Idelma Santiago da Silva
No sudeste do Pará, a construção de um saber ordinário – composto de estereótipos discricionários sobre o maranhense – tem tido expressão e circulação nas anedotas e rimas de histórias. Em geral, considera-se a recorrência do tema e seus conteúdos como algo “normal”, característico de uma prática discursiva que visa a provocar o riso.
A questão é que, nas piadas, geralmente veicula-se um discurso não assumido oficialmente. Os espaços sociais de ocorrência da manifestação do riso – espaços informais ou institucionalizados – podem ser usados para transmitir mensagens ofensivas disfarçadas de brincadeiras (DAHIA, 2008). Assim, a piada pode ser via de expressão e socialização não ostensiva de preconceitos porque atua por seu encobrimento. Por isso, ela pode e deve tornar-se objeto de crítica e vigília pública.
Em nossa região, por meio de rimas e anedotas, são compartilhadas designações que explicitam uma hierarquia social desejável, nas quais o maranhense deverá ocupar o mais baixo degrau: “O que é um nada dentro do nada, ouvindo nada, voltando pro nada? É um maranhense dentro de um fusca ouvindo reggae e voltando pro Maranhão”; “Deus fez o mundo em seis dias, no sétimo dia o diabo riscou o Maranhão”; “Por que cigana não lê mão de maranhense? Porque maranhense não tem futuro”.
Nessas rimas de histórias, sobressaem representações correntemente reiteradas sobre os maranhenses migrantes e sobre o Maranhão: o maranhense está na história, mas em uma condição de existência humana rebaixada e, o que é pior, essa é uma questão ontológica, um estigma.
Apesar de as piadas envolverem um universo de representações mais ou menos delimitado, porque ocorrem pela reiteração, esses textos são inumeráveis na região e recorrentemente enunciados em contextos ordinários. Dentre as representações veiculadas nas anedotas, as mais comuns são aquelas em que o maranhense é ignorante e culturalmente atrasado: “O maranhense estava indo para Macapá, quando chegou a Belém, ele tinha que pegar um navio. Quando o navio já estava cheio, o capitão avisou pelo interfone: — O navio vai partir. Então, todos os maranhenses pularam dentro do rio”.
Dado o caráter social da piada e por seu poder formador (socializador), o seu público, mesmo que inconscientemente, torna-se cúmplice: participa de seus atos de agressão. Assim, o riso das piadas sobre o maranhense, que suscitam em muitos “um prazer destituído de culpas e aparentemente inofensivo” (DAHIA, 2008, p. 710), revela um contexto social de permissão e reprodução de imaginários sociais racistas, não no sentido que toma sobremaneira o critério de raça na classificação, mas que realiza uma discriminação que visa a marcar um desprestígio (um menosprezo) sociocultural, identificando um grupo como diferente e tomando-o como objeto de riso.
De um lado, é difícil uma abordagem que dê conta das ambiguidades das piadas e de seu trânsito entre realidades distintas e que se enredam, como o jocoso e o sério. De outro, muitos dos interlocutores parecem resistentes a um movimento de crítica das piadas, talvez pelo que provocaria de deslocamento de seu lugar de brincadeira e, portanto, de interdição dessa prática de prazer. Também por isso – porque as piadas não são algo sério – não têm estatuto para dizer algo da realidade. Então, uma atitude que pode representar, duplamente, a defesa da prática e sua desqualificação como objeto de crítica e interpretação da realidade.
Mas, a seriedade do tema é evidenciada quando piadas e rimas são enunciadas e reproduzidas em contextos de relações de força, podendo, portanto, atuar para promover a adesão cultural à determinada ordem social, ou quando o tema passa a ser utilizado como mecanismo de exercício de poder, como aparece documentado no filme Aprisionados por promessas: a escravidão rural contemporânea no Brasil (CEJIL et al, 2006). Nele, um trabalhador libertado da escravidão narra a reação do ex-patrão (dono de carvoaria): “[…] direito de maranhense aqui é o tiro de uma espingarda calibre 36 que eu tenho lá no meu barraco. Aqui pode faltar feijão para o trabalhador, mas o cartucho pra matar um aqui não falta.”.
Por um lado, a situação é evidência de como os estereótipos se mantêm como repertório “[…] ativado pelos atores em ocorrências situadas” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 172). Por outro, a exibição desse filme para um grupo de estudantes do ensino médio revela uma situação provocadora, pois alguns riem timidamente quando essa fala é projetada. De que forma uma situação que não é engraçada pode provocar riso? Dentre outras possibilidades, pode-se supor a naturalização de determinada ordem social na qual, no mínimo, se considera normal que esse sujeito – maranhense – seja objeto de piada e riso, ainda que a situação representada seja trágica e violenta.
Articulando elementos de classe social, étnico-racial e de procedência geográfico-regional, a nomeação do maranhense como o Outro, em um contexto em que a maioria da população é migrante, pode ser entendida em duas dimensões. Tal nomeação pode consistir em uma atitude de defesa na perspectiva racista, porque a preocupação é como não se deixar “contaminar” com esse Outro, íntimo e numeroso, e que perturba com sua pobreza, sua suposta ignorância e seu “[…] destino singularmente punitivo. ” (SAID, 2007).
Afora uma situação de insegurança — devida às formas precárias de territorialização físico-econômica e cultural da maioria dos migrantes na região — também atua nesse processo que constrói o maranhense como categoria étnica na identidade regional uma intenção de domínio das relações sociais. Como dispositivo de dominação simbólica, o ato de designação do maranhense se constitui como “[…] um ato de tomada de poder, de apossamento sobre o outro” (ALBUQUERQUE, s/d) e visa a um processo formador.
O processo de reterritorialização de migrantes, principalmente em cidades como Marabá, tem ocorrido associado a uma perversa divisão e segregação social. As piadas e rimas de histórias com o tema do maranhense possibilitam reconhecer manifestações culturais e ideológicas dessas divisões sociais. Assim, a denominação “maranhense” como categoria étnica no sudeste do Pará, não inclui todos os oriundos desse Estado, principalmente aqueles da denominada frente pioneira; nem exclui outros migrantes, especialmente nordestinos. O maranhense é a construção de uma alteridade referenciada em critérios e índices atribuídos aos migrantes maranhenses, mas que, instituído como categoria (operacional), tem atuado no sistema de classificação hierárquica entre os migrantes, passando a nomear, difusamente, qualquer indivíduo ou grupo social percebido socialmente como desqualificado e despossuído economicamente.
O que está sendo construído é um racismo em forma de dispositivo social de dominação. De um lado, porque esse Outro, representado pelo maranhense, coloca em xeque as pretensões de identidade regional. Como ressalta Koltai (2005, p. 180), sobre um dos aspectos da intolerância no mundo contemporâneo, “Tolerância zero para todos aqueles que nos devolvem uma imagem de nós mesmos com a qual não podemos e não queremos lidar”. Por outro lado, o que está em jogo é a estruturação de arranjos de poder sobre o território e as relações sociais para viabilizar um determinado modelo de desenvolvimento. Assim, é parte desse processo a produção da naturalização de uma divisão da realidade marcada pela expropriação territorial, pela exploração predatória dos recursos naturais e pelo “rebaixamento” da maioria da população migrante como mão-de-obra disponível e barata, que pode, inclusive, ser submetida a regime de trabalho escravo.
Enfim, os campos de ação da opressão e da dominação não se limitam ao exercício pelo Estado do arbítrio disciplinador e punitivo em favor de uma classe social (o que tem sido recorrente na região), mas se reproduzem na disputa pela formação do imaginário social, especialmente aquele dos discursos ordinários, isto é, do senso comum da sociedade. Um dos sentidos produzidos como um saber para a ação é aquele que pretende fazer crer que o Maranhão (para seus habitantes pobres) não tem alternativa que não seja fornecer mão-de-obra ao agronegócio e à mineração. Até porque esses mesmos empreendimentos disputam o território no Maranhão. Portanto, a desqualificação desse migrante como sujeito de direito torna-se fundamental para manter desterritorializada essa força de trabalho.
Referências
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. As invenções e Representações em Torno do Semi-Árido: Implicações na Educação. Manuscrito, s/d, 23f.
CEJIL, CPT e WITNESS. Aprisionados por promessas: a escravidão rural contemporânea no Brasil. Brasil, 2006 (filme documentário, 17h18min.)
DAHIA, Sandra Leal de Melo. A mediação do Riso na Expressão e Consolidação do Racismo no Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, nº 3, p. 697-720, set./dez. 2008. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/se/v23n3/a07v23n3.pdf>. Acesso em: 7 out. 2010.
KOLTAI, Caterina. Migração e racismo: um sintoma social. In: NETO, Helion Póvoa e FERREIRA, Ademir Pacelli. (Org.) Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 175-181.
POUTIGNAT, Fhilippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: UNESP, 1998.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Elchenberg. São Paulo: Cia das Letras, 2007.