Quem nunca ouviu falar de Zumbi dos Palmares? Desde 2011, Zumbi é lembrado no Dia da Consciência Negra, instituído pela Lei de nº 12.519 de 10 de novembro do referido ano. Esta data foi instituída porque foi no mês de novembro do ano de 1694 que se a captura e morte de Zumbi, por seus perseguidores brancos. Na década de 1980, Zumbi foi retratado como personagem do filme Quilombo, de Cacá Diegues e desde 2004, dá nome à Universidade Zumbi dos Palmares, localizada na capital de São Paulo.
Segundo dados históricos, Zumbi foi filho de Sabina e sobrinho de Ganga Zumba – primeiro rei do quilombo-, viveu 40 anos (entre anos de 1655 e 1695). Foi educado em Porto Calvo (hoje município pertencente ao estado de Alagoas), por influência de um jesuíta. Viveu no quilombo desde os 15 anos e mais tarde, já adulto, mostrando-se bom estrategista de guerrilhas somada à coragem e liderança, teve suas habilidades voltadas para a continuidade da libertação dos escravos submetidos às fazendas canavieiras do Brasil Colônia do século XVII e, perpetuada ainda nos dois séculos seguintes.
Zezito Araújo, professor de História da Universidade Federal de Alagoas, em um de seus vídeos, nos alerta de que ao se falar de Zumbi dos Palmares na atualidade, é preciso desconstruir mitos como o de que Zumbi foi escravo e de que o quilombo foi espaço de escravidão. Segundo este professor, Zumbi nasceu livre e morreu pela liberdade de seus pares, informando também que o quilombo de Palmares foi a possibilidade de vida oposta à casa grande e à senzala, espalhado em diversos mocambos, inicialmente pelos estados de Pernambuco e Alagoas.
A resistência de homens negros seguiu-se pelos séculos seguintes, sendo possível destacar o baiano Luís Gama (1830-1882), escritor da causa abolicionista; a figura de André Rebouças (1838-1898), também baiano e um dos fundadores da Sociedade Brasileira contra a Escravidão; Francisco José do Nascimento (1839-1914), marinheiro cearense que se negou a transportar escravos para o sul do país; José do Patrocínio (1853-1905), carioca defensor do fim da escravidão; e mais recentemente, Abdias do Nascimento (1914-2011), paulista de Franca, que sempre promoveu a divulgação da História da África, da fundação do Teatro Experimental do Negro entre outras tantas ações também importantes para a causa negra.
Todos esses nomes fazem parte da memória da resistência negra. Certamente aqui não foram mencionados todos os que lutaram pela causa e que passaram para a história como “heróis” anônimos, mas se faz necessário reconhecer que foram lutaram homens que lutaram muito e, cotidianamente, enquanto aqui estiveram!
MULHERES E RESISTÊNCIA NEGRA: UM CAPÍTULO QUASE APAGADO
Quem ouviu falar de Dandara dos Palmares e Aqualtune, mulheres símbolos da resistência negra do Século XVII? Sabe-se que Dandara dos Palmares, companheira de Zumbi, lutou contra o governo português junto aos defensores do Quilombo dos Palmares e que se opôs a Ganga Zumba, primeiro rei do quilombo como já dito, quando este quis travar pacto com os portugueses. Consta que Dandara não se entregou a eles e que avistando a derrota, preferiu dar cabo da própria vida. Jarrid Arraes, cordelista cearense tem um bom livro publicado sobre as lendas que circundaram a existência de Dandara.
Aqualtune antecedeu a Zumbi. Em sua existência livre, Aqualtune foi a princesa no Reino do Congo que comandou um verdadeiro exército de homens africanos na luta contra a dominação dos portugueses naquele território. Contudo, como derrotada, foi escravizada e ao chegar em Alagoas foi vendida como escrava reprodutora e submetida ao estupro, sendo os filhos nascidos dessa condição, dela tirados logo após o nascimento. Sabendo da existência do quilombo, em uma de suas gravidezes, fugiu levando pelo caminho outros negros escravizados que a seguiram. Já no quilombo, Aqualtune, foi mãe de Ganga Zumba e avó materna de Zumbi.
Sua condição de resistência à dominação escravagista branca, no entanto, parece menos conhecida. Como diz este trecho de Jarrid Arraes em sua poesia Aqualtune:
[…] Eu só acho um absurdo
Porque nunca ouvi falar
Na escola ou na tevê
Nunca vi ninguém contar
A história de Aqualtune
E o que pode conquistar.
Uma história como a dela
Deveria ser contada
Em todo livro escolar
Deveria ser lembrada
No teatro e no cinema
Que ela fosse retratada. […]
A resistência feminina negra também continua nos séculos seguintes, podendo ser recuperada do passado para ser lembrada no presente. Uma delas é Tereza de Benguela.
Em meados do Século XVIII, em substituição ao companheiro falecido, Tereza de Benguela assumiu a posição de rainha do Quilombo de Quariterê, no estado do Mato Grosso. Instituiu no quilombo uma espécie de parlamento no qual se discutia quais seriam as normas de seu funcionamento e, como rainha, liderou a luta do quilombo contra os portugueses. Derrotada, foi morta e decapitada pelo exército português no dia 25 de julho de 1770. É por esse trágico episódio que se comemora no dia 25 de julho o Dia da Mulher Negra no Brasil.
Adentrando ao Século XIX-XX, a maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), figura também esquecida pela historiografia, foi professora e escritora. Como escritora, enveredou pela temática abolicionista com o conto A escrava e, em seu romance Úrsula, antecipa o gênero posteriormente seguido por outros escritores contemporâneos.
Nesse mesmo período, nasce e vive a baiana Escolástica da Conceição de Nazaré (1894-1986), descendente de uma linhagem de ialorixás (mãe de santo), nomeada Mãe Menininha do Gantois, que comanda o terreiro de candomblé fundado pelo bisavô, perpetuado até hoje.
No século XX-XXI, a catarinense Antonieta de Barros (1901-1951), professora, jornalista e deputada, fundou um jornal em que defendeu ideias feministas e foi a primeira deputada negra estadual no país, eleita como redatora da Constituição de 1934 para o campo da educação, cultura e funcionalismo.
Laudelina de Campos Melo (1904-1991), mineira, empregada doméstica e ativista. Dedicou-se à fundação da primeira Associação de Trabalhadores Domésticos, interrompida pelo Estado Novo, mas que retorna à luta após esse período, auxiliando na fundação de associações e pressionando legisladores para a melhoria de leis para o trabalho doméstico.
Mais recentemente, Marielle Franco (1979-2018), carioca, socióloga, ativista e vereadora, engajada com movimentos pelos direitos dos negros, torna-se vereadora com votação importante, sendo a terceira mulher negra a exercer o cargo de vereadora, foi assassinada ao retornar de um evento sobre mulheres negras. Nenhuma incriminação pelo assassinato foi esclarecida até presente data.
Aqui vamos nos repetir dizendo que todos esses nomes de mulheres fazem parte da memória da resistência negra. Certamente aqui não foram mencionados todos os nomes retratados pela história oficial nem aqueles que sabemos que, no passado, foram os das “heroínas” anônimas resistentes da vida cotidiana.
Várias são as personagens vivas e atuantes de resistência negra. Nossa sociedade não mais escravagista, mas racista, tem no presente Silvio Almeida e Djamila Ribeiro e tantos e tantas outras protagonistas, símbolos de luta pela igualdade de direitos fundamentais, sociais, políticos, ambientais e de desenvolvimento, mas é preciso dizer que relembrar e (re)conhecer o passado contribui para a preservação da memória nacional e apontamento para o futuro.
Nesse âmbito, a educação em direitos humanos importa muito nas escolas, como tema de estudo de todos, negros/negras e brancos/brancas. Importa por exemplo projetos pedagógicos que valorizem e transmitam a cultura originária africana em suas múltiplas dimensões; importa projetos que evidenciem o protagonismo do negro/da negra atual em suas múltiplas interfaces da cultura afro-brasileira; importa projetos que desnudem a violação dos direitos humanos em relação à pessoa negra; importa ainda projetos que tornem os alunos/alunas conscientes das leis e documentos oficiais, entre eles, a constituição brasileira, o estatuto da igualdade racial, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente); importa muitas outras propostas. Contudo, importa também compartilhar nas escolas, lembrando a lei nº 10.639 de 09 de janeiro de 2003*, que há uma história de resistência negra a ser recuperada sempre, porque faz parte da história de todos nós, brancos e negros, que nos constitui e precisa ser resgatada e valorizada no presente.
Lembrando a leitura de Escravidão, volume I,de Laurentino Gomes e retornando mais uma vez ao passado feminino africano, no litoral angolano, mais exatamente no Museu das Forças Armadas de Luanda, diante das muralhas da Fortaleza de São Miguel, há ali uma estátua de uma mulher: Nzinga (Ginga), também denominada Ana de Sousa. Nascida em 1582, à época da guerra entre chefes africanos e portugueses contra a busca de futuros escravos pelo interior do território, há mito e realidade em torno de sua história como diplomata astuta e como guerreira, Ginga tornar-se rainha, chegando a aglutinar 80 mil guerreiros em sua causa contra os portugueses. Viveu por 81 anos e depois dela, os reinos de Andongo e Matamba, foram ocupados por mulheres por mais 80 anos. Mais uma história de resistência negra feminina da qual é preciso dar visibilidade, buscando sempre a promoção da igualdade de gênero.
Por ora, terminamos esta reflexão com duas perguntas: o trecho do poema de Jarrid Arraes dedicado à Aqualtune poderia ser dedicado também a Ginga e lido nas escolas? Quantos séculos serão necessários para que Marielle Franco tenha uma estátua fincada no solo do litoral carioca para que todos os brasileiros a vejam, assim como os africanos e africanas de Angola veem Ginga hoje?
(*) Importante lembrar que esta lei altera a lei Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei de nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a História e Cultura Afro-brasileira.