A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes. – 2ª parte.

“Aqueles que viveram em Entre-Rios por volta dos anos de 1885 a 90, não podiam prever o que seria decorrido 40 e poucos anos, este pedaço da antiga Fazenda de Cantagalo, que já é hoje um centro de grandes possibilidades, onde se vive sofrivelmente, por entre o febricitante trabalho de seus habitantes.

Quem conheceu Entre-Rios do tempo do professor Antônio Pulga, do Manoel da Travessia e da tia Senhoria; quem mais tarde assistiu ao período dos – Zés Portugueses e dos Pires, no Portão Vermelho; Virginio Emerenciano Pereira, Pereira Gomes, Alfredo e Pedro Torno e outros; quem ainda – e isso a poucos anos – assistiu o surto de progressos que deram a esta terra as iniciativas de Antônio Pereira Lopes e Vicente Dias, e hoje assiste ao esforço hercúleo para elevar sempre e cada vez mais Entre-Rios a culminância que o destino lhe reserva, certamente há de sentir prazer por morar em terra tão promissora.

Entre-Rios hoje difere muito daquele que conhecemos a 40 anos passados: difere nos hábitos e nos aspectos.

Antigamente vivia-se como se fosse uma só família, tão reduzido era o número de habitantes e tinha-se apenas a estrada “União e Indústria”, a estrada de Cantagalo e o largo de S. Sebastião, para se transitar. Tudo o mais eram apertados trilhos, por entre lagoas, pastos e moitas de marica.

O tempo foi correndo, a população aumentando e com ela os fogões; novas ruas foram abertas, começam a surgir as sociedades de toda a ordem, o estado sanitário foi melhorando e hoje, embora lhe falte água boa e um sistema perfeito de esgoto pode-se dizer que – moramos em uma verdadeira cidade onde há de tudo.

Quiséramos que o leitor que paciente nos lê, pudesse retroceder conosco aquela época distante, quando nos acercávamos do guarda da travessia da estrada dos Campos Elysios, hoje Rua 15 de novembro – o velho Dario – a ouvir-lhe as histórias, admirar-lhe os pássaros engaiolados que cantavam alegremente e gosar a sombra amiga do caramanchão existente ao lado, cuja folhagem exuberante, merecia todo o carinho do vigia atento, para então poder compreender o motivo da nossa obstinação em relembrar “coisas que passaram”, destruindo ilusões e derramando saudades, que ainda vivem n´alguns corações amadurecidos pelos anos (…)Entre-Rios foi nada, passou a ser muito, e no futuro será tão grande, que, prever se torna impossível.” “ENTRE-RIOS, o que foi e o que será”. Vê Jota, pseudônimo de Antônio Villela Junior. “Entre-Rios Jornal.” Entre-Rios, atual Três Rios. Ano II, sexta-feira, 17 de janeiro de 1936, ed. 52, p. 2.

Esta crônica do Vê Jota, escrito nos dias iniciais do ano de 1936, mantêm a característica relacionada na primeira parte deste trabalho (cronista da imprensa trirriense que mais escreveu sobre a sociedade nascente da Vila e depois distrito de Entre-Rios), apresenta-se como retrato de uma outra parcela da sociedade trirriense – diferente da apresentada anteriormente, tendo entre seus cidadãos citados, representantes daqueles responsáveis pelo “surto de progresso”; pessoas e espaços (recordados com muita saudade apesar da satisfação com o progresso conquistado), que se interpenetram demarcando ações, tempo, criando e revelando imagens e significados da vida de relação social.

Antônio Villela de Carvalho Júnior, esteve presente na formação dos principais grupos de artes cênicas, musicais, esportivos, culturais, políticos e sociais da cidade, foi vice-prefeito do Município de Paraíba do Sul/RJ, ocupou a cadeira nº 6 da Academia Trirriense de Letras e Artes. Sua crônica, publicada três anos antes da emancipação, é um registro do quanto Entre-Rios no final dos anos de 1930, difere em muito do último quarto do século XIX: “O tempo foi correndo, a população aumentando e com ela os fogões.”

Este “olhar” de um cronista que viveu o tempo histórico de formação da Vila e depois distrito, até a emancipação e formação administrativa de uma nova cidade no interior do Estado do Rio de Janeiro, no recorte temporal do início da República no Brasil, permite-me, em conjunto com textos imagéticos das fotografias deste período, perceber de que maneira, e em que espaços sociais, os negros libertos e seus descendentes estiveram presentes na formação da sociedade nascente da Vila de Entre-Rios, no pós-abolição até o final dos 40, e quanto esta inserção reflete na vida dos afrodescendentes que vivem atualmente em Três Rios/RJ.

Arte, cultura, economia, política, trabalho, educação, esporte e manifestações populares; as fotografias revelam quais os espaços conquistados ou concedidos aos negros libertos e seus descendentes na nascente sociedade de Entre-Rios. O que as presenças ou ausências nas imagens fotográficas nos revelam?

1 – Arte e Cultura

“Três Rios, ou melhor, Entre-Rios, desde a 70 anos passados [anos finais do século XIX], quando sua população era diminuta, e consequentemente, possuindo pequeno número de habitações – quase todas cobertas de zinco – começou a receber a visita de companhias dramáticas, que realizavam seus espetáculos em palcos montados no interior dos “Grandes Armazéns da Companhia da Estrada União e Indústria”, existente na área fronteira à Estação da Central do Brasil e hoje ocupada por construções modernas.” “TEATRO amador vem dos primórdios da cidade: 85 anos de cena”. Vê Jota. O Cartaz. Três Rios/RJ. Ano III, 24 de julho de 1974, nº. 149 (A).

Formaram-se no início do século XX alguns grupos de teatro amador que tiveram curta duração. Idealizado em 1913 por Vicente Dias, Alberto Silva, José da Silva Vaz e Antônio Vilela Junior, surge no ano seguinte o Grupo Dramático e Beneficente Dias Braga, encenando em 21 de agosto de 1914 no “Teatro Sul-América” o drama em 3 atos – “Condessa Diana de Rione” – e a comédia em um ato: “O Diabo atrás da porta”.

Nesta fotografia, temos os indivíduos que participaram da primeira encenação do Grupo D. B. Dias Braga: José Vaz, João Amâncio, Francisco Neves, Alfeu Braga, Virgilho Bilheri e Antônio Villela Junior, Hermínia Torres e Hercília Pereira. As duas meninas ao centro no primeiro plano são, à esquerda, Araci Vidal, e a direita, Adalgisa Villela.

“Nas áreas culturais e artísticas da Vila, o movimento tomou corpo malgrado à corrente ainda aferrada aos “preconceitos sociais” que entravava a participação de damas nas representações planejadas.” (KLING. 1969)

Hugo Kling relata a dificuldade da mulher no início do século XX, de fazer-se presente nas atividades cênicas, mas não identifica este mesmo comportamento social com relação aos negros: este grupo de teatro era formado principalmente, por comerciantes e seus filhos, não possuía negros entre seus pares.

As imagens que apresentam o corpo de diretores e os artistas, mesmo quando da comemoração do primeiro aniversário de apresentações do G.D.B. Dias Braga, em agosto de 1915, revelam que os negros não participavam destas atividades, muito provavelmente, por não se representarem entre o grupo de comerciantes, que se constituíram naquele momento, em sua grande maioria, de imigrantes estrangeiros. Demonstrando claramente que os espaços da dramaturgia se circunscreveram apenas a um grupo social da época.

Na fotografia acima em primeiro plano da esquerda para a direita: Araci Vidal e Adalgisa Vilela. Em segundo: Vilela Junior, José Vaz, Alberto Silva, Estefânia Carlinda Álvares, Iracema Almeida, e Vicente Dias. Ao fundo em pé na mesma ordem: Virgilio Bilheri, Edgar Vidal, Francisco Neves de Carvalho, Trupim P. da Silva, João Amâncio, Fernando Castilho e Pedro Fernandes.

Esta realidade parece não ter se alterado com o passar do tempo, pois 23 anos após o Grupo Dias Braga, em 1937, organiza-se nas dependências do informativo “Entre-Rios Jornal” o Grupo de Amadores Teatrais Viriato Correia – presente até os dias atuais inclusive com a dependências de um teatro próprio; que entre os seus componentes quando da apresentação da primeira peça, não possuía nenhum artista cênico negro. Reportando aos aspectos das artes – música -, no início da formação social na Vila de Entre Rios, Vê Jota escreve:

“A música começou a ser cultuada em Três Rios, não só pelas damas que se dedicavam ao estudo da música em piano, como também pelas bandas formadas pelos escravos [presentes nas cerimônias de inauguração das Estações de Entre-Rios tocando em homenagem ao imperador D. Pedro II], como a que ainda chegamos a conhecer na Fazenda de São Lourenço de propriedade do venerado Visconde de Entre-Rios, já nos primeiros anos da República e em franca decadência. O seu mestre chamava-se João Prata e desfrutava da confiança e da amizade do Visconde.” EM COMEMORAÇÃO ao nosso aniversário – prêmio Melnhaque: A melhor “História de Três Rios”. JUNIOR, Antônio Villela. “O Jornal de Três Rios”. Três Rios/RJ. Ano II, 26 de abril de 1961, nº 53, p. 2.

Relaciona este cronista ainda: a Banda Henrique Mesquita que possuía como mestre o musicista Francisco Duarte descrito como uma criatura de longos cabelos alourados, olhar doce e atitudes paternais; a charanga do Pedro Belmonte, o Grupo Musical Carlos Gomes, regido pelo professor Guerra da Costa, o Grupo da Lira fundado por volta de 1900 pelos irmãos Agnelo, Galvino e Marcolino e o Grupo Musical 1º de Maio do qual foram fundadores os ferroviários Carlos Vidal, Severino José Ferreira e Ernesto Mattos entre outros; – agremiação musical centenária que ainda permanece em plena atividade no município.

A Banda Musical 1º de Maio teve atuação importante na aglutinação da população para os comícios do movimento emancipacionista. Ao domingo percorria as ruas da cidade realizando apresentações musicais e convidando o povo para esta atividade. Jornais da época informam a participação de seus músicos em bailes, quermesses da igreja, carnavais e, acompanhando o féretro de pessoas mais afortunadas da cidade.

A população negra, liberta da condição de propriedade, utilizou-se de estratégias de mobilidade social na pós-abolição para a inserção nas sociedades urbanas. O ambiente da arte musical recebeu intensa participação e influência dos negros na formação, no caso de Entre-Rios, mas também de outros centros urbanos brasileiros, de diversos grupos instrumentais, bem mais do que nos das artes cênicas. Destacaram-se no distrito também a Banda “Jazz União” e a “Jazz Band Columbia”.

Regina Xavier (2008, p 25) afirma que, “se a cidade era um lugar de conflitos e de resistência para os escravos era, ao mesmo tempo, um lugar que propiciava espaços de convivência para a comunidade negra, importante na construção de estratégias variadas na busca de melhores condições de vida”.

Se os atributos morais da etnia negra apresentados por Vê Jota em seu artigo indicam uma visão negativa formatada pela sociedade republicana brasileira eminentemente branca – representada na sua “porção” regionalizada pela sociedade entrerriense, alguns estereótipos “positivos” valorizavam os talentos destes para “a música, para a dança ou qualquer outra atividade que a emoção sobrepujasse a razão. Observa-se que as “características da raça”, dependendo do espaço social, podem ser qualificadas negativa ou positivamente.” (ABRAHÃO E SOARES, 2003)

Os “reflexos” sociais nos “espelhos” das crônicas e das fotografias muito nos revelam da inserção do negro na sociedade pós-abolição.

Outro espaço de participação social dos negros na coletividade entrerriense ocorreu pelas atividades esportivas, especificamente, o futebol, que possuía a época representantes deste grupo em todas as equipes da cidade, o que possibilitou certa ascensão social e financeira. Mas, isso veremos na próxima edição.

Referencias:

ABRAHÃO e SOARES, Bruno Otávio de Lacerda e Antonio Jorge Gonçalves. O elogio ao negro no espaço do futebol: entre a integração pós-escravidão e a manutenção das hierarquias sociais. Disponível no site: http://comunicacaoeesporte.files.wordpress.com/2010/10/elogio-ao-negro-no-espaco-o-futebol-pos-escravidao-e-hierarquias-sociais.pdf . Acesso em: 12 de fev. 2012.

KLING, Hugo José. A Matriz de São Sebastião de Entre Rios e outras anotações históricas. Juiz de Fora/MG: Sociedade Propagadora Esdeva, 1969.

XAVIER, Regina Célia Lima. A escravidão no Brasil Meridional e os desafios historiográficos. In: RS negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre/RS. EDIPUCRS, 2008

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Bacharel em Administração pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro , Licenciado em História pela Universidade de Uberaba, Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pela Faculdades Integradas de Jacarepaguá, Mestre em História Social - linha de pesquisa em História Cultural pela Universidade de Vassouras/RJ. Foi Presidente da Fundação Educacional de Três Rios/RJ, e Professor dos cursos de Pedagogia (História da Educação, História da Arte, Arte e Educação) e Logística (Comercio Exterior) da Faetec de Três Rios/RJ.

4 Comments

  1. Bel disse:

    Magnífico acervo fotográfico, André! e a pesquisa fantástica, Parabéns!

    • André Luiz Reis Mattos disse:

      Muito obrigado… gosto muito da temática e destas imagens do meu acervo, contam histórias.

  2. ligia nogueira da silva disse:

    Foi com grande emoçao pesquisando na net cheguei ao seu acervo e me deparo com uma foto do meu avo Quintino Pereira Alvares

    • André Luiz Reis Mattos disse:

      Que coisa boa Ligia, fico feliz, obrigado pela leitura. Vc poderia falar um pouco sobre ele?

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