Nós, os sapiens, nunca fomos tantos. Nunca estivemos, como agora, tão saturados, exaustos e aborrecidos. Membros da única espécie viva do gênero homo – que se tem notícia –, somos, atualmente, cerca de 7,7 bilhões em um planeta com recursos limitados e uma área superficial de 510 072 000 km². De acordo com o The Future of Jobs, publicado em janeiro de 2016 – um relatório sobre o futuro do trabalho, divulgado pelo World Economic Forum (Fórum econômico mundial) –, 65% das crianças que começaram o ensino fundamental em 2016 acabarão em empregos que ainda não existem. Frente a um mercado de trabalho em rápida transformação, a capacidade de se antecipar, adaptando-se e preparando-se para requisitos de habilidades futuras, desenvolvendo competências ligadas à inteligência emocional, ao gerenciamento de síndromes, como a do “pensamento acelerado”, e da ansiedade, tornou-se urgente. Com uma forma de aprendizagem passiva e reativa em um mundo que exige que sejamos ativos, o velho modelo das salas de aula, preso aos antigos paradigmas industriais, não atende e não é capaz de atender, no curto, médio e longo prazo, às novas demandas educacionais e sociais. A depressão, por exemplo, segundo a Organização mundial da Saúde (OMS), afeta mais de 300 milhões de pessoas, apresentando-se como a doença que mais incapacita os pacientes. As doenças de base psicossocial, como a Síndrome de Burnout, também conhecida como Síndrome do Esgotamento Profissional, seguem crescendo. A desmaterialização do trabalho continua ganhando potência, frente a um mercado de trabalho em rápida transformação, e a incerteza, a insegurança e o estado de vulnerabilidade tomam, dia após dia, proporções alarmantes. Posto isso, focar apenas em áreas que, supostamente, apresentam resultados imediatos, como a engenharia, a veterinária e a medicina, pode ser um começo bastante congruente se o que ambicionamos é um futuro catastrófico, recheado – ainda mais – de farmacodependentes, com uma larga produção de ansiolíticos e a dois passos não do paraíso, mas do Brave New World, de Huxley, e dos “cuidados” de um Big Brother, à maneira de Orwell. Ler, escrever e fazer contas não é, não tem sido e não será o suficiente. O custo da inércia, da tentativa desesperada e desesperançada de conservar padrões há muito ultrapassados, será alto e o preço não virá em dólares, em euros ou em reais, mas em vidas humanas.
A Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, em um relatório para a UNESCO, propôs, ainda na década de 90, quatro pilares para os novos processos educacionais. Esses pilares, publicados, posteriormente, no livro Educação: um tesouro a descobrir, foram complementados com mais três pelo professor José Pacheco, em um artigo escrito para a Revista Educação, e nós, a partir de algumas reflexões feitas em ensaios e pequenos textos publicados de forma esparsa – desde 2016, pelo menos – nos arriscamos a propor um oitavo pilar. Vejamos, de forma breve, cada um deles e suas respectivas propostas.
1. Aprender a conhecer
De acordo com o relatório mencionado anteriormente, este “tipo de aprendizagem que visa não tanto a aquisição de um repertório de saberes codificados, mas antes o domínio dos próprios instrumentos do conhecimento pode ser considerado, simultaneamente, como um meio e como uma finalidade da vida”. Aqui, nesta etapa, adquirimos os instrumentos necessários para buscar as respostas das muitas perguntas que, pela vida e pelos dias, nos acompanham. Ainda de acordo com o relatório, “meio, porque se pretende que cada um aprenda a compreender o mundo que o rodeia, pelo menos na medida em que isso lhe é necessário para viver dignamente, para desenvolver as suas capacidades profissionais, para comunicar. Finalidade, porque seu fundamento é o prazer de compreender, de conhecer, de descobrir”. O documento preparado pela Comissão cita, no que diz respeito ao primeiro pilar, o matemático francês Laurent Schwartz para defender uma visão mais integral e, de certa forma, holística da formação: “Um espírito verdadeiramente formado, hoje em dia, tem necessidade de uma cultura geral vasta e da possibilidade de trabalhar em profundidade determinado número de assuntos. Deve-se, do princípio ao fim do ensino, cultivar, simultaneamente, estas duas tendências” (DELORS apud SCHWARTZ, p. 91). Em suma, a ideia central desse pilar é a de que a “educação primária pode ser considerada bem-sucedida se conseguir transmitir às pessoas o impulso e as bases que façam com que continuem a aprender ao longo de toda a vida, no trabalho, mas também fora dele” (DELORS et al, p. 92-93).
2. aprender a fazer
Além de fornecer as bases para que o indivíduo seja capaz de conhecer o seu mundo ambiente, entendendo melhor as suas circunstâncias e, por conseguinte, a sua vida, é preciso também oferecer as ferramentas para a transformação dessa(s) realidade(s). O segundo pilar está mais ligada às questões voltadas para a formação profissional e para o desafio de adaptar a educação ao trabalho futuro (mesmo quando não se pode prever qual será a sua evolução), ensinando o aluno a pôr em prática os seus conhecimentos. No século XXI, “aprender a fazer não pode”, ainda de acordo com a Comissão, “continuar a ter o significado simples de preparar alguém para uma tarefa material bem determinada, para fazê-lo participar no fabrico de alguma coisa” (DELORS et al, p. 93), visando a um ofício que gere renda para a pessoa – como apontou o atual Ministro da educação, Abraham Weintraub, ao justificar os cortes em abril. Precisamos considerar também que, com o movimento de “desmaterialização” do trabalho na era das coisas inteligentes (smart things), a noção de qualificação profissional tem cedido espaço para a competência pessoal. “Os empregadores substituem, cada vez mais, a exigência de uma qualificação ainda muito ligada, a seu ver, à ideia de competência material, pela exigência de uma competência que se apresenta como uma espécie de coquetel individual, combinando a qualificação, em sentido estrito, adquirida pela formação técnica e profissional, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipe, a capacidade de iniciativa, o gosto pelo risco” (DELORS et al, p. 94). Sem diminuir os outros saberes, uma vez que têm, como é óbvio, um papel fundamental para o equilíbrio e manutenção da sociedade, há de se convir que a desvalorização dos saberes humanísticos coloca em risco a formação de qualidades que têm se mostrado fundamentais, como a capacidade de comunicar, de trabalhar com os outros, de gerir e de resolver conflitos.
3. aprender a conviver (a viver com)
Apesar de vivermos no tempo das “redes sociais”, dos compartilhamentos, dos comentários e das infindáveis listas de amigos e seguidores, nunca estivemos, ao dividir o mesmo espaço, tão desconectados, tão descontinuados socialmente. A onda utilitarista que apaga o valor dos saberes humanísticos, transformando a filosofia, a sociologia e as artes, por exemplo, em inutensílios descartáveis, colabora, dentre outros fatores, para o apagamento das relações de alteridade e o enfraquecimento da empatia. O que deveria ser uma experiência solidária, como o processo educacional, converte-se, facilmente, numa experiência solitária e, aos poucos, entre os membros de um mesmo grupo e/ou de uma mesma comunidade, a cooperação vira competição. Some-se a essa realidade o fato de, paradoxalmente, convivermos com uma atmosfera contínua de entretenimento e distensão, ligada à indústria do “bem-estar”, e com uma intensificação dos obstáculos, seguida do aumento dos quadros depressivos e do crescimento do mal-estar subjetivo. Se mal aproveitada, a internet, como um grande catálogo de sucessos e bem-aventuranças, acentua, tanto mais, o espírito competitivo e a inveja, pois, como salientado por Lipovetsky (p. 06), em A sociedade da decepção, quando “a felicidade é prometida a todos e os prazeres são enaltecidos em cada esquina, a vida cotidiana está passando por uma dura prova”. Além disso, ainda conforme o autor, “os deleites de ordem material cresceram, mas os homens, na maior parte das vezes, sentem-se infelizes em presença da fruição alheia” (p. 08). Ainda que não tenhamos os recursos materiais e imateriais necessários para ter acesso aos itens dos apelos publicitários e, com isso, experimentemos “um sentimento de frustração, de desqualificação interior e de insucesso pessoal” (LIPOVETSKY, p.12), somos todos criados e condicionados para integrar as massas hiperconsumistas, que, por sua vez, proporcionam o ambiente ideal para a germinação e o fortalecimento de antipatias exteriorizadas através dos mais variados níveis de violência. Para Lipovetsky (p. 08),
a igualdade de condições torna o culto da ambição um objetivo universalizante, a ser perseguido infatigavelmente. No entanto, ao invés de se abrirem novas perspectivas de felicidade, as frustrações e os ressentimentos (oriundos das comparações invejosas) passaram a ter livre curso. As mais insignificantes diferenciações entre os homens são hoje causa de mágoas; já não se admite que o semelhante possa ter algo de que um de nós não disponha.
Frente a tudo isso, como fomentar a cooperação, formando as bases necessárias para que possamos “viver com” o outro? O relatório preparado para a UNESCO nos sugere duas vias: “Num primeiro nível, a descoberta progressiva do outro. Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação em projetos comuns, que parece ser um método eficaz para evitar ou resolver conflitos latentes” (DELORS et al, p. 97). Lembremo-nos, no entanto, de que este é o terceiro pilar. Os anteriores são, igual e fundamentalmente, necessários para que uma boa convivência, ativa, respeitosa e consciente, surja.
4. aprender a ser
Acerca do quarto pilar, a Comissão – assim como a Constituição cidadã de 1988, no seu artigo 205[1] – salienta que “a educação deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa — espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade. Todo o ser humano deve ser preparado, especialmente graças à educação que recebe na juventude, para elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de valor, de modo a poder decidir, por si mesmo, como agir nas diferentes circunstâncias da vida” (DELORS et al, p. 99). Tendo em vista os movimentos mais recentes da educação no Brasil, dirigidos por Weintraub, torna-se curioso notar que o relatório, já na década de 90, ressaltava “o temor da desumanização do mundo relacionada com a evolução técnica” e o relativo abandono dos saberes humanísticos.
Mais do que preparar as crianças para uma dada sociedade, o problema será, então, fornecer-lhes constantemente forças e referências intelectuais que lhes permitam compreender o mundo que as rodeia e comportar-se nele como atores responsáveis e justos. Mais do que nunca a educação parece ter, como papel essencial, conferir a todos os seres humanos a liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e imaginação de que necessitam para desenvolver os seus talentos e permanecerem, tanto quanto possível, donos do seu próprio destino. (DELORS et al, p. 100).
Se considerarmos um texto muito posterior, o livro 21 lições para o século XXI, do professor e historiador israelense Yuval Noah Harari, o “temor”, expresso no relatório, não era despropositado e trabalhar a “humanização”, em detrimento da “desumanização” causada pela evolução técnica, pode ser a única forma de assegurar, num futuro muito próximo, a nossa liberdade de pensamento, guardando-nos, por exemplo, contra o “hackeamento humano” e os muitos conflitos mentais advindos das mudanças constantes e, com frequência, radicais. Todos os documentos norteadores da educação no Brasil – ECA, LDB, BNCC, etc – estão de acordo com o relatório, teoricamente, no que diz respeito à formação integral e à visão do ser humano enquanto um ser complexo, composto por múltiplas e intrincadas dimensões (social, emocional, psíquica, biológica, ética, estética, etc). “O desenvolvimento”, por fim, “tem por objeto a realização completa do homem, em toda a sua riqueza e na complexidade das suas expressões e dos seus compromissos: indivíduo, membro de uma família e de uma coletividade, cidadão e produtor, inventor de técnicas e criador de sonhos” (DELORS et al, p. 101).
5. Aprender a desaprender
O primeiro pilar sugerido por José Pacheco aponta para um verso de Manuel Bandeira, presente em “Um didática da invenção”: “Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”. Para uma formação completa e um pleno desenvolvimento, mais do que aprender a procurar as respostas para as perguntas que temos, será preciso aprender a encontrar as perguntas para as respostas que sempre tivemos, revelando as questões impressas no revés das explicações, no interior dos chavões e das frases feitas, que, de forma velada ou de maneira consciente, herdamos e internalizamos. Desaprender o que nos prende às ideias pré-conceituadas de sempre. Desaprender para desatar os nós, para romper os laços que unem a nossa visão de mundo às crenças limitantes, para “vencer o que nos encerra e aliena”. Em última instância, desaprender para expelir “a tralha cognitiva que nos foi imposta” durante a vida inteira – tenhamos 10, 20, 40 ou 100 anos de idade.
6. Aprender a desobedecer
Aprender a desobedecer quando a ordem, injusta e injustificável, transforma-se em violência. Aprender a reconhecer o direito à desobediência civil, seguindo pelo caminho trilhado por grandes líderes adeptos da não-violência e da comunicação não violenta, como Mahatma Gandhi e Martin Luther King, quando a maior parte das normas, na escola ou na vida, não passam de “desvarios teóricos”.
7. Aprender a desaparecer
Aprender que a vontade geral é diferente da vontade de todos, ainda que, ocasionalmente, possam concordar, e que a minha vontade, apesar de importante, não deve ser determinante quando posta em grupo. Conter o egoísmo, o egocentrismo. Para Pacheco,
os projetos humanos são produtos de coletivos. Já lá vai o tempo dos seres providenciais e insubstituíveis. Deveremos evitar gerar dependência em outrem, para que não nos tornemos (supostamente) “imprescindíveis”. É preciso aprender a desaparecer, a fomentar autonomia nos grupos humanos em que participarmos. Uma autonomia que não pressupõe independência, mas interdependência. Como diria um amigo: interdependência, ou morte!
8. Aprender a ensinar
Por fim, aprender a ensinar e, no ensino, (re)construir todos os pilares, ensinando a conhecer, a fazer, a conviver, a ser, a desaprender, a desobedecer e a desaparecer. Aprender a ensinar a autonomia com base na interdependente, fornecendo a cada um os instrumentos para compreensão do seu mundo ambiente e para interferir nos elementos que compõem a sua ambiência.
[1] Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.