação de São Paulo (10/07/2020): https://drive.google.com/file/d/1AhSraICZ5h6h1NigikCKHmNlyBjeK6t4/view?usp=sharing
Iniciamos este artigo recuperando que a profissão docente foi considerada como penosa no texto de uma lei de 1964. E vimos que a tendência a partir de então, infelizmente, foi a da precarização da profissão e do adoecimento dos docentes. Porém, com o período da pandemia, uma nova onda de precarização parece ter se instalado para os professores e, predominantemente às PROFESSORAS, pois grande parte delas tem trabalhado em tempo bem maior do que suas jornadas de trabalho, tendo ainda que realizar a manutenção de suas casas, os demais afazeres e o cuidado com os filhos. No entanto, o que está ruim, parece que ainda pode piorar, pois na fala do secretário municipal, os incisos do artigo 7º da Constituição Federal, principalmente os que tratam do descanso semanal remunerado e do gozo de férias anuais praticamente serão suprimidos pela necessidade de uma dedicação laboral, quase sacerdotal, que os funcionários públicos de baixo escalão, ou mais precisamente os profissionais da educação, precisarão ter diante da sociedade brasileira.
Parece-me que, apesar do secretário aparentar estar muito preocupado com o processo de ensino e aprendizagem dos alunos e alunas da cidade de São Paulo, está lhe escapando algumas observações importantes:
- Conteúdos escolares não podem ser confundidos com “pacotes” que são distribuídos a bebês, crianças, adolescentes, jovens e adultos, em prazos e espaços determinados. Os conteúdos são parte de um processo de aprendizagem que demanda tempo, mas um tempo individual, um tempo para desenvolvimento de habilidades e de competências. Portanto, não será a contabilidade de dias em janeiro, fevereiro e finais de semana que vão garantir a recuperação das aprendizagens de uma rede de ensino;
- Professores, professoras e demais funcionários da educação não trabalham por produção, justamente porque lidam com pessoas, lidam com individualidades, lidam com anseios, angústias, com alegrias, com tristezas, com avanços, mas também com limitações. Docentes não são tarefeiros, mas sim incentivadores, são intelectuais que precisam de formação continuada, precisam de salário digno, precisam de valorização social;
- Docentes e demais funcionários públicos possuem plena consciência de sua importância social. Exemplo disso é o posicionamento de enfrentamento da Diretora Valéria, mulher negra, que por representar os membros de uma comunidade escolar e por ter a coragem de apontar pontos que precisam ser aprimorados pelo poder público junto às regiões periféricas da cidade de São Paulo, teve sua fala desqualificada por um senhor branco, que não tinha respostas concretas, diante dos apontamentos que lhe fora apresentado, durante uma reunião que se dizia democrática;
Pobres, doentes, desvalorizados socialmente e com a incumbência de ter que se responsabilizar pelas mazelas de grande parte da sociedade, uma vez que é no espaço escolar que são identificados os grandes problemas sociais e para onde, geralmente, são encaminhadas possíveis soluções, mesmo que temporárias: a começar pela da distribuição de cestas básicas, durante a pandemia; pela distribuição de leite; pelas constantes campanhas de saúde; por mutirões de atendimento social; pelos movimentos de cultura e lazer. E, tudo isso, por quê? Porque as escolas são, muitas das vezes, o único aparelho de representação do poder público nas periferias das grandes cidades e nos rincões do interior do Brasil!
Sejamos fortes docentes!
Referência bibliográfica:
SANTOS, Silmar Leila dos. As faltas de professores e a organização de escolas na rede municipal de São Paulo. Dissertação de Mestrado: PUC/SP. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/10313
WEBBER, Deise Vilma & VERGANI, Vanessa. A profissão de professor na sociedade de risco e a urgência por descanso, dinheiro e respeito no meio ambiente laboral. XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza – CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010.