Vendo o rubro e rútilo cacho de uvas lá no alto, ela chegou à conclusão de que seu nome deveria ser Eva, porque nas velhas cartilhas estava escrito que Eva viu a uva. Também concluiu que era uma raposa, pois ela se pega num fingido desdém pelas uvas, fora do alcance de seus saltos, dizendo que estão verdes, matreiramente, conforme as narrativas, nas quais a raposa é sempre matreira.
E devo estar numa fábula, ela pensou, pois só nas fábulas as raposas gostam de uvas. E não é que, de acordo com as escrituras, ela está mesmo buscando um meio de alcançar aquelas uvas, enquanto finge dá-las por perdidas, dar-se por vencida, bater em retirada?
Como nas fábulas os animais conversam, Eva encomenda à aranha uma bela teia que, no primeiro teste, não resiste ao peso, e eis nossa raposa de volta ao chão e ao encenado desprezo pelas uvas – arre! – verdes. Pouco depois, Eva pede a um roedor que lhe faça uma espécie de escada ou de pirâmide até o desejado cacho, mas o dentuço lhe passa um sermão sobre desmatamento e sobre o manejo sustentável da floresta preservada.
A matreira não desiste. Sabe, porém, que não pode contar com a ajuda do macaco, que vai comer o cacho todo sozinho se o mostrar a ele; pensa que o urubu vai se vingar dela por causa daquele queijo; tem certeza de que as uvas estariam já perdidas, quando os cupins acabassem de lhe construir um pedestal; quanto ao rei do terreiro, nem pensar, pois a raposa (diz a voz do povo) treme diante do galo.
Ora, pensa Eva, se estou numa fábula, sou fruto da imaginação de alguém que, por ser um artista, me fez assim arteira, que me fez tão fabulosa por que é um fabulista. Quem, senão ele, terá engenho e arte para me ajudar? Mas como encontrar meu criador? Elementar, disse o sabujo, o Sherlock da floresta: onde um autor deixa rastros e impressões digitais, senão nas linhas e entrelinhas de sua narrativa?
Mãos à obra, debaixo de cada palavra ela descobre camadas de línguas vivas e mortas, vê cada letra lançar suas raízes por estratos de formas hieroglíficas. Entre as palavras legíveis, ela topou com uma que a deixou intrigada: palimpsesto. Sua história parecia ser antiga e interminável.
Por fim, foram surgindo nomes de seus possíveis autores, em lugares e tempos diferentes, que ela foi anotando, desanimada: Aftônio, Da Vinci, Esopo, La Fontaine, Lobato… Copiando tudo aqui, isso vira uma lista telefônica. E, se for, haja créditos pra tantas ligações. Então ela percebe que vive num labirinto de nomes, que seu corpo, a floresta com os outros bichos e o inacessível cacho de uvas são figuras de um jogo de signos.
– Ah, diz a matreira, quer dizer que, para preencher o espaço entre mim e as uvas, basta compor uma ponte de significantes, uma esteira de significados, uma rede de sonhos algorítmicos?
-Desde os primeiro poetas, no paraíso, passando pelos arquitetos da Torre de Babel, até os engenheiros das aeronaves, o mundo todo vem buscando isso – fala a coruja, do alto de seu galho e de sua sabedoria.
-Preciso agir rápido, – murmura Eva – a concorrência é grande!
-E pode contar comigo, minha querida, – sibila a cobra – contorcendo-se para formar a letra capitular de uma iluminura.
Colabore você também com Eva, escrevendo a moral da história.
Moral da história: o autor, a narrativa, os personagens, todos são signos de um vasto universo cujos significados só são compreendidos por um autor original, que se faz anônimo para todos.
Perfeito, meu caro, Francisco Cezar! Talvez todos sejamos personagens à procura desse autor anônimo, desse autor-modelo!