Inicio este artigo, fazendo um resgate histórico que para alguns pode parecer redundante, porém, defendo que a lembrança histórica deve ser sempre bem tratada e divulgada. Assim, relembramos aqui que entre os anos de 1939 e 1945, a humanidade registrou um dos seus períodos históricos de maior violência: a segunda guerra mundial.
Um leitor ou uma leitora mais crítico(a), pode agora estar pensando que esta afirmação pode ser questionada, considerando as inúmeras outras guerras que já aconteceram no decorrer da história da humanidade. Sim, não há dúvida que, infelizmente sempre há, em algum lugar do mundo, grupos que travam conflitos e que ocasionam irreparáveis perdas humanas. Contudo, no que se refere a uma guerra, o que se espera é que os combatentes dos dois lados estejam equipados com seus melhores armamentos, e que o possível vencedor desta guerra, deverá usar além de suas armas, estratégias de ataque e defesa que possam lhe garantir a vitória sobre o oponente. No entanto, a segunda guerra mundial foi marcada pelo extermínio de milhares de pessoas que tiveram além de suas vidas ceifadas, sofreram violências, humilhações, sendo-lhes foi tirado inclusive a dignidade, como foi o caso de judeus, negros, homossexuais, Testemunhas de Jeová (seguidores de uma religião cristã) e deficientes físicos e mentais.
Grupo | Número de Mortes |
Judeus | 6 milhões |
Pessoas com deficiências | Por volta de 250.000 |
Ciganos | Por volta de 250.000 |
Testemunhas de Jeová | Cerca de 1.900 |
Homossexuais | Centenas, possivelmente milhares (presumivelmente agregados de forma parcial dentre os criminosos reincidentes e aqueles denominados como antissociais) |
E, no que se refere ao número de negros/pretos, vítimas dos horrores desse período, o que se encontra é uma lacuna nos dados oficiais sobre seu desaparecimento. Em artigo publicado no Portal Geledés, intitulado: Negros, vítimas esquecidas do nazismo (2016), localizamos a seguinte informação, sobre o paradeiro desses homens e mulheres negras/pretas, durante a segunda Guerra, principalmente na Alemanha:
Eram negras e negros que haviam construído suas vidas na Alemanha, se casado com alemães e alemãs e com eles gerado filhos – os chamados Rheinlandbastarde (bastardos da Renânia). Muitos deles foram mais tarde esterilizados à força pelos nazistas. A máquina de propaganda nazista atacava as pessoas de cor. Eram rotuladas como uma perigosa peste. E assim elas sumiram da vida pública. O que restou foi uma montanha de papéis da burocracia. As pessoas simplesmente desapareceram, segundo Martin, que há anos dedica-se à história da minoria negra na Europa.
Reitera-se, portanto, que a Segunda Guerra Mundial fez com que os horrores da violência extrapolassem as frentes de batalhas, atingindo muitos inocentes, a ponto de causar comoção e preocupação em toda a humanidade que, no ano de 1948, por meio dos membros da ONU (Organização das Nações Unidas) estabeleceram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, buscando evitar que aquela história de horror, viesse a se repetir. Desde então, o que se registra é que há em todo o mundo a busca pela divulgação dos artigos desta Declaração e também a conscientização, principalmente por meio da Educação em Direitos Humanos para que a vida seja respeitada acima de tudo. Muitos têm sido os avanços, no entanto, a realidade atual brasileira nos aponta um longo caminho a ser percorrido.
No último dia 27 de agosto, o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apresentou o mais recente Mapa da Violência no Brasil e, infelizmente, revelou que este caminho a ser percorrido em busca de uma cultura de paz, está apenas começando.
Apesar de o número de homicídios ter tido uma redução de 12% em 2018, em relação ao ano de 2017, a violência contra a mulher (principalmente as negras/pretas) e contra os LGBTQI+ tiveram um aumento.
E no que se refere aos nossos jovens, tivemos uma redução nos índices, considerável, porém, os números ainda são extremamente alarmantes, como podemos identificar nos dados a seguir:
Ao tratar da importância da promoção de uma cultura de paz, a Profa. Dra. Irene Franciscato, em seu último artigo publicado aqui nesta mesma coluna, nos apresentou os princípios fundamentais que levam à cultura de paz e são importantes ferramentas contra o ódio, a intolerância e o preconceito. São eles: a liberdade, a justiça, a democracia, os direitos humanos, a tolerância e a igualdade social. Contudo, a autora nos chamou a atenção para o papel do Estado, no que se refere principalmente ao último princípio, destacando que:
O último princípio citado, o da igualdade social, há muito vem sendo descumprido pelo Estado. A falta de políticas públicas, seja nas áreas de educação, saúde, habitação, saneamento, meio ambiente, etc., criam desigualdade social que gera opressão que, por sua vez, gera ódio, que acaba se transformando em preconceitos (FRANCISCATO, 2020).
Eis um ponto importante para não só analisarmos os dados referentes à violência no Brasil, mas também para lançarmos uma questão: a quem compete representar o Estado no cotidiano social? Obviamente que o conceito de cidadania, por si só, já engloba uma série de posturas sociais que devem ser pautadas no dever e no direito e, consequentemente, em ações de antiviolências, seja por parte de uma pessoa pública ou por qualquer cidadão ou cidadã. No entanto, vivemos um período histórico onde, infelizmente, o gesto de se fazer “arminha” com a mão ou o ato de se destruir uma placa que dá nome a uma rua pública e que faz homenagem à Deputada Marielle Franco ─ uma mulher preta, que foi brutamente assassinada em um atentado onde os culpados, até a presente data, não foram apontados ─, são atos oriundos de pessoas públicas: políticos e governantes que, como representantes do Estado, deveriam se portar de maneira menos violenta.
Infelizmente, nossos registros não se encerram nessas citações. Ao que me parece, estamos vivendo um período de aparente “banalidade” quanto à vida humana e quanto ao respeito ao próximo e, entre os tantos episódios lamentáveis que temos visto, ouvido, assistido e, por vezes, presenciado, vou me ater aqui à lembrança de um mais recente, exposto em plena sessão plenária da ALESP (Assembleia Legislativa de São Paulo), por parte de um Deputado Estadual. Ocorre que o senhor deputado, declaradamente incomodado com um vídeo, que está circulando pelas redes sociais, onde um grupo de jovens chuta uma bola de futebol, representada pela cabeça do Presidente da República, ao invés de discursar em plenária, ponderando a necessidade de se questionar sobre o desrespeito ao chefe do Executivo brasileiro ou mesmo sobre a necessidade da preservação da figura humana, decidiu expor aos parlamentares imagens dos corpos de Carlos Lamarca e Carlos Mariguella, ambos assassinados durante o período da ditatura militar no Brasil.
Segundo descrição em ata da Plenária da Câmara dos Deputados paulista, o Deputado teria dito que:
Identifica-se que o Deputado até chega a expor sua indignação quanto ao desrespeito pela pessoa do Presidente, no entanto, sua estratégia de manifestar tal indignação por meio de imagens que se reportam a assassinatos, definitivamente não demonstram uma preocupação de fato, com a questão da violência, mas sim coloca em questão o posicionamento de uma figura pública diante das situações de violência e de violações dos Direitos Humanos, principalmente no que se refere a um período da história do Brasil que causou tanto sofrimento e que ainda causa.
É preciso lembrar que:
Em 1948, registramos que, como forma de combater a violência, a humanidade se uniu e entre as ações possíveis para aquele momento histórico, surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que desde então vem embasando ações individuais e coletivas de combate à violação dos artigos desta Declaração e, veementemente o combate à violência. No entanto, estamos em 2020 e muita coisa ainda precisa ser mudada, muita luta ainda precisa ser travada. Atualmente, a Constituição Federal nos assegura o voto direto, secreto e universal, o que significa que os políticos, figuras públicas que podem e DEVEM proporcionar a igualdade social ─ um dos princípios para se promover a cultura da paz ─, também devem REPRESENTAR em suas ações e intenções a uma sociedade que deseja alcançar essa cultura de paz, cabendo a nós, cidadãos e cidadãs, estarmos atentos/atentas a essa representatividade, antes, durante e depois das eleições, pois é o meu, o seu, o nosso VOTO que pode ser a alavanca para que os artigos da Declaração dos Direitos Humanos passem a ser menos violados; para que haja alterações significativas no Mapa Anual de Violência no Brasil e para que as Assembleias Legislativas passem a comemorar mais a vida, a juventude, as conquistas coletivas e quem sabe, ainda possa nos auxiliar na promoção da Educação em Direitos Humanos.
REFERÊNCIAS
ALESP. 58ª Sessão ordinária, de 16/09/2020. Ata disponível em:https://www.al.sp.gov.br/repositorio/ementario/anexos/20200923-171557-ID_SESSAO=14275.htm
DIETRICH, A. M. e MARÓSTICA, N. Durante a ditadura. DIETRICH, A. M.; SALA, J. B. e SANTOS, S. L. (Org). Educação, Ética e Regime Militar no Brasil. Santo André (SP), Universidade Federal do ABC, 2017.
ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO. Disponível em:https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/documenting-numbers-of-victims-of-the-holocaust-and-nazi-persecution. Acesso em 11/09/2020.
FRANCISCATO, Irene. Desafios para uma cultura da paz no novo normal. Contemporartes: Revista mensal de difusão cultural (Coluna Grupo de Pesquisa Educação em Direitos Humanos – UFABC); 2020. Disponível em: https://contemporartes.com.br/2020/09/12/desafios-para-uma-cultura-da-paz-no-novo-normal/. Acesso em 12/09/2020.
Portal Geledés. Negros, vítimas esquecidas do nazismo (03/02/2016). Disponível em:https://www.geledes.org.br/negros-vitimas-esquecidas-do-nazismo/. Acesso em 11/03/2020.
Portal Memórias da Ditadura. Disponível em:http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/carlos-lamarca/. Acesso em 11/09/2020.
Muito esclarecedor este artigo.
Parabéns, vou utilizá-lo como referência em minhas aulas de Geografia.
Obrigada Oleci, por acompanhar nossa coluna! Que bom que este artigo lhe poderá ser útil!