Izabel Cristina Liviski
Vanisse Simone Alves Corrêa
Sonia Maria Chaves Haracemiv
Resumo: O artigo apresenta um levantamento dos trabalhos publicados na Revista Cadernos Pagu nas temáticas de prostituição e aliciamento. Também faz um breve relato de experiência sobre o que se observou na cidade de Três Lagoas/ MS, em uma visita realizada em junho de 2012, em locais de prostituição. Nessa realidade o que chamou a atenção foi a presença de jovens travestis. Demonstra, de maneira geral, a legislação que protege a criança e o adolescente. Metodologicamente, para o levantamento junto à revista, utilizou-se como filtro os verbetes aliciamento e prostituição infanto-juvenil. No campo empírico, a abordagem foi realizada com jovens de 15 a 19 anos em seu espaço de atuação e as informações foram coletadas por meio de conversas informais. O artigo conclui que, apesar da grande demanda, há pouca produção acadêmica da temática estudada no periódico analisado.
Palavras-chave: Aliciamento e prostituição infanto-juvenil. Revista Pagu. Legislação sobre a criança e o adolescente.
Introdução
A infância e a adolescência são períodos muito especiais na vida de todo ser humano, mas não podem ser reduzidas somente às idades dos sujeitos. Um ser humano se constrói e se coloca no mundo a partir de múltiplos referenciais. De fato, segundo Sousa, Miguel e Lima (2010),
(…) não nos parece possível pensar a infância e a adolescência reduzidas a períodos etários, mas como temporalidades ou como sujeitos que existem em um tempo não cronológico, não linear, mas que reúne aspectos diversos de um mesmo contexto (SOUSA, MIGUEL E LIMA, 2010, p. 30).
Assim, pesquisar sobre crianças e adolescentes exige que se pense para além do seu desenvolvimento físico. As crianças e adolescentes situam-se na sua realidade a partir da cultura e meio em que estão inseridos. Experimentando inúmeros estímulos e vivências, consolidam sua identidade.
Para Sousa, Miguel e Lima (2010, p. 31), as crianças e adolescentes, pelo fato de ainda estarem em desenvolvimento, não se reconhecem como seres únicos e diferentes, necessitando de espaços criativos (individuais, sociais, culturais e afetivos) para que possam expressar todo seu potencial genético, que pode ser entendido como o conjunto de características únicas de cada indivíduo (PERALVA, 2005). Assim, para se desenvolverem plenamente, as crianças e adolescentes necessitam de apoio, orientações e cuidados constantes. Não porque sejam incapazes, mas sim por serem sujeitos em desenvolvimento. Nesse caminho de crescimento, precisam ser resguardados de todo tipo de violência, inclusive a sexual.
A violência, como fenômeno social, pode surgir a qualquer momento e em qualquer ambiente. Para Stoltz e Walger (2009),
A violência normalmente surge como um resultado de uma complexa realidade dinâmica da sociedade, na qual diferentes conceitos, fundados em uma cultura já estabelecida, estão envolvidos. Dentre eles, os que definem o meio familiar, o social, o escolar, o econômico e o político. Esses conceitos são traduzidos por meio de valores (STOLTZ e WALGER, 2009, p. 161).
A violência sexual é fruto desta dinâmica, mas também das relações de poder e gênero, entre outras. Para Giron (2010),
A violência sexual contra a criança e o adolescente se configura como uma das violações de seus direitos e se caracteriza pela transgressão da sua intimidade, com base em relações de mando e obediência. É marcada pela perversão e pela ausência de escolhas quando a vítima é uma criança (GIRON, 2010, p, 64)
Ainda segundo a autora, a violência sexual contra a criança e o adolescente “é inaceitável, é ilegal, fere a ética e transgride as regras sociais e familiares de convivência mútua e de responsabilidade dos adultos” (GIRON, 2010, p. 65). O prejuízo acarretado às crianças e adolescentes que sofrem violências sexuais são enormes. Giron (2010, p. 65) cita alguns:
– As relações sócio-afetivas e culturais entre adultos e crianças/adolescentes são deturpadas;
– As representações sociais são descaracterizadas, o que deixa as crianças e adolescentes confusos quanto aos papéis dos adultos;
– As relações entre adultos e crianças/adolescentes são invertidas. Tornam-se desumanas, negligentes, agressivas, dominadoras e perversas, ao invés de protetoras, solidárias, democráticas e amorosas.
– Existem possibilidades de que o sujeito violado sexualmente desenvolva estruturas psíquicas, morais e sociais pervertidas.
Crianças e adolescentes violados não têm o direito de se desenvolverem plenamente e se tornarem adultos felizes. A violência e exploração a que são submetidos deixa profundas marcas psicológicas, o que os impede de crescer de maneira saudável e natural. Muitas vezes, é preciso anos de tratamento e acompanhamento para readequá-los e reinseri-los novamente na sociedade.
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é ao mesmo tempo, crime e violência. Essa população é atraída para o mercado do sexo, iludida por falsas promessas se torna vítima indefesa de adultos inescrupulosos que visam o lucro. O aliciamento pode ser definido como o ato de atrair para si, seduzir, forçar ou levar alguém a fazer algo que não queira. Assim, o aliciamento é a principal arma para manter o mercado do sexo funcionando.
Para Giron (2010), devido ao caráter econômico da exploração sexual, ela
(…) deve ser estudada e compreendida no contexto do sistema capitalista e da sociedade de consumo globalizados, em suas articulações com as atividades mercantis dos territórios onde ocorre. A exploração sexual comercial que enreda crianças e adolescentes, acontece num mercado específico: o mercado do sexo, que toma a corporeidade do outro como mero objeto de satisfação alheia. Esse mercado abrange, de maneira profundamente articulada, o agenciamento sexual e a indústria pornográfica. É sustentado pelo lucro derivado da exploração do trabalho sexual, de mão-de-obra de adultos subordinados e de população infantojuvenil (GIRON, 2010, p. 70).
Infelizmente, cada vez mais crianças e adolescentes são aliciados e movimentam altas quantias de dinheiro, trazendo lucro com a violência realizada contra seu corpo e sua dignidade. A autora destaca que a oferta de serviços sexuais, durante muito tempo esteve representada apenas pela prostituição. Mas isso vem mudando, com o advento da tecnologia, Internet e dos meios de comunicação, o que incrementa a produção de mercadorias e serviços sexuais. Tudo isso “contempla a fantasia generalizada de pedófilos e outros abusadores” (GIRON, 2010, p. 71). Paralelamente ao avanço e diversidade dos “produtos sexuais”, também
O conceito e as concepções acerca da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes evoluíram nas últimas décadas. Durante muitos anos, a presença de crianças no comércio sexual confundia-se com a prostituição infanto-juvenil. O incremento do turismo sexual, a rápida expansão do sexo via a Internet, levaram à compreensão de que a pornografia, o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais são também formas de exploração de crianças e de adolescentes, no organizado negócio de produção e comercialização de “mercadorias” sexuais (GIRON, 2010, p. 71).
Além disso, enfatiza a autora, a compreensão do fenômeno de exploração sexual de crianças e adolescentes adquiriu uma dimensão política e ética, pautada na cidadania e nos direitos humanos. Por esse viés, a exploração sexual se constitui como um crime contra a humanidade.
Em relação ao comércio eletrônico de pornografia infanto-juvenil, a autora assevera que
(…) é um negócio que envolve desde esquemas amadores até redes criminosas de alta complexidade. Por se tratar de crime cibernético, de âmbito mundial, seu enfrentamento se depara com enormes dificuldades operacionais e legais. No Brasil, a Polícia Federal e a Interpol têm sua ação dificultada pela deficiência da legislação vigente. Existem variadas formas de pornografia que envolvem crianças e adolescentes, inclusive a difusão de imagens de abuso sexual de crianças de tenra idade, em cenas de sexo perverso e sádico. Há sites que vendem espetáculos de pornografia com crianças em tempo real, e mesmo de necrofilia (GIRON, 2010, p. 75)
A autora ainda destaca a importância de se observar a íntima relação entre a pornografia infanto-juvenil e o tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual.
Para Stoltz e Walger, 2009, a exploração sexual se traduz de várias formas como prostituição, tráfico e venda de pessoas, turismo sexual e pornografia infantil. Em relação à exploração sexual contra crianças e adolescentes, ela “é praticada por pessoas de todas as classes sociais e na maioria das vezes, por indivíduos do sexo masculino” (Stoltz e Walger, 2009, p. 161).
A prostituição, para Giron, (2010), pode ser entendida como “uma atividade na qual, atos sexuais são negociados em troca de dinheiro, da satisfação de necessidades básicas como alimentação, vestuário, abrigo, ou do acesso ao consumo de bens e serviços” (GIRON, 2010, p. 73). Ou seja, as pessoas não se prostituem somente por dinheiro, mas também para satisfazer suas necessidades básicas como a fome. Isso é muito triste e demonstra o grau de subordinação que às vezes, as pessoas que se prostituem estão subordinadas.
A prostituição pode ser exercida de diferentes formas e em variados lugares. No caso das crianças e adolescentes, a autora ressalta que essa população em geral trabalha nas ruas, portos, estradas, bordéis. Em relação ao Brasil,
(…) na Região Norte do Brasil, eles/elas seviciam meninas e meninos que trabalham em regime de escravidão e que normalmente estão envolvidos com o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais. Muitas dessas crianças e adolescentes moram nas ruas, são vítimas de violência e encontram-se em circunstâncias de extrema pobreza e exclusão social. De ambos os sexos, crianças, pré-adolescentes e adolescentes quase sempre têm pouca ou nenhuma escolarização. As atividades a que são obrigados/as a realizar são extremamente perigosas e eles/elas estão sujeitos a todo tipo de violências, da repressão policial à discriminação (GIRON, 2010, p. 73).
Ainda em relação ao termo prostituição, quando se refere a crianças e adolescentes, a autora afirma que muitos pesquisadores e estudiosos têm questionado o seu uso, já que essa população não escolhe espontaneamente essa atividade, mas são “cooptados a praticá-la e, portanto, são prostituídos” (GIRON, 2010, p. 73). Pela sua imaturidade emocional, carências e apelos da sociedade de consumo, são induzidos a praticar a prostituição. Assim, continua a autora, “não podem ser caracterizados como trabalhadores do sexo, mas sim como prostituídos, abusados e explorados sexual, econômica e emocionalmente” (GIRON, 2010, p. 73). Nesse sentido, todos aqueles que facilitarem, induzirem ou obrigarem crianças e adolescentes a se prostituir tornam-se exploradores sexuais, incorrendo em crime.
A legislação que protege a criança e o jovem
No Brasil, desde o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, esta população adquiriu status de sujeitos de direito. Do ponto de vista legal, isto é muito significativo, uma vez que o direito e garantia era sempre do adulto responsável pela criança e pelo adolescente. O direito se estendia para a criança, emanava do adulto para a criança, já que o sujeito de direito não era a criança e o adolescente e sim o responsável por elas.
A partir dessa mudança de paradigma, muitas ações puderam ser engendradas, o que trouxe muitas inovações para as instituições e profissionais envolvidos nessa questão. Com o surgimento de legislação específica para estes sujeitos de direito, houve um avanço no entendimento das questões referentes à infância e adolescência.
Somente a legislação, porém, não garante que o direito seja efetivado. Para que a lei atue na realidade social, é necessário que ocorra a mobilização de todos os atores envolvidos, como os órgãos do estado, escolas e Conselhos Tutelares.
Vivemos num Estado Democrático de Direito, o que pressupõe o cumprimento do que foi determinado pela lei. Em contrapartida, o cidadão tem seus direitos assegurados. A legislação que trata da proteção integral a crianças e adolescentes é muito ampla e busca assegurar que estes sujeitos possam crescer como cidadãos, conscientes de suas potencialidades e que futuramente possam contribuir para a manutenção de uma sociedade digna. Esta base legal, porém, levou muito tempo para se constituir. De fato, segundo, Mariano (2010),
O reconhecimento contemporâneo da criança e do adolescente como credores de um amplo leque de direitos percorreu (e ainda percorre) uma série de dificuldades. O tempo que separou a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989 – nada menos que dois séculos – sinaliza os percalços que a noção dos direitos da criança precisou transpor na sociedade moderna (MARIANO, 2010, p. 43).
Entender esse processo histórico, da busca pela garantia de direitos para a criança e o adolescente é condição indispensável para a sociedade civil assumir sua parcela de responsabilidade na efetivação destes direitos e na melhoria da sociedade como um todo.
Compreender que a criança e o adolescente são sujeitos de direito obriga que se olhe para além do assistencialismo. Exige compromisso com essa população, porque há legislação que determina o que deve ser feito para melhorar suas condições de vida. Entender suas necessidades pelo viés do Direito é o caminho mais adequado para promover e fortalecer seu desenvolvimento, o que deve ser realizado em um esforço coletivo, tendo como principais atores o Estado e a sociedade civil organizada.
Promover o desenvolvimento da criança e do adolescente é promover a vida e o futuro deste país, abrindo caminhos de esperança e de igualdade, dando a eles oportunidades de participação e expressão e possibilitando, portanto, o exercício efetivo do protagonismo infantil e juvenil.
O entendimento de que a infância é um fenômeno social ainda é muito recente. A imagem que a criança teve, ao longo da história, foi, recorrentemente, de um ser que não estava pronto ainda para se cuidar sozinho, como os adultos. Ao mesmo tempo, dadas as suas fragilidades, não podia invocar a proteção em seu favor. Dependia, portanto, da boa-vontade dos adultos.
O conceito ou idéia que se tem da infância construiu-se historicamente[1] e por muito tempo a criança não foi entendida como um ser em desenvolvimento, mas como um “pequeno” adulto. A partir desse conceito, entende-se que a concepção da criança é “vivida e aprendida a partir das construções feitas pelos adultos” (ROCHA, 2002). Assim, a história das crianças é registrada pelos adultos, a partir da perspectiva de um mundo já socialmente estruturado.
Desde a mais tenra idade a criança era preparada para viver em um contexto de maturidade. A infância era somente uma etapa pela qual se passava rapidamente. A linguagem, a vestimenta e as funções sociais eram iguais tanto para o adulto como para a criança. A criança era, em síntese, um adulto de menor tamanho. Nessa perspectiva, não havia respeito pela criança, havia altos índices de infanticídio e mortalidade infantil. Não havia sentimentos especiais em relação à criança, nem mesmo os de amor materno. Predominava a visão utilitária da criança, que se fosse jogada fora, poderia ser substituída por outra, rapidamente. A morte de crianças era vista de forma muito natural. O contexto familiar estruturava-se a partir de uma idéia social e não sentimental. Uma prática comum era dar a criança para outra família criar. Caso a criança sobrevivesse, voltaria para casa aos sete anos, quando seria então inserida na família e também no trabalho. Essa situação perdurou até o fim do século XIII. Mas a preocupação com o cuidado com as crianças só aconteceu bem mais tarde, a partir do século XVII, quando o poder público e a Igreja começaram a se preocupar com o infanticídio, até então tolerado. Algumas melhorias aconteceram para tentar diminuir o infanticídio, entre elas as condições de higiene.
A partir do século XIV, com o interesse da Igreja pelas crianças e o grande movimento de religiosidade cristão que se formou a partir disso, surgiu a figura mística da criança, vista como um anjo, associada ao Menino Jesus e também à figura maternal da Virgem Maria. Isso trouxe outros sentimentos pelas crianças, que até então não predominava: os da ternura e do carinho. Assim a criança começou a ser tratada e vista de uma maneira diferente, um novo sentimento aparece. A isso Ariès chama de “sentimento da infância”, que segundo ele, caracterizou-se por dois momentos muitos distintos. O primeiro refere-se à “paparicação”, que era motivada pela graça, beleza, ingenuidade e pureza da criança e pelo seu comportamento infantil, pela sua maneira de falar e pelas coisas “engraçadas” que realizava. Nesse momento, a criança é vista como uma diversão, um bicho de estimação, algo que agrada e alegra o mundo dos adultos. Esse ser que distrai e encanta tem que ser mantido vivo e os pais, especialmente as mães, começam a se preocupar com isso. Somente aceitavam perder a criança, caso fosse a “vontade de Deus”, o que não poderia ser contestada. Assim, melhorar as medidas de higiene e saúde tornou-se ainda mais importante.
O segundo momento, a partir do século XVII, é descrito como “apego” e surge justamente contra a “paparicação” que envolvia as crianças. O objetivo era separar a criança do adulto e educá-la de uma forma mais racional, mais disciplinada, em um contexto moral rígido. Assim, inicia-se a educação das crianças, controladora e extremamente disciplinadora. A religião impõe o modelo da família nuclear, em que o pai se torna a figura central, dotado da capacidade de ditar as regras e normas consideradas certas e que deveriam ser seguidas. A criança então se torna alvo de controle familiar e social.
Nesse período aparecem as primeiras instituições de ensino, o que favorece a busca pelo saber sobre as crianças e suas peculiaridades e pelas particularidades da infância. A família e a sociedade começam a se preocupar mais com as crianças. Isso mudou a relação social do adulto com a criança, que começam a se ocupar mais com questões ligadas à saúde e educação infantis. Nesse breve histórico, é possível perceber como a criança foi alvo de inúmeras representações equivocadas e muitas vezes cruéis, até que se chegou ao entendimento atual de suas peculiaridades e necessidades.
A representação social da criança e do adolescente é um importante fator para que se entenda em que medida essa compreensão sobre esse público específico impactou e ainda impacta na forma como a legislação e as políticas públicas se efetivaram e se efetivam na garantia, promoção e defesa dos seus direitos.
Experiência de campo: o pouco que diz muito
O trabalho de campo que se iniciou, ainda é incipiente face à complexidade do tema, mas já aponta direções para uma etnografia mais elaborada, com entrevistas estruturadas.
Esta pesquisa teve início pela demanda que surgiu do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, junto à Universidade Federal do Paraná. Foi verificado que a partir de empreendimentos levados a cabo pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) em várias localidades do país, tais como abertura de estradas e construção de pontes, surgem ocorrências para além dos previsíveis impactos ambientais, como novos e graves impactos sociais, representados pelo aumento da prostituição já existente, estupros e a incidência de aliciamento para a prostituição infanto-juvenil. Esses episódios ocorrem, em parte pela grande leva de trabalhadores do sexo masculino que migram geralmente do norte e nordeste para regiões do sudeste, sul e centro-oeste do país, desacompanhados de suas famílias, a fim de trabalhar nessas obras.
A presente pesquisa se deu na cidade de Três Lagoas (MS), onde está sendo construída uma ponte sobre o Rio Paraná na BR 262, ligando os estados do Mato Grosso do Sul e São Paulo.
A experiência de campo nesta localidade consistiu basicamente de algumas observações e conversas informais à noite nos bairros e mesmo no centro da cidade de Três Lagoas (MS), onde se encontrou um grande número de travestis menores de idade “fazendo ponto”. Estas observações aconteceram durante o mês de junho de 2012.
Em entrevistas não-estruturadas com alguns deles, verificou-se que a idade varia entre 15 e 19 anos. Algumas informações comuns foram coletadas:
– A identificação como sendo homossexuais desde a infância;
– Em geral vivem somente com a mãe e desconhecem o pai;
– A família não sabe que se prostituem;
– Consideram a prostituição como provisória, já que pretendem fazer um “pé de meia” para investir em outra atividade.
– Alguns se iniciaram “na vida”, como se referem à atividade, ainda muito jovens: entre os 12 e 13 anos de idade.
– Têm baixa escolaridade, daí a escolha da prostituição como uma forma “rápida e fácil” de ganhar um salário considerado elevado para eles: em média R$ 2.500,00 por mês.
Alguns deles usam perucas femininas e muita maquiagem para não serem identificados, já que a cidade onde vivem é pequena (pouco mais de cem mil habitantes). Outro detalhe importante é o consumo de drogas por
grande parte deles, inclusive nos locais onde ficam esperando os clientes.
Há os que consideram a atividade apenas como uma forma de “diversão”, um espaço de sociabilidade que estabelecem com os amigos que
os acompanham, já que há conversas, risadas, consumo de bebidas alcoólicas e drogas nos pontos onde se prostituem.
Essas observações, embora rápidas, podem ajudar a refletir sobre o campo e a fomentar novas pesquisas. Ressalte-se que o presente relato descreve os primeiros indícios encontrados na realidade, indicando que há material importante para a continuidade do estudo.
Larissa Pelúcio (2005), em seu relato sobre a etnografia que realizou entre as travestis da cidade de São Paulo diz que: “A prostituição é entendida de diversas formas pelas travestis: (1) como uma atividade desprestigiosa, com a qual só se envolveriam por necessidade, saindo dela assim que possível; (2) como uma forma de ascender socialmente e ter conquistas materiais e simbólicas; (3) como um trabalho, sendo, portanto, geradora de renda e criadora de um ambiente de sociabilidade” (PELUCIO, 2005, p..).
Essas não são posições estanques e definitivas, mas pontos de vista e percepções que se entrecruzam e dialogam. Como categoria espacial e
simbólica – ligada à noite, à boemia, aos prazeres e à prostituição –,
a rua seduz. (…) Na “avenida”, categoria êmica[2] para designar os
espaços da prostituição rueira, elas testam o sucesso de seus esforços
de transformação, “dando close” – exibindo-se e esnobando as outras –,
fazem amizades, aprendem a ser travesti a partir das trocas de
informações e da observação. Nos territórios da prostituição elas namoram, encontram e fazem amigas, compram roupas, aprendem técnicas corporais importantes, além, é claro, de ganhar seu ‘aqué’[3].” (PELUCIO, 2005, p..).
A descrição acima, apesar de se referir a travestis adultas, maiores de idade, se assemelha muito ao comportamento e mentalidade observados entre as jovens travestis na cidade de Três Lagoas.
A temática Prostituição e aliciamento na Revista Pagu
Segundo o site do Scielo[4], a revista Cadernos Pagu é uma publicação que se iniciou em 1993 e vem se constituindo em um elemento importante para a constituição do campo dos estudos de gênero no Brasil. Somente a partir de muitas leituras, discussões e análises do Núcleo de Estudos de Gênero, da UNICAMP, decidiu-se criar a revista Cadernos Pagu. No primeiro número, somente pesquisadores do Núcleo de Estudos de Gênero apresentaram suas produções. A partir do segundo número, a revista abriu espaço para outros pesquisadores brasileiros e estrangeiros. A revista Cadernos Pagu é publicada semestralmente, com diversas áreas de interesse, entre as quais Sociologia, História, Ciência Política e Educação.
A escolha deste periódico se deu pela importância que ela representa, junto à comunidade acadêmica, nas discussões sobre temas de grande relevância para a vida em sociedade. Justamente por não se tratar de uma publicação específica sobre crianças e adolescentes, é que ela se torna uma importante referência para se diagnosticar, em que medida pesquisadores de áreas afins oportunizam o debate e a reflexão necessárias para o enriquecimento da área avaliada.
O objetivo desta análise foi verificar, junto às 39 edições da Revista Pagu, o grau de incidência de pesquisas/relatos sobre as temáticas aliciamento e prostituição infanto-juvenil. Metodologicamente, iniciou-se um levantamento dos temas contemplados em cada dossiê. Somente duas edições priorizaram as questões afins aos verbetes buscados: a Edição n.º 25, de 2005, Mercado do Sexo e a Edição n.º 26, de 2006, Repensando a Infância. O dossiê 25, dedicado ao mercado do sexo, procurou, entre outras questões, pensar sobre as marcas de gênero que perpassam a indústria do sexo. Este dossiê não apresentou nenhuma pesquisa sobre aliciamento e prostituição infanto-juvenil.
Já o dossiê 26 procurou realizar uma leitura da produção científica sobre a categoria infância no Brasil e em outros países e apresentou dois artigos referentes à temática buscada. São eles:
– Afinal, quem é mesmo pedófilo?, de Jane Felipe, em que a autora problematiza alguns dos aspectos relevantes em torno das modalidades dos desejos eróticos/sexuais e a ressignificação desses conceitos, a partir de uma análise pós-estruturalista. A autora conclui que esses comportamentos fogem às categorizações pré-estabelecidas.
– Violência sexual contra crianças na mídia impressa: gênero e geração, de Tatiana Savóia Landini. Neste artigo a autora faz um resgate do que foi publicado sobre as diversas formas de violência sexual contra crianças e adolescentes, tais como incesto, pornografia infantil e pedofilia, pelo Jornal O estado de São Paulo, no século XX. A autora busca chamar a atenção para a forma como os crimes sexuais eram noticiados e para os sentimentos sociais presentes nestes textos. Concluindo, a autora entende que houve mudanças relevantes na forma de noticiar as violências sexuais.
O que chama a atenção na análise realizada, é a baixíssima produção acadêmica sobre aliciamento e prostituição infanto-juvenil encontrada na publicação que se privilegiou para o levantamento, apesar da importância do tema.
À guisa de conclusão
O objetivo deste relato foi o de fomentar a discussão sobre as temáticas de aliciamento e prostituição infanto-juvenil. A inquietação inicial surgiu a partir da constatação de uma realidade inesperada, encontrada em Três Lagoa/MS, no contato com as jovens travestis. O que se buscou foi apresentar um diagnóstico preliminar da situação, e o que se constatou foi a necessidade urgente de aprofundar as reflexões necessárias para mudar a realidade social. Crianças e jovens são aliciadas e levadas para o mercado do sexo. Homens e mulheres ganham dinheiro às custas de uma indústria que cresce a cada dia mais. Essas crianças e jovens são vítimas de um sistema cruel e desumano, que não leva em conta o estado de desenvolvimento em que se encontram, aproveitando-se das suas fragilidades e necessidades para envolvê-los em redes criminosas. É importante lembrar que crianças e jovens são sujeitos de direitos, protegidas por uma legislação forte e por órgãos governamentais e da sociedade civil.
A maioria dos autores consultados, aborda o tema da prostituição infanto-juvenil como um meio de sobrevivência, sendo que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), caracteriza a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (ESCCA) como a modalidade de trabalho infantil mais degradante já identificada. Sendo produto de uma sociedade extremamente desigual, adultocêntrica e machista, acarreta graves conseqüências para as crianças e jovens envolvidos, principalmente seqüelas mentais, envolvendo as áreas da emotividade e afeto.
No discurso das jovens travestis fica claro que elas atuam no mercado de sexo por opção própria, até encontrar outro trabalho ou para garantir seu sustento. Não se reconhecem como vítimas e sim sujeitos que escolhem de livre vontade, a prostituição. É possível, em consonância com Giron, 2010, refletir sobre o grau de violência que é cometido contra essa população. Sua juventude, inexperiência e imaturidade emocional às leva a pensar que estão se prostituindo por opção. Não conseguem visualizar a teia social da qual fazem parte, nem as inúmeras e complexas relações de poder e as ilusões de uma sociedade consumista que as levam a se prostituir. Nesse sentido, não podem ser consideradas como profissionais do sexo, mas como jovens e adolescentes prostituídos e violados em seus direitos mais elementares.
Referências:
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Acessado em 13/06/2011
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Acessado em 08/06/2011
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VERONESE, J. R. P. Temas de direito da criança e do adolescente. São Paulo: LTR, 1997.
Enviado em Outubro de 2012.
[1] ARIÉS, 2006.
[2] Antropologicamente é a cultura de certos grupos ou sociedades. In: http://www.dicionarioinformal.com.br/%C3%AAmico/ acesso em 18/10/2012.
[3] Na gíria dos travesties, significa dinheiro.
[4] In: http://www.scielo.br/revistas/cpa/paboutj.htm
Imagens: Retiradas da Internet, sem fins lucrativos.
Um tema palpitante e necessário. Também complexo. Há que se considerar que a prostituição (a mais antiga das profissões) existiu desde o início das civilizações sob formas históricas e motivações as mais variadas. Vide acima que a ênfase na prostituição enfocada na sociedade capitalista limita um fenômeno (talvez de forma premeditada) que ocorre também em sociedades não capitalistas (Cuba, por exemplo) e pré-capitalistas (vida literatura clássica). Quando se trata da prostituição feminina x masculina o fenômeno fica ainda mais complexo, pois inferi, pelo que foi apresentado, que os travestis, em parte, não pertencem a um universo de exploração de cafetões, mas “se divertem” e “socializam” em sua atividade. Enfim, um universo de pesquisa maravilhoso. Mais uma iniciativa louvável da revista. Parabéns, Izabel e co-participantes.
Excelente e oportuna matéria!
Matéria pesada e necessária que abrange amplamente o assunto. Parabéns aos autores e pela iniciativa da divulgação.