Quando um fato se torna memória costuma sofrer algumas mutações, até involuntárias; há inevitavelmente diferenças grandes ou pequenas entre o que aconteceu e como é recordado. Mesmo as descrições mais racionais não são totalmente fiéis, o que o narrador conta é a sua visão particular do evento, sempre sujeita à sua opinião e particularidades cognitivas. Quem testemunha um acidente ou um crime geralmente não está prevenido para isto, e sua visão é comprometida pela surpresa, pelo susto ou pelo medo; relato posterior, mesmo em juízo, pode ser honesto e fidedigno até certo ponto, o suficiente para esclarecer a investigação, mas não trará a verdade absoluta, e nem a isso se destinam os processos investigativos.
Um grupo de amigos de longa data que se reúne a recordar os “velhos tempos” está na verdade narrando lembranças particulares com os vieses do que mais marcou cada um deles nos acontecimentos lembrados. E podem se surpreender com a constatação de que viveram vidas diferentes na mesma época e lugar, valorizando ou não outras festas, viagens, namoros, venturas e desventuras.
Pode-se dizer que todas as pessoas vivem várias histórias, vão contando o vivido ao longo da existência, e elas mudam ou vão se transformando na dependência de um modelo interpretativo dos acontecimentos. Alguns pesquisadores chegam a dizer que o passado não é imutável, ou seja, na medida em que avançamos em maturidade ou compreensão de certos fatos, ao contar nós os mudamos um pouco, e o velho ditado de “quem conta um conto acrescenta um ponto” termina por ser verdadeiro inclusive nos relatos de nossa vida.
Assim é que algo entendido como uma grande injustiça na extrema juventude pode ir se tornando mais palatável ao longo dos anos, quando toda a cadeia de eventos podem ser relacionadas, e as razões de outros mais perceptíveis a nós.
Isso acontece por ser toda narrativa constituída a partir de três componentes: uma determinada história, abrangendo personagens envolvidos em certos acontecimentos, num específico espaço e tempo que fornecem a primeira interpretação do que é contado; um discurso, que é a forma particular como qualquer história é apresentada; e por fim um significado, uma interpretação posterior que o receptor desta história vai estruturar internamente, colocando seus próprios pontos de vista no relacionamento entre história e discurso entendidos.
É sempre importante distinguir entre narrativa e história, pois fatos constituem a história, enquanto o método que investiga e descreve o fenômeno só pode concretizar-se por meio das narrativas, que terminam na verdade sendo a forma como explicamos o mundo. Numa guerra, por exemplo, relatos de vencedores e vencidos diferem frontalmente, e é bastante compreensível que assim seja; cada um de nós percebe a realidade de forma distinta, e o sentido atribuído a determinadas situações é alterado pelas nossas crenças, religiosidade e cultura de nossa comunidade. Representações nos permitem decodificar e interpretar as situações vividas, dando a elas significados. Em todo esse processo a linguagem é essencial, pois não somente criamos com ela histórias, pessoais ou comunitárias, mas também organizamos a experiência diária como a de nossa civilização.
Por meio de nossa relação entre o cotidiano e sua expressão cultural é que manifestamos a riqueza de nossa vivência, em toda sua diversidade e complexidade. Consequentemente, é preciso desconstruir a tendência dominante, tanto nos discursos da direita como da esquerda, de minimizar o cotidiano, como se nele não transcorrêssemos grande parte de nossa experiência, burilássemos nossa ideologia e praticássemos o diálogo entre as incongruências e teorias opostas dos modos de pensar dominantes na sociedade contemporânea, que tem se intensificado nos últimos meses.
Uma reflexão oportuna nos tempos em que vivemos. Discutimos nossas relatividades como se fossem certezas com a desenvoltura dos sábios. Adorei o artigo.