O ano que agora termina não foi um ano feliz. Em 2020 a Peste matou milhares de pessoas, os sensatos se afastaram de seus familiares e amigos para preservá-los e se preservar, os insensatos se aglomeraram e alimentaram o monstro. Os rios secaram. Queimamos, deixamos queimar, nossas florestas; nuvens de gafanhotos se aproximaram da fronteira, continuamos a não poder saber quem mandou matar Marielle. A ignorância e a brutalidade pareceram ter tudo, e exacerbaram o orgulho de si mesmas.
Neste ano não pudemos abraçar quem amamos, sequer pudemos velar nossos mortos. E assistimos, perplexos e enojados, aqueles a quem foram delegados poderes para liderar o país delirarem em negacionismo e pensarem apenas em seus interesses sórdidos. Tanta infâmia, tanta desgraça, remetem às pragas bíblicas tradicionais: águas contaminadas, insetos malignos, morte de animais, gafanhotos, granizo, seca. Há até um primogênito sob risco de prisão.
Mas não foi nenhuma divindade que enviou o castigo, fomos nós, com nosso descuido, com nossas más escolhas, com o azar de termos dirigindo o país um incompetente, racista, misógino, homofóbico e ignorante, eleito legitimamente, com as mesmas urnas eletrônicas que procura sabotar.
Somos melhores que isso tudo. Nossos pais, nossos avós, sobreviveram à crise da década de 1930, à segunda guerra mundial, à ditadura militar, à hiperinflação, sobrevivemos ao período de acomodação democrática em que as escolhas políticas se radicalizaram, – nós e eles – esquecendo que todos nós somos “nós”. Não somos, jamais seremos, “maricas” segundo a interpretação machista-cafajeste atribuída ao termo. Resistimos, resistiremos, essa pandemia vai passar, embora muitos façam tudo para que não passe, o custo humano e material será imenso, já está sendo, muitos sucumbiremos, não todos, mas os que sobreviverem terão aprendido alguma coisa.
No final dos anos 1970, quando a ditadura militar estertorava, algum ideólogo de plantão pretendeu maquiá-la chamando-a de “democracia relativa”. As dúvidas foram muitas, sintetizadas em “relativa a quê?”, mas não puderam ser devidamente esclarecidas por que a relatividade se sobrepunha à democracia. No zoológico de São Paulo uma girafa deu à luz um filhote, e a primeira foto do rebento enterneceu o país; o cronista Lourenço Diaféria publicou em sua coluna na Folha de São Paulo: “uma girafinha alegra a vida, mesmo em uma democracia relativa”. Esta e outras “provocações” o levaram a ser preso e processado pelos heróis de nosso atual governante, os dias eram assim.
Quando parece não haver motivo para esperança e alegria, quando todo otimismo soa ingênuo, então é o momento de reaviva-los. As festas natalinas vêm de uma grande tradição, a Saturnália dos antigos romanos, o nascimento de Jesus em uma manjedoura, as festividades de solstício de inverno, o pinheiro eternamente verde dos povos germânicos, o presépio que nos foi legado pelos portugueses. Tudo sempre marcando a passagem de um tempo e o início de outro tempo, a renovação da natureza e das crenças e das pessoas.
Tentemos acreditar, por nossas crianças, por nossos irmãos, por nós mesmos, não acabou, não vai acabar, estaremos melhor. A vacina, apesar de todos os desmandos, ignorância e fake news está próxima, países com governos dignos deste nome já estão administrando muitas delas a seus cidadãos, produtos mais autênticos da ciência e da tecnologia, mostrando que, assim como vencemos a poliomielite, o sarampo e muitas outras doenças que já atormentaram a humanidade, eliminaremos também essa.
“Como dois e dois são quatro, sei que a vida vale a pena, mesmo que o pão seja caro e a liberdade pequena…” valia para o poeta Ferreira Gullar quando os tempos eram difíceis, vale para nós nesse tempo tão estranho e também difícil.
Feliz Natal, e que o próximo ano seja melhor. O Natal também alegra a vida, mesmo em quarentena. Não vamos desistir de nossas tradições afetivas e emocionais, embora desta vez em ambiente mais restrito, com familiares e amigos à distância.