Antonio Candido (1997), ao tratar das formas de expressão da poesia romântica enfatiza a sobrevivência do poema épico devido à influência dos poetas árcades Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Contudo, as transformações trazidas pelo Romantismo, sobretudo na concepção do homem, inevitavelmente se manifestaram em novas formas de expressão, caracterizando o épico em gênero misto, o que permitiu maior liberdade à fantasia do poeta. Essa transformação na forma poética romântica brasileira potencializa o sentimento patriótico como em Teixeira e Sousa (A Independência do Brasil), o indianismo em Gonçalves de Magalhães (A Confederação de Tamoios) e em Gonçalves Dias (Os Timbiras) e mesmo um sentimento de solidariedade continental como em Porto-Alegre (Colombo) entre outros temas (CANDIDO, 1997, p. 31).
Apesar da manutenção da poesia épica no Romantismo brasileiro, sua presença não significa um engessamento do gênero, pelo contrário, a maior liberdade e fluidez na elaboração poética fez com que nesses poetas, a narrativa prosaica impregne o gênero sem que perca seu lirismo, de modo que essa mistura estabeleça uma maior dramaticidade na poesia.
Sem pretender abordar em detalhes cada uma dessas obras, interessa-nos com base nessa afirmação analisar o drama épico de Nísia Floresta – “A Lágrima de um Caeté” – no qual se utilizou dessa mistura para não somente expressar esteticamente essa renovação na poesia, como também utiliza-se dela para marcar sua visão de mundo nesse momento político histórico em que se encontra o Brasil Império.
Em sua obra “Nisia Floresta” publicada em 2010 pela Coleção Educadores, Constância Lima Duarte nos apresenta a vida da que foi a primeira feminista brasileira. Em 1832, publicou a obra “Direito das Mulheres e a Injustiça dos Homens” uma tradução livre da obra da feminista inglesa Mary Wollstonecraft – “Vindications of the rights of woman” – na qual trata dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho, exigindo que as mulheres fossem respeitadas e tratadas com igualdade na sociedade.
Desde 1830, Nísia ocupa a imprensa com diversos escritos e se envolve em várias discussões políticas. Sua viagem para o Rio Grande do Sul a colocou de forma mais próxima com o movimento republicano e passou a defender a bandeira do sufrágio universal. Antes disso, tendo se casado com um jovem pernambucano, manteve fortes laços com diversos estudantes da Faculdade de Direito de Recife, os quais em 1848 participaram da Revolução Praieira, reprimida no ano seguinte.
No ano em que se deu a derrota dessa Revolução, Nísia Floresta publica seu drama épico que teve rápida adesão do público, sobretudo dos liberais. Duarte, no artigo “Revendo o indianismo brasileiro: A Lágrima de um Caeté de Nísia Floresta”, identifica nesse poema dois enredos: o do índio brasileiro espoliado pelo colonizador português e o dos liberais envolvidos na Revolução Praieira em Pernambuco, sobretudo Nunes Machado de quem Nísia foi amiga pessoal. No primeiro enredo, o protagonista é o índio Caeté, identificado como “vulto de homem” que clama por vingança contra o colonizador; no segundo, os protagonistas são os liberais que se embatem contra o exército do imperador.
Em estrofes decassílabas nas quais se misturam estrofes heptassílabas e hendecassílabas e até em redondilhas menores, o poema com 712 versos narra o lamento e o desejo de vingança:
Lá quando no Ocidente o Sol havia
Seus raios mergulhados e a noite triste
Denso-ebânico véu já começava
Vagarosa estender sobre a terra;
Pelas margens do fresco Beberibe,
Em seus mais melancólicos lugares,
Azados para a dor de quem se apraz
Sobre a dor meditar que a Pátria enluta!
Vagava solitário um vulto de homem,
De quando em quando ao céu levando os olhos,
Sobre a terra depois triste os volvendo… (AUGUSTA, 1997, p. 35)
Trata-se de um índio Caeté que nas margens do rio Beberibe a relembrar o período colonial marcado por lutas e pelo extermínio de seu povo. Na primeira parte do poema, ele amaldiçoa os povos portugueses e os outros índios que ajudaram na destruição. Confunde-se a voz da poeta e do índio, fundindo-se em um lirismo dramatizado que evidencia o vergonhoso extermínio promovido pela corte portuguesa.
Em um determinado momento, ele clama ao “Gênio do Brasil” para que volte e traga a dignidade do seu povo: “Ó gênio do Brasil, às plagas tuas/Volta… oh! Volta a vingar os filhos teus!”, quando ouve estampidos de artilharia e brados que gritam “Avante! Libertemos a Terra de Caeté!” Nesse momento, já quase na metade do poema é que aparece o contexto presente da Revolução Praieira tendo à frente Nunes Machado. O eu-lírico, que até o momento se confunde com o índio Caeté, passa a identificar-se com a luta dos liberais revolucionários e, a partir dessa identificação, estabelece uma proximidade entre estes e os índios Caetés, identificando Nunes Machado como um descendente dos Caetés.
Após lamentar a derrota dos revolucionários, o índio se depara com uma figura horrenda que se identifica como Realidade. Logo após, depara-se com outra personagem que se apresenta como Liberdade. Esta tenta convencer o índio a tomar parte da luta atual em defesa dos princípios republicanos e contra a tirania da coroa portuguesa identificada na figura do Imperador D. Pedro II. Por sua vez, a Realidade o aconselha a retornar para as matas e desistir de sua vingança, pois só assim poderá preservar a identidade de seu povo.
Como observa Duarte, ao invés da construção idealizada do indianismo, deparamo-nos nesse drama épico com o discurso violento da colonização e seus efeitos perversos que se traduziram no extermínio de vários povos indígenas. Se o indianismo brasileiro optou pela escolha de criar a imagem poética do índio à sua maneira, diferentemente, Nísia Floresta escolhe pela construção de um não-herói, mas que esse não heroísmo resulta da violência produzida pela colonização.
Desde o início do poema, ele é apresentado como um herói vencido, diferentemente das outras obras indígenas em que a personagem é construída aos moldes dos cavaleiros medievais. Além de ser um herói vencido, o protagonista tem consciência dessa derrota e dos motivos que a causaram. Stenio Torquato Lima, em seu artigo “O indianismo e o problema da identidade nacional em A Lágrima de um Caeté de Nísia Floresta”, observa que o tema da identidade nacional que se faz presente nessa obra ultrapassam as bases românticas, uma vez que se opera pela negação do europeu, colocando como antagonista tanto os colonizadores portugueses quanto o exército imperial e propõe pensar essa identidade a partir de outras bases.
Nesse sentido, Duarte, no artigo acima citado, problematiza a concepção de indianismo desse poema. Citando o estudo de Maria José de Queiróz sobre o indianismo hispano-americano, a partir da distinção entre indianismo e indigenismo, Define o indianismo como abordagem literária baseada no mito do bom selvagem; em outro sentido, o indigenismo é definido como uma corrente que foge ao exotismo e indaga o homem, tratando o índio como ele é, em sua história e cultura.
A partir dessa distinção, a crítica identifica o drama épico de Nísia Floresta como um poema indigenista que busca trazer uma das primeiras abordagens de cunho indigenista no Brasil. Ao fazer do protagonista uma voz que elucida a vergonhosa história da colonização no Brasil e sua continuidade de violência e opressão na intercalação com o presente, a poeta apresenta uma nova página do drama épico que coloca em cena o questionamento dessa idealização preconizada pelo indianismo, bem como a problemática da identidade nacional por meio da voz de um vencido.
AUGUSTA BRASILEIRA, Nísia Floresta. A Lágrima de um Caeté. Natal: Fundação José Augusto, 1997.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1997.
DUARTE, Constância Lima. “Nísia Floresta: vida e obra”. Natal: UFRN, 2010.
_______________________. “Revendo o indianismo brasileiro: A Lágrima de um Caeté de Nísia Floresta”. Boletim do CESP, V. 19, N. 25, jul/dez de 1999.
LIMA, Stélio Toquato. “O indianismo e o problema da identidade nacional em ‘A Lágrima de Um Caeté’ de Nísia Floresta”. Revista Antares, vol. 5, n. 9, jan/junho de 2013
Texto maravilhoso, Dário! Uma verdadeira joia!
Presente de domingo, ler sobre essa escritora pioneira na defesa dos nossos indígenas.
Abraço.