A ORQUÍDEA E A NÁUSEA

Em 1938, quando a ameaça nazista já se agiganta nas fronteiras, Jean-Paul Sartre publica seu primeiro romance, “A Náusea”. Seu protagonista, Antoine Roquentin, sofre de uma contínua náusea, causada por um crescente estranhamento da realidade cada vez mais absurda. Apenas a arte – a escrita de um diário, o êxtase de ouvir Ella Fitzgerald cantando Some of these days – só a arte se apresenta como ponto de fuga ao desconcerto do mundo. 

Entre 1943 e 1945, no auge da segunda guerra mundial, Carlos Drummond de Andrade escreve o livro “A Rosa do Povo”, em que há um poema intitulado “A Flor e a Náusea”. Nele, o eu-lírico caminha pela “rua cinzenta” da capital do país, onde “melancolias, mercadorias espreitam-me”, e ele se pergunta se deve “seguir até o enjoo”, sem armas para revoltar-se, ansioso por “vomitar esse tédio sobre a cidade”. Nisso, ele se depara com uma flor que nasce na rua, furando o asfalto, rompendo “o tédio, o nojo e o ódio”. Mais adiante, nesse mesmo livro, quem luta para abrir caminho num ambiente claustrofóbico é um inseto, no poema “Áporo”:

Um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape.

Que fazer, exausto, / em país bloqueado, / enlace de noite / raiz e minério?

Eis que o labirinto / (oh razão, mistério) / presto se desata:

em verde, sozinha / antieuclidiana, / uma orquídea forma-se. 

Depois de ler “A Flor e a Náusea”, não é difícil perceber esse inseto como metáfora da pessoa que enfrenta uma situação difícil, alguém que se encontra num beco sem saída. Lembrando “A Náusea”, de Sartre, como não relacionar a imagem do “país bloqueado” com a França sob ocupação nazista e o mundo sob tal ameaça? Os dicionários concordam que Áporo, do grego aporos, significa “difícil, sem saída”. Mas o Caldas Aulete, em sua versão original, acrescenta: “Gênero de insetos himenópteros da família dos cavadores” e “Gênero de plantas da família das orquídeas, composto de várias espécies, todas herbáceas, de flores quase solitárias, ordinariamente esverdinhadas”.

A orquídea verde que desata o nó cego do labirinto já se encontrava inscrita no próprio ser do inseto cavador; o ato de cavar o espaço claustrofóbico “sem alarme” (sem Mallarmé, sem poesia), pode ser lido como metáfora do poeta que constrói seu ponto de fuga: a flor que fura o asfalto, a orquídea antieuclidiana que rompe com seu mistério a razão do labirinto é a materialização de uma libertadora dimensão estética. O portal que dá acesso a essa dimensão não se abre por magia, mas pelo cultivo de uma flor cuja semente está em nós: a sensibilidade que nos permite interagir com o belo, ainda que em meio ao horror, seja fruindo uma canção, seja deixando-se fluir em um poema.

Fotomontagem de Julien Pacaud
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Afonso Guerra-Baião é professor e escritor. Reside em Curvelo/MG. Publicou recentemente “SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER”, pela Aldrava Letras de Artes. Publicou duas narrativas em ebook pela Amazon: “O INIMIGO DO POVO” e “A NOITE DO MEU BEM”. Seus textos podem ser lidos no Face, no Instagram e em publicações especializadas, como o Suplemento Literário do “Minas Gerais”. Como letrista, possui parcerias com compositores com João Bosco, Gilberto Mauro e Tião Gomes.

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