Um outro caos ministerial

O recente desmonte do Ministério da Saúde movimenta o país, revolta a muitos, deixa indiferentes aqueles que apenas se informam por WhatsApp em seus grupos de pensamento único, mas praticamente ninguém fora da área educacional tem percebido claramente a premeditada destruição que também tem sido levada a cabo no Ministério da Educação.

Repleto de militares e religiosos, profissionais que prestam serviços úteis e importantes em suas respectivas áreas mas, salvo raríssimas exceções, são completamente ignorantes sobre Educação e desconstroem sistematicamente até procedimentos em que já havíamos adquirido determinada habilidade, como por exemplo o Enem.

Sob responsabilidade do INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, autarquia federal vinculada a este Ministério, cuja missão seria – não está sendo – subsidiar a formulação de políticas educacionais para o desenvolvimento econômico e social do país, o Enem vai mal, muito mal. O mais baixo número de inscrições para este exame desde 2007 mostra seu descrédito.

Entre suspeição de erros nas notas de redações, resultados divulgados em meio a grandes instabilidades do sistema, falhas de identificação de candidatos, questões ideológicas (que sempre atribuíram aos “inimigos” enquanto suspeitavam de colorações vermelhas, mas que, racistas, não incomodaram), detecção de milhares de notas erroneamente lançadas, uma lambança federal leva à conclusão de que, efetivamente, tem sido designadas chefias pela obediência ao supremo mandatário e não exatamente por conhecimentos técnicos, o mínimo deles sendo ter uma razoável ideia do que é o Enem, quais seus critérios de realização e correção e sua importância para o futuro do país.

O INEP encontra-se em tal estado de desarticulação que funcionários mais comprometidos com a instituição e com algum tempo de casa divulgaram uma carta aberta onde, entre relatos de outros descalabros, afirmaram: “O quadro de gestores do INEP é escolhido, direta ou indiretamente, pelo ministro da Educação, que acaba dando direcionamento e definindo prioridades diretamente influenciadas pelas escolhas de cada governo. Isso leva o instituto a mudar de rumos estratégicos e operacionais a cada troca de gestão. Houve momentos em que se chegou ao extremo de serem realizadas mudanças em processos estritamente técnicos em decorrência de opinião ou posicionamento ideológico do gestor, sem a devida justificativa técnica e científica para os feitos”.

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, ímpetos de “modernização” da educação, com a anuência do MEC, têm proporcionado neste momento de crise a oportunidade de acelerar o projeto de precarização das escolas. Bom exemplo disso é o recente escândalo de permissividade com malfeitos de uma instituição de ensino superior vinculada a religiosos em relação ao Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, para avaliação dos cursos de ensino superior), que, denunciadas, geraram desprezo absoluto por pareceres técnicos e jurídicos que recomendavam investigação criminal; entretanto ameaças de demissão a técnicos que deveriam ter enviado o processo à Polícia Federal não faltaram.

Palco de guerras culturais para ocupação de cargos, entre olavistas e não olavistas, religiosos e seguidores ideológicos, a autarquia reflete falta de direcionamento, de uma política educacional, e está perdida em meio a projetos descontinuados. Outra de suas autarquias, o FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, em princípio seria responsável pela coordenação de vários programas, como o FUNDEB, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, formado por recursos para financiamento da educação básica pública, e que nos últimos dois anos tem sido palco de uma verdadeira comédia de erros.

Suas últimas portarias para transferências de recursos de grande monta a diversos municípios, tiveram problemas graves que não puderam ser resolvidos ainda, embora o governo admita as falhas, pois, foi publicado em veículo de grande circulação nacional: “integrantes do governo Bolsonaro afirmaram à reportagem que o FNDE ainda não sabe a dimensão do equívoco e nem como resolvê-lo”.

Em nota publicada em seu site, o FNDE admite que as recentes transferências seguem ancoradas em cálculos equivocados. “Após terem sido constatadas inconsistências na filtragem das matrículas, o FNDE iniciou o reprocessamento dos dados. A partir dos resultados será publicada nova Portaria Interministerial, ainda no primeiro semestre de 2021”. Finalizado este semestre, ainda se aguarda a publicação da Portaria. Acumulam-se os erros do MEC, que ao menos são republicanos em sua distribuição, espalham-se pelas várias unidades, sob olhares atônitos dos trabalhadores de carreira.

A narrativa dominante sobre indicadores que comprovariam que a escola pública de ensino médio obtém péssimos resultados nas avaliações em larga escala são utilizados para propor a “militarização” destas instituições, como se esta fosse a solução miraculosa, quase que a cloroquina do ensino brasileiro, deixando de lado problemas estruturais: muitas delas não têm bibliotecas, quadras de esporte em comunidades onde poderiam agregar toda a região do entorno tornando as pessoas corresponsáveis ao processo educativo, e se ressentem da falta de material didático de qualidade em quantidade suficiente.

Ressalte-se que o discurso oficial é sobre a inutilidade de salários dignos e planos de carreira que possibilitem atualização cultural e profissional dos professores, assim como o combate à pobreza endêmica de estudantes e de suas famílias. Preconiza-se apenas a ordem e disciplina rígida das organizações militares, uma ivermectina infalível para o setor.

Sem negar a competência de muitas escolas militares, é importante perceber que talvez sejam boas exatamente por serem poucas, permitindo dedicação daqueles vocacionados ao ensino, e não constituindo recurso de educação em massa, ou seja, poucos e bons alunos, extremamente selecionados. Os próprios indicadores educacionais não irão, sozinhos, melhorar a escola, avaliar é parte da solução se esta for seguida por atitudes concretas em prol da elucidação do problema, já que deficiências estruturais existem há bastante tempo, são, inclusive, muito alardeadas em épocas de eleições, porém nunca foram de fato incluídas em políticas educacionais.

Aparentemente o objetivo atual é discutir a “guerra cultural”, e comportamentos julgados adequados (ou não), como distribuições do famoso e inexistente “kit gay”, a Escola Sem Partido, professores baderneiros, alunos nus em universidades e que tais… Mesmo sabedores que as mazelas existem há bastante tempo, foi a partir do atual governo que o conjunto de problemas se intensificou, dado o projeto político ultrarreacionário que apenas admite disciplina como essencial, e não o conhecimento; apenas reconhece a família tradicional como fundamental na organização social, negando as ligações homoafetivas, direitos de estrangeiros, indígenas e minorias. Inclusão vinha sendo pauta indispensável aos currículos, ao lado de matérias técnicas e de conhecimentos gerais.

Os projetos políticos explicitados condenam a liberdade do ensino-aprendizagem, elogiam o negacionismo científico, o revisionismo histórico, a militarização nas escolas, a intolerância religiosa.
A homeschooling, educação “caseira”, é apresentada como se fosse aspiração de todas as famílias, dando a impressão de que pais e mães são todos vocacionados para o magistério, e certamente não tem nenhuma outra atividade produtiva.

Ensinar não é função de um único dia da semana, existem atividades de rotina, que necessitam tempo e planejamento, distintas metodologias e pesquisa de materiais complementares. Aulas de matemática demandam não apenas conhecimento da matéria, mas também cuidadosa escolha de exemplos, softwares, artefatos concretos por meio dos quais a criança ou jovem possa entender os conceitos explanados. Da mesma forma, português, geografia, história e outras disciplinas. Quantos pais tem essa possibilidade de tempo e aprofundamento dos conhecimentos?

A ideia parece ser “terceirizar” esta atividade para estabelecimentos religiosos, no entanto o ensino confessional já é uma realidade no Brasil, os primeiros colégios foram fundados por jesuítas na época da Colônia, igrejas luteranas e outras também tem mantido suas atividades educativas, com bastante êxito e frequentemente sem radicalismos ou visão única sobre o mundo e a sociedade. As PUCs brasileiras, ao lado das Universidades Federais de vários estados, de forma geral tem um satisfatório padrão de qualidade.

Só o mais absoluto desconhecimento da área educacional, seus critérios e exigências, pode considerar que esta é a única pauta sobre educação que deve prosperar no país. Ensino doméstico existe, pois famílias as vezes moram muito afastadas de escolas, crianças doentes ou seriamente impossibilitadas de movimento precisam pais dedicados para o ensino diário, e a tentativa honesta de vencer as eventuais dificuldades com uma ou outra área do saber.

A própria implantação da Educação a Distância demanda cuidados que especialistas estudam criteriosamente: metodologias, tecnologias mais estruturadas, expectativas do processo de ensino-aprendizagem e a infraestrutura dos espaços utilizados. Ademais, negligenciar as desigualdades sociais, as regiões periféricas sem serviço de internet, a dificuldade de investir em equipamentos que permitam o acesso, pois boa parte da população conta apenas com seus celulares – quando os têm – prejudicam esta modalidade.

Quando a maior parte dos estudantes brasileiros esteve afastada de seus professores por dificuldades econômicas, é difícil falar em doutrinação por parte dos professores, já que movimentos de negação da ciência e do conhecimento, posicionamentos polarizados em religiões, estão tentando cancelar os poucos avanços progressistas alcançados nas últimas décadas sobre comportamentos a respeito da sexualidade, raça, integração de imigrantes, respeito às diferenças.

Em recente pronunciamento, o doutor Luís Roberto Barroso, Ministro do STF, declarou que, com relação aos direitos das minorias, “ganhamos, porém não integramos aqueles que perderam”, ou seja, a população LGBT+ pode se casar, todavia enfrenta sérias resistências da comunidade, negros têm garantida legalmente a sua igualdade, entretanto não conseguem escapar da violência e do racismo, e assim por diante. Da mesma forma estamos perdendo espaços preciosos no setor educacional, projetos que pareciam encaminhar-se para instituições mais inclusivas e modernas parecem retroceder a procedimentos autoritários e centralizadores.

Propostas são destruídas e afirmações malucas aparecem do nada, sem nunca ouvir docentes de várias gerações em escolas públicas ou privadas que atuam no ensino e, especialmente, nos diversos níveis de experiência, com suas distintas visões do processo de ensino-aprendizagem. Em particular no Ensino Médio, onde preparamos o jovem prestes a inserir-se no mundo do trabalho, estamos dilapidando os avanços propostos na Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e as mudanças curriculares contidas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio que implicaram na ampliação da oferta para que todos pudessem concluir a educação básica.

Afinal, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 59, a participação no sistema educacional foi definida dos 4 aos 17 anos, e o ensino médio tornou-se obrigatório para todos os jovens que concluíram o ensino fundamental, importante para o reconhecimento da importância política e social desta etapa fundamental para o desenvolvimento econômico do país como um todo, e a Lei nº 13.415/2017 definiu uma organização diferente para esta etapa. No entanto, sem tê-la implantado adequadamente, recomendações de diminuição da carga horária de ciências humanas feitas neste último ano, como se estas nada contribuíssem para a formação de toda uma geração, demonstram cabalmente a falta de entendimento dos sentidos e significados do ensino médio.

Uma análise contemporânea revela que a função social da escola, um espaço de interação, é o da garantia de futuro profissional, convívio respeitoso entre opiniões diversas, gerações distintas e representantes da comunidade. A recente e ainda incompleta mudança na concepção pedagógica está vocacionada para colocar o estudante no centro do processo, valorizando suas vivências e posicionamentos, permitindo uma participação mais ativa do aluno em sua própria educação.

O momento presente tem modificado muito, nem sempre para melhor, a ordem econômica e cultural, trocando autoria, criatividade e orientação por meio do diálogo por obediência e hierarquia.
A civilidade que parece prevalecer em alguns outros países passa ao largo da sociedade brasileira, a sensação é que, na prática, retrocedemos à Idade Média, apesar de nossa legislação ser relativamente justa e moderna.

A relação dialógica da educação contemporânea

Walmir Fernandes Pereira

Resumo:

A Educação Contemporânea não pode mais viver isolada das necessidades e vivências da realidade social escolar vigente. Os sistemas educacionais de ensino brasileiro precisam repensar suas ações pedagógicas e a formação de seus professores, seja a inicial (universidades) e continuada (Escolas/Universidades/ Faculdades), estudando o público-alvo da educação básica, escutando os anseios e estruturando ações, que de fato, promoverão o ensino e a aprendizagem dos alunos brasileiros.

Leia o artigo completo.

ALICIAMENTO E PROSTITUIÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE A PRODUÇÃO DOS CADERNOS PAGU, LEGISLAÇÃO PROTETIVA E A REALIDADE

Izabel Cristina Liviski

Vanisse Simone Alves Corrêa

Sonia Maria Chaves Haracemiv

Resumo: O artigo apresenta um levantamento dos trabalhos publicados na Revista Cadernos Pagu nas temáticas de prostituição e aliciamento. Também faz um breve relato de experiência sobre o que se observou na cidade de Três Lagoas/ MS, em uma visita realizada em junho de 2012, em locais de prostituição. Nessa realidade o que chamou a atenção foi a presença de jovens travestis. Demonstra, de maneira geral, a legislação que protege a criança e o adolescente. Metodologicamente, para o levantamento junto à revista, utilizou-se como filtro os verbetes aliciamento e prostituição infanto-juvenil. No campo empírico, a abordagem foi realizada com jovens de 15 a 19 anos em seu espaço de atuação e as informações foram coletadas por meio de conversas informais. O artigo conclui que, apesar da grande demanda, há pouca produção acadêmica da temática estudada no periódico analisado.

Palavras-chave: Aliciamento e prostituição infanto-juvenil. Revista Pagu. Legislação sobre a criança e o adolescente.

Introdução

A infância e a adolescência são períodos muito especiais na vida de todo ser humano, mas não podem ser reduzidas somente às idades dos sujeitos. Um ser humano se constrói e se coloca no mundo a partir de múltiplos referenciais. De fato, segundo Sousa, Miguel e Lima (2010),

(…) não nos parece possível pensar a infância e a adolescência reduzidas a períodos etários, mas como temporalidades ou como sujeitos que existem em um tempo não cronológico, não linear, mas que reúne aspectos diversos de um mesmo contexto (SOUSA, MIGUEL E LIMA, 2010, p. 30).

Assim, pesquisar sobre crianças e adolescentes exige que se pense para além do seu desenvolvimento físico. As crianças e adolescentes situam-se na sua realidade a partir da cultura e meio em que estão inseridos. Experimentando inúmeros estímulos e vivências, consolidam sua identidade.

Para Sousa, Miguel e Lima (2010, p. 31), as crianças e adolescentes, pelo fato de ainda estarem em desenvolvimento, não se reconhecem como seres únicos e diferentes, necessitando de espaços criativos (individuais, sociais, culturais e afetivos) para que possam expressar todo seu potencial genético, que pode ser entendido como o conjunto de características únicas de cada indivíduo (PERALVA, 2005). Assim, para se desenvolverem plenamente, as crianças e adolescentes necessitam de apoio, orientações e cuidados constantes. Não porque sejam incapazes, mas sim por serem sujeitos em desenvolvimento. Nesse caminho de crescimento, precisam ser resguardados de todo tipo de violência, inclusive a sexual.

A violência, como fenômeno social, pode surgir a qualquer momento e em qualquer ambiente. Para Stoltz e Walger (2009),

A violência normalmente surge como um resultado de uma complexa realidade dinâmica da sociedade, na qual diferentes conceitos, fundados em uma cultura já estabelecida, estão envolvidos. Dentre eles, os que definem o meio familiar, o social, o escolar, o econômico e o político. Esses conceitos são traduzidos por meio de valores (STOLTZ e WALGER, 2009, p. 161).

A violência sexual é fruto desta dinâmica, mas também das relações de poder e gênero, entre outras. Para Giron (2010),

 A violência sexual contra a criança e o adolescente se configura como uma das violações de seus direitos e se caracteriza pela transgressão da sua intimidade, com base em relações de mando e obediência. É marcada pela perversão e pela ausência de escolhas quando a vítima é uma criança (GIRON, 2010, p, 64)

Ainda segundo a autora, a violência sexual contra a criança e o adolescente “é inaceitável, é ilegal, fere a ética e transgride as regras sociais e familiares de convivência mútua e de responsabilidade dos adultos” (GIRON, 2010, p. 65). O prejuízo acarretado às crianças e adolescentes que sofrem violências sexuais são enormes. Giron (2010, p. 65) cita alguns:

– As relações sócio-afetivas e culturais entre adultos e crianças/adolescentes são deturpadas;

– As representações sociais são descaracterizadas, o que deixa as crianças e adolescentes confusos quanto aos papéis dos adultos;

– As relações entre adultos e crianças/adolescentes são invertidas. Tornam-se desumanas, negligentes, agressivas, dominadoras e perversas, ao invés de protetoras, solidárias, democráticas e amorosas.

– Existem possibilidades de que o sujeito violado sexualmente desenvolva estruturas psíquicas, morais e sociais pervertidas.

Crianças e adolescentes violados não têm o direito de se desenvolverem plenamente e se tornarem adultos felizes. A violência e exploração a que são submetidos deixa profundas marcas psicológicas, o que os impede de crescer de maneira saudável e natural. Muitas vezes, é preciso anos de tratamento e acompanhamento para readequá-los e reinseri-los novamente na sociedade.

A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é ao mesmo tempo, crime e violência. Essa população é atraída para o mercado do sexo, iludida por falsas promessas se torna vítima indefesa de adultos inescrupulosos que visam o lucro. O aliciamento pode ser definido como o ato de atrair para si, seduzir, forçar ou levar alguém a fazer algo que não queira. Assim, o aliciamento é a principal arma para manter o mercado do sexo funcionando.

https://observatorio3setor.org.br/noticias/500-mil-criancas-sao-vitimas-de-exploracao-sexual-no-brasil/

Para Giron (2010), devido ao caráter econômico da exploração sexual, ela

(…) deve ser estudada e compreendida no contexto do sistema capitalista e da sociedade de consumo globalizados, em suas articulações com as atividades mercantis dos territórios onde ocorre. A exploração sexual comercial que enreda crianças e adolescentes, acontece  num mercado específico: o mercado do sexo, que toma a corporeidade do outro como mero objeto de satisfação alheia. Esse mercado abrange, de maneira profundamente articulada, o agenciamento sexual e a indústria pornográfica. É sustentado pelo lucro derivado da exploração do trabalho sexual, de mão-de-obra de adultos subordinados e de população infantojuvenil (GIRON, 2010, p. 70).

Infelizmente, cada vez mais crianças e adolescentes são aliciados e movimentam altas quantias de dinheiro, trazendo lucro com a violência realizada contra seu corpo e sua dignidade. A autora destaca que a oferta de serviços sexuais, durante muito tempo esteve representada apenas pela prostituição. Mas isso vem mudando, com o advento da tecnologia, Internet e dos meios de comunicação, o que incrementa a produção de mercadorias e serviços sexuais. Tudo isso “contempla a fantasia generalizada de pedófilos e outros abusadores” (GIRON, 2010, p. 71). Paralelamente ao avanço e diversidade dos “produtos sexuais”, também

O conceito e as concepções acerca da exploração sexual comercial  de crianças e adolescentes evoluíram nas últimas décadas. Durante muitos anos, a presença de crianças no comércio sexual confundia-se com a prostituição infanto-juvenil. O incremento do turismo sexual, a rápida expansão do sexo via a Internet, levaram à compreensão de que a pornografia, o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais são também formas de exploração de crianças e de adolescentes, no organizado negócio de produção e comercialização de “mercadorias” sexuais (GIRON, 2010, p. 71).

Além disso, enfatiza a autora, a compreensão do fenômeno de exploração sexual de crianças e adolescentes adquiriu uma dimensão política e ética, pautada na cidadania e nos direitos humanos. Por esse viés, a exploração sexual se constitui como um crime contra a humanidade.

Em relação ao comércio eletrônico de pornografia infanto-juvenil, a autora assevera que

(…) é um negócio que envolve desde esquemas amadores até redes criminosas de alta complexidade. Por se tratar de crime cibernético, de âmbito mundial, seu enfrentamento se depara com enormes dificuldades operacionais e legais. No Brasil, a Polícia Federal e a Interpol têm sua ação dificultada pela deficiência da legislação vigente. Existem variadas formas de pornografia que envolvem crianças e adolescentes, inclusive a difusão de imagens de abuso sexual de crianças de tenra idade, em cenas de sexo perverso e sádico. Há sites que vendem espetáculos de pornografia com crianças em tempo real, e mesmo de necrofilia (GIRON, 2010, p. 75)

A autora ainda destaca a importância de se observar a íntima relação entre a pornografia infanto-juvenil e o tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual.

Para Stoltz e Walger, 2009, a exploração sexual se traduz de várias formas como prostituição, tráfico e venda de pessoas, turismo sexual e pornografia infantil. Em relação à exploração sexual contra crianças e adolescentes, ela “é praticada por pessoas de todas as classes sociais e na maioria das vezes, por indivíduos do sexo masculino” (Stoltz e Walger, 2009, p. 161).

https://agenciaaids.com.br/noticia/relatorio-de-violencia-contra-lgbts-mostra-queda-nas-mortes-por-homofobia-em-2020/

A prostituição, para Giron, (2010), pode ser entendida como “uma atividade na qual, atos sexuais são negociados em troca de dinheiro, da satisfação de necessidades básicas como alimentação, vestuário, abrigo, ou do acesso ao consumo de bens e serviços” (GIRON, 2010, p. 73). Ou seja, as pessoas não se prostituem somente por dinheiro, mas também para satisfazer  suas necessidades básicas como a fome. Isso é muito triste e demonstra o grau de subordinação que às vezes, as pessoas que se prostituem estão subordinadas.

A prostituição pode ser exercida de diferentes formas e em variados lugares. No caso das crianças e adolescentes, a autora ressalta que essa população em geral trabalha nas ruas, portos, estradas, bordéis. Em relação ao Brasil,

(…) na Região Norte do Brasil, eles/elas seviciam meninas e meninos que trabalham em regime de escravidão e que normalmente estão envolvidos com o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais. Muitas dessas crianças e adolescentes moram nas ruas, são vítimas de violência e encontram-se em circunstâncias de extrema pobreza e exclusão social. De ambos os sexos, crianças, pré-adolescentes e adolescentes quase sempre têm pouca ou nenhuma escolarização. As atividades a que são obrigados/as a realizar são extremamente perigosas e eles/elas estão sujeitos a todo tipo de violências, da repressão policial à discriminação (GIRON, 2010, p. 73).

Ainda em relação ao termo prostituição, quando se refere a crianças e adolescentes, a autora afirma que muitos pesquisadores e estudiosos têm questionado o seu uso, já que essa população não escolhe espontaneamente essa atividade, mas são “cooptados a praticá-la e, portanto, são prostituídos” (GIRON, 2010, p. 73). Pela sua imaturidade emocional, carências e apelos da sociedade de consumo, são induzidos a praticar a prostituição. Assim, continua a autora, “não podem ser caracterizados como trabalhadores do sexo, mas sim como prostituídos, abusados e explorados sexual, econômica e emocionalmente” (GIRON, 2010, p. 73). Nesse sentido, todos aqueles que facilitarem, induzirem ou obrigarem crianças e adolescentes a se prostituir  tornam-se exploradores sexuais, incorrendo em crime.

A legislação que protege a criança e o jovem

No Brasil, desde o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, esta população adquiriu status de sujeitos de direito. Do ponto de vista legal, isto é muito significativo, uma vez que o direito e garantia era sempre do adulto responsável pela criança e pelo adolescente. O direito se estendia para a criança, emanava do adulto para a criança, já que o sujeito de direito não era a criança e o adolescente e sim o responsável por elas.

A partir dessa mudança de paradigma, muitas ações puderam ser engendradas, o que trouxe muitas inovações para as instituições e profissionais envolvidos nessa questão. Com o surgimento de legislação específica para estes sujeitos de direito, houve um avanço no entendimento das questões referentes à infância e adolescência.

Somente a legislação, porém, não garante que o direito seja efetivado.  Para que a lei atue na realidade social, é necessário que ocorra a mobilização de todos os atores envolvidos, como os órgãos do estado, escolas e Conselhos Tutelares.

Vivemos num Estado Democrático de Direito, o que pressupõe o cumprimento do que foi determinado pela lei. Em contrapartida, o cidadão tem seus direitos assegurados. A legislação que trata da proteção integral a crianças e adolescentes é muito ampla e busca assegurar que estes sujeitos possam crescer como cidadãos, conscientes de suas potencialidades e que futuramente possam contribuir para a manutenção de uma sociedade digna. Esta base legal, porém, levou muito tempo para se constituir. De fato, segundo, Mariano (2010),

O reconhecimento contemporâneo da criança e do adolescente como credores de um amplo leque de direitos percorreu (e ainda percorre) uma série de dificuldades. O tempo que separou a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989 – nada menos que dois séculos – sinaliza os percalços que a noção dos direitos da criança precisou transpor na sociedade moderna (MARIANO, 2010, p. 43).

Entender esse processo histórico, da busca pela garantia de direitos para a criança e o adolescente é condição indispensável para a sociedade civil assumir sua parcela de responsabilidade na efetivação destes direitos e na melhoria da sociedade como um todo.

Compreender que a criança e o adolescente são sujeitos de direito obriga que se olhe para além do assistencialismo. Exige compromisso com essa população, porque há legislação que determina o que deve ser feito para melhorar suas condições de vida.  Entender suas necessidades pelo viés do Direito é o caminho mais adequado para promover e fortalecer seu desenvolvimento, o que deve ser realizado em um esforço coletivo, tendo como principais atores o Estado e a sociedade civil organizada.

https://wsimag.com/es/economia-y-politica/14575-ciudad-juarez-paraiso-de-la-prostitucion

Promover o desenvolvimento da criança e do adolescente é promover a vida e o futuro deste país, abrindo caminhos de esperança e de igualdade, dando a eles oportunidades de participação e expressão e possibilitando, portanto, o exercício efetivo do protagonismo infantil e juvenil.

O entendimento de que a infância é um fenômeno social ainda é muito recente. A imagem que a criança teve, ao longo da história, foi, recorrentemente, de um ser que não estava pronto ainda para se cuidar sozinho, como os adultos. Ao mesmo tempo, dadas as suas fragilidades, não podia invocar a proteção em seu favor. Dependia, portanto, da boa-vontade dos adultos.

O conceito ou idéia que se tem da infância construiu-se historicamente[1] e por muito tempo a criança não foi entendida como um ser em desenvolvimento, mas como um “pequeno” adulto. A partir desse conceito, entende-se que a concepção da criança é “vivida e aprendida a partir das construções feitas pelos adultos” (ROCHA, 2002). Assim, a história das crianças é registrada pelos adultos, a partir da perspectiva de um mundo já socialmente estruturado.

Desde a mais tenra idade a criança era preparada para viver em um contexto de maturidade. A infância era somente uma etapa pela qual se passava rapidamente. A linguagem, a vestimenta e as funções sociais eram iguais tanto para o adulto como para a criança. A criança era, em síntese, um adulto de menor tamanho. Nessa perspectiva, não havia respeito pela criança, havia altos índices de infanticídio e mortalidade infantil. Não havia sentimentos especiais em relação à criança, nem mesmo os de amor materno. Predominava a visão utilitária da criança, que se fosse jogada fora, poderia ser substituída por outra, rapidamente. A morte de crianças era vista de forma muito natural. O contexto familiar estruturava-se a partir de uma idéia social e não sentimental. Uma prática comum era dar a criança para outra família criar. Caso a criança sobrevivesse, voltaria para casa aos sete anos, quando seria então inserida na família e também no trabalho. Essa situação perdurou até o fim do século XIII. Mas a preocupação com o cuidado com as crianças só aconteceu bem mais tarde, a partir do século XVII, quando o poder público e a Igreja começaram a se preocupar com o infanticídio, até então tolerado. Algumas melhorias aconteceram para tentar diminuir o infanticídio, entre elas as condições de higiene.

 A partir do século XIV, com o interesse da Igreja pelas crianças e o grande movimento de religiosidade cristão que se formou a partir disso, surgiu a figura mística da criança, vista como um anjo, associada ao Menino Jesus e também à figura maternal da Virgem Maria. Isso trouxe outros sentimentos pelas crianças, que até então não predominava: os da ternura e do carinho. Assim a criança começou a ser tratada e vista de uma maneira diferente, um novo sentimento aparece. A isso Ariès chama de “sentimento da infância”, que segundo ele, caracterizou-se por dois momentos muitos distintos. O primeiro refere-se à “paparicação”, que era motivada pela graça, beleza, ingenuidade e pureza da criança e pelo seu comportamento infantil, pela sua maneira de falar e pelas coisas “engraçadas” que realizava. Nesse momento, a criança é vista como uma diversão, um bicho de estimação, algo que agrada e alegra o mundo dos adultos. Esse ser que distrai e encanta tem que ser mantido vivo e os pais, especialmente as mães, começam a se preocupar com isso. Somente aceitavam perder a criança, caso fosse a “vontade de Deus”, o que não poderia ser contestada. Assim, melhorar as medidas de higiene e saúde tornou-se ainda mais importante.

O segundo momento, a partir do século XVII, é descrito como “apego” e surge justamente contra a “paparicação” que envolvia as crianças. O objetivo era separar a criança do adulto e educá-la de uma forma mais racional, mais disciplinada, em um contexto moral rígido. Assim, inicia-se a educação das crianças, controladora e extremamente disciplinadora. A religião impõe o modelo da família nuclear, em que o pai se torna a figura central, dotado da capacidade de ditar as regras e normas consideradas certas e que deveriam ser seguidas. A criança então se torna alvo de controle familiar e social.

Nesse período aparecem as primeiras instituições de ensino, o que favorece a busca pelo saber sobre as crianças e suas peculiaridades e pelas particularidades da infância. A família e a sociedade começam a se preocupar mais com as crianças. Isso mudou a relação social do adulto com a criança, que começam a se ocupar mais com questões ligadas à saúde e educação infantis. Nesse breve histórico, é possível perceber como a criança foi alvo de inúmeras representações equivocadas e muitas vezes cruéis, até que se chegou ao entendimento atual de suas peculiaridades e necessidades.

 A representação social da criança e do adolescente é um importante fator para que se entenda em que medida essa compreensão sobre esse público específico impactou e ainda impacta na forma como a legislação e as políticas públicas se efetivaram e se efetivam na garantia, promoção e defesa dos seus direitos.

Experiência de campo: o pouco que diz muito

O trabalho de campo que se iniciou, ainda é incipiente face à complexidade do tema, mas já aponta direções para uma etnografia mais elaborada, com entrevistas estruturadas.

Esta pesquisa teve início pela demanda que surgiu do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, junto à Universidade Federal do Paraná. Foi verificado que a partir de empreendimentos levados a cabo pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) em várias localidades do país, tais como abertura de estradas e construção de pontes, surgem ocorrências para além dos previsíveis impactos ambientais, como novos e graves impactos sociais, representados pelo aumento da prostituição já existente, estupros e a incidência de aliciamento para a prostituição infanto-juvenil. Esses episódios ocorrem, em parte pela grande leva de trabalhadores do sexo masculino que migram geralmente do norte e nordeste para regiões do sudeste, sul e centro-oeste do país, desacompanhados de suas famílias, a fim de trabalhar nessas obras.

 A presente pesquisa se deu na cidade de Três Lagoas (MS), onde está sendo construída uma ponte sobre o Rio Paraná na BR 262, ligando os estados do Mato Grosso do Sul e São Paulo.

A experiência de campo nesta localidade consistiu basicamente de algumas observações e conversas informais à noite nos bairros e mesmo no centro da cidade de Três Lagoas (MS), onde se encontrou um grande número de travestis menores de idade “fazendo ponto”. Estas observações aconteceram durante o mês de junho de 2012.

Em entrevistas não-estruturadas com alguns deles, verificou-se que a idade varia entre 15 e 19 anos. Algumas informações comuns foram coletadas:

– A identificação como sendo homossexuais desde a infância;

– Em geral vivem somente com a mãe e desconhecem o pai;

– A família não sabe que se prostituem;

– Consideram a prostituição como provisória, já que pretendem fazer um “pé de meia” para investir em outra atividade.

– Alguns se iniciaram “na vida”, como se referem à atividade, ainda muito jovens: entre os 12 e 13 anos de idade.

– Têm baixa escolaridade, daí a escolha da prostituição como uma forma “rápida e fácil” de ganhar um salário considerado elevado para eles: em média R$ 2.500,00 por mês.

Alguns deles usam perucas femininas e muita maquiagem para não serem identificados, já que a cidade onde vivem é pequena (pouco mais de cem mil habitantes). Outro detalhe importante é o consumo de drogas por
grande parte deles, inclusive nos locais onde ficam esperando os clientes.
Há os que consideram a atividade apenas como uma forma de “diversão”, um espaço de sociabilidade que estabelecem com os amigos que
os acompanham, já que há conversas, risadas, consumo de bebidas alcoólicas e drogas nos pontos onde se prostituem.

Essas observações, embora rápidas, podem ajudar a refletir sobre o campo e a fomentar novas pesquisas. Ressalte-se que o presente relato descreve os primeiros indícios encontrados na realidade, indicando que há material importante para a continuidade do estudo.

Larissa Pelúcio (2005), em seu relato sobre a etnografia que realizou entre as travestis da cidade de São Paulo diz que: “A prostituição é entendida de diversas formas pelas travestis: (1) como uma atividade desprestigiosa, com a qual só se envolveriam por necessidade, saindo dela assim que possível; (2) como uma forma de ascender socialmente e ter conquistas materiais e simbólicas; (3) como um trabalho, sendo, portanto, geradora de renda e criadora de um ambiente de sociabilidade” (PELUCIO, 2005, p..).

Essas não são posições estanques e definitivas, mas pontos de vista e percepções que se entrecruzam e dialogam. Como categoria espacial e
simbólica – ligada à noite, à boemia, aos prazeres e à prostituição –,
a rua seduz. (…) Na “avenida”, categoria êmica[2] para designar os
espaços da prostituição rueira, elas testam o sucesso de seus esforços
de transformação, “dando close” – exibindo-se e esnobando as outras –,
fazem amizades, aprendem a ser travesti a partir das trocas de
informações e da observação. Nos territórios da prostituição elas namoram, encontram e fazem amigas, compram roupas, aprendem técnicas corporais importantes, além, é claro, de ganhar seu ‘aqué’[3].” (PELUCIO, 2005, p..).

A descrição acima, apesar de se referir a travestis adultas, maiores de idade, se assemelha muito ao comportamento e mentalidade observados entre as jovens travestis na cidade de Três Lagoas.

A temática Prostituição e aliciamento na Revista Pagu

Segundo o site do Scielo[4], a revista Cadernos Pagu é uma publicação que se iniciou em 1993 e vem se constituindo em um elemento importante para a constituição do campo dos estudos de gênero no Brasil. Somente a partir de muitas leituras, discussões e análises do Núcleo de Estudos de Gênero, da UNICAMP, decidiu-se criar a revista Cadernos Pagu. No primeiro número, somente pesquisadores do Núcleo de Estudos de Gênero apresentaram suas produções. A partir do segundo número, a revista abriu espaço para outros pesquisadores brasileiros e estrangeiros. A revista Cadernos Pagu é publicada semestralmente, com diversas áreas de interesse, entre as quais Sociologia, História, Ciência Política e Educação.

A escolha deste periódico se deu pela importância que ela representa, junto à comunidade acadêmica, nas discussões sobre temas de grande relevância para a vida em sociedade. Justamente por não se tratar de uma publicação específica sobre crianças e adolescentes, é que ela se torna uma importante referência para se diagnosticar, em que medida pesquisadores de áreas afins oportunizam o debate e a reflexão necessárias para o enriquecimento da área avaliada.

O objetivo desta análise foi verificar, junto às 39 edições da Revista Pagu, o grau de incidência de pesquisas/relatos sobre as temáticas aliciamento e prostituição infanto-juvenil. Metodologicamente, iniciou-se um levantamento dos temas contemplados em cada dossiê. Somente duas edições priorizaram as questões afins aos verbetes buscados: a Edição n.º 25, de 2005, Mercado do Sexo  e a Edição n.º 26, de 2006, Repensando a Infância. O dossiê 25, dedicado ao mercado do sexo, procurou, entre outras questões, pensar sobre as marcas de gênero que perpassam a indústria do sexo. Este dossiê não apresentou nenhuma pesquisa sobre aliciamento e prostituição infanto-juvenil.

Já o dossiê 26 procurou realizar uma leitura da produção científica sobre a categoria infância no Brasil e em outros países e apresentou dois artigos referentes à temática buscada. São eles:

Afinal, quem é mesmo pedófilo?, de Jane Felipe, em que a autora problematiza alguns dos aspectos relevantes em torno das modalidades dos desejos eróticos/sexuais e a ressignificação desses conceitos, a partir de uma análise pós-estruturalista. A autora conclui que esses comportamentos fogem às categorizações pré-estabelecidas.

Violência sexual contra crianças na mídia impressa: gênero e geração, de Tatiana Savóia Landini. Neste artigo a autora faz um resgate do que foi publicado sobre as diversas formas de violência sexual contra crianças e adolescentes, tais como incesto, pornografia infantil e pedofilia, pelo Jornal O estado de São Paulo, no século XX. A autora busca chamar a atenção para a forma como os crimes sexuais eram noticiados e para os sentimentos sociais presentes nestes textos. Concluindo, a autora entende que houve mudanças relevantes na forma de noticiar as violências sexuais.

O que chama a atenção na análise realizada, é a baixíssima produção acadêmica sobre aliciamento e prostituição infanto-juvenil encontrada na publicação que se privilegiou para o levantamento, apesar da importância do tema.

À guisa de conclusão

O objetivo deste relato foi o de fomentar a discussão sobre as temáticas de aliciamento e prostituição infanto-juvenil. A inquietação inicial surgiu a partir da constatação de uma realidade inesperada, encontrada em Três Lagoa/MS, no contato com as jovens travestis. O que se buscou foi apresentar um diagnóstico preliminar da situação, e o que se constatou foi a necessidade urgente de aprofundar as reflexões necessárias para mudar a realidade social. Crianças e jovens são aliciadas e levadas para o mercado do sexo. Homens e mulheres ganham dinheiro às custas de uma indústria que cresce a cada dia mais. Essas crianças e jovens são vítimas de um sistema cruel e desumano, que não leva em conta o estado de desenvolvimento em que se encontram, aproveitando-se das suas fragilidades e necessidades para envolvê-los em redes criminosas. É importante lembrar que crianças e jovens são sujeitos de direitos, protegidas por uma legislação forte e por órgãos governamentais e da sociedade civil.

A maioria dos autores consultados, aborda o tema da prostituição infanto-juvenil como um meio de sobrevivência, sendo que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), caracteriza a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (ESCCA) como a modalidade de trabalho infantil mais degradante já identificada. Sendo produto de uma sociedade extremamente desigual, adultocêntrica e machista, acarreta graves conseqüências para as crianças e jovens envolvidos, principalmente seqüelas mentais, envolvendo as áreas da emotividade e afeto.

No discurso das jovens travestis fica claro que elas atuam no mercado de sexo por opção própria, até encontrar outro trabalho ou para garantir seu sustento. Não se reconhecem como vítimas e sim sujeitos que escolhem de livre vontade, a prostituição. É possível, em consonância com Giron, 2010, refletir sobre o grau de violência que é cometido contra essa população. Sua juventude, inexperiência e imaturidade emocional às leva a pensar que estão se prostituindo por opção. Não conseguem visualizar a teia social da qual fazem parte, nem as inúmeras e complexas relações de poder e as ilusões de uma sociedade consumista que as levam a se prostituir. Nesse sentido, não podem ser consideradas como profissionais do sexo, mas como jovens e adolescentes prostituídos e violados em seus direitos mais elementares.

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Acessado em 27/06/2011

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VERONESE, J. R. P. Temas de direito da criança e do adolescente. São Paulo: LTR, 1997.

Enviado em Outubro de 2012.


[1] ARIÉS, 2006.

[2] Antropologicamente  é a cultura de certos grupos ou sociedades. In: http://www.dicionarioinformal.com.br/%C3%AAmico/ acesso em 18/10/2012.

[3] Na gíria dos travesties, significa dinheiro.

[4] In: http://www.scielo.br/revistas/cpa/paboutj.htm 

Imagens: Retiradas da Internet, sem fins lucrativos.

Godofredo Tinoco e as condições de produção de suas ideias em Campos dos Goytacazes: O espectro de capitalidade na conformação de uma metrópole cultural do Norte fluminense no século XX

Por Taiany Felipe*

A partir do campo da história intelectual, a intelectualidade nessa discussão é compreendida no percurso historiográfico pelo tema e contexto da atuação de Godofredo Tinoco. Esta perpassa produções literárias e atuações políticas significativas, da cidade de Campos dos Goytacazes ao cenário político nacional que movimentou a chamada “Revolução de 30”, num trajeto entre trocas de correspondências das quais foi mensageiro. Nesse sentido, a história intelectual, enquanto suporte para análise das relações de forças sociais, assim servindo dialeticamente ao tempo e ao contexto em que as ideias são produzidas, contribui para a compreensão, além das relações de força, das redes de sociabilidade enquanto ação recíproca. Dessa maneira, a intelectualidade pode transpor direta ou indiretamente os campos da cultura e da política já que, desde as revoluções do século XVIII, ela articula-se como aparato para o arranjo desses eixos sociais. Contudo, é no século XX que esta função sobre as ideias parece tomar proporções de mediação mais esclarecidas ao compor indispensavelmente os meios de opinião pública, informação e conhecimento, adentrando nos amplos dispositivos de cultura e organização social então emergentes.

O momento histórico do Brasil neste século, recém republicano e, portanto, ainda sob a égide das elites centrais, nos leva a olhar a conjuntura nacional apenas do eixo dominante que disputava as frentes oligárquicas, ignorando articulações diretas com territórios regionalizados de segunda grandeza e sua produção ideológica também em prol da política nacional. Não obstante, por meio dos elos declarados nos documentos do acervo do Godofredo, podemos considerar  que a linguagem política vigente não somente chegava ao território de Campos dos Goytacazes e o influenciava, mas também se construía-se dentro e a partir dele por meio de personagens representantes da elite local nas relações interestaduais.

A cidade de Campos dos Goytacazes enquadrava-se em uma geografia privilegiada em relação às demais da época, pois dotada de um extenso território foi espaço de produção intensiva da cana de açúcar desde o século XVIII, tornando-se um importante centro econômico e distribuidor de mercadorias no Norte Fluminense. A potencialidade produtiva foi condição principal para a transformação urbanística da cidade a partir das políticas de ocupação e promoção do território que deram espaço a uma maior circulação de mercado, e consequentemente da cultura. Essa valorização por parte da Coroa corroborou para a mudança gradativa do imaginário que caracterizava uma identidade de selvagem e rebelde ao campista, transformando-se em um reconhecimento que beirou o ufanismo ao valorizar politicamente os bens materiais, naturais, e simbólicos da cidade e de sua população.  Este trabalho, contudo, não tem como objetivo debruçar-se na complexa formação econômica/social do processo colonial e imperial da então Villa de São Salvador, já sendo ela tema de trabalhos que elevam suas questões. Cabe aqui elucidar somente as propriedades pontuais sobre sua adequação pela elite política aos moldes cosmopolitas no que tange,  posteriormente, a formação de uma classe intelectual ativa politicamente nos traves republicanos e, especificamente, nos trâmites que inauguram a Segunda República. 

Portanto, esse exame documental e contextual busca expandir o escopo analítico do começo do século XX a partir de algumas das características de um centro político e cultural de relevância no interior do Rio de Janeiro. Dessa forma, a pesquisa sobre a intelectualidade exercida por Godofredo objetiva não somente apontar as práticas discursivas que colocaram Campos dos Goytacazes nos moldes de uma metrópole cultural, mas historicizá-las, a fim de localizar as classes que as representaram em prol de seus próprios projetos. Nesse intuito, considera-se o movimento que reverberou na cidade entre o século XIX e meados do XX e que nessa pesquisa é conceituado enquanto um espectro de capitalidade, indicando a elaboração contínua de uma identidade local que foi base da disputa pela capital do Estado. Mas o impacto dessa manifestação constante nos discursos da elite política local deve ser entendido no contexto específico do século XX, sobretudo pela contribuição deste na circularidade das ideias em decorrência dos novos dispositivos de difusão e do movimento político que essa classe integrou. Isso significou enxergar a participação efetiva de Campos nas demandas nacionais do começo do século, no qual a elite da cidade absorve quase o mesmo processo da ordem oligárquica e suas dissidências do país, porém com especificidades históricas que lhe conferem maior necessidade de análise pelo potencial organizativo e as redes de força do território regionalizado.

Sendo parte dos resultados de pesquisa de caráter arquivístico e histórico, é correto afirmar que esse trabalho se baseia principalmente sobre as fontes documentais tratadas no acervo Godofredo Tinoco da Casa de Cultura Villa Maria – UENF. É, portanto, a partir da análise documental desse acervo pessoal institucionalizado, que são examinadas as condições de produção materiais e simbólicas que sustentaram a atividade intelectual articulada por Godofredo no decorrer de sua trajetória na cena cultural campista dos novecentos.

Para além do averiguar historiográfico, compreender essa dupla propriedade dos documentos do Godofredo Tinoco, como constituinte de um arquivo pessoal e que é institucionalizado postumamente, mostra-se essencial para a realização de sua análise que considere o campo simbólico em que o acervo está inserido e para que assim se desvie de seus ardis. É na imersão nesse campo simbólico materializado nos documentos em pesquisa, que podemos encontrar e/ou perpetuar, ou não, a memória que também  institucionaliza-se. Não trata-se, contudo, de tirar a imparcialidade dos documentos em si, mas dos atributos que neles são passíveis “de outros interesses que não os ditados por sua estrita e imediata funcionalidade”[i].

Mesmo que a produção de lembranças e esquecimentos não seja o objetivo principal de determinada ação das instituições na sua relação entre passado e presente, as operações por elas realizadas acabam por influenciar nesse sentido. A permanência de determinado costume, de determinado hábito, de tradições de pensamentos e de práticas, mesmo que não considerado declaradamente como um elemento de determinação de memória ou de esquecimento, resulta em sê-lo[ii].

               No que diz respeito ao acervo de Tinoco, seu caráter simbólico consiste no próprio valor que sua produção e rede intelectual corroboraram à cidade de Campos. Ainda que nascido em Macaé, é em Campos dos Goytacazes que Godofredo Nascentes Tinoco (1897 – 1983) se constrói como douto articulador da cultura e, consequentemente, da política campista. Esta posição certifica-se com base na parte de seu acervo pessoal composto por uma expressiva quantidade de documentos de cunho pessoal – como correspondências, postais, fotografias e recortes – e também os de caráter público – como seus livros, artigos, contos, peças – grande parte em diferentes versões e também os não publicados. A frente de instituições como a Associação da Imprensa Campista (AIC), Academia Campista de Letras (ACL) e das primeiras faculdades a se instalarem na cidade – Faculdade de Direito de Campos (FDC) e Faculdade de Filosofia de Campos (FAFIC) – além de membro ativo de sociedades de atuações específicas como a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), Godofredo escreveu por elas e sobre elas de forma a declarar um projeto ético-político, de sua classe.

            O momento histórico no qual Tinoco é contemporâneo representa uma guinada nos    aparatos de disseminação de informação e cultura, assim como em toda cadeia produtiva desempenhada pela ampla industrialização do capitalismo vigente. Esse movimento de modernização já permeava a cidade de Campos desde as últimas décadas do XIX por meio das indústrias e companhias de transporte ferroviário e dos novos serviços públicos, assim conformando uma nova elite na organização desse espaço cada vez mais urbano. Nesse cenário em construção, o intelectual já fazia-se dirigente na produção do saber e na enunciação da verdade[iii].

Os intelectuais indubitavelmente eram o grupo mais marcante nesta paisagem urbana em mutação, renovada pelas intervenções inéditas que conduziam a novos modos de funcionamento do espaço social, fazendo emergir novos valores e de comportamento que levaram, finalmente, à constituição de novas práticas e relações sociais[iv].

            Nesse momento, Campos dos Goytacazes já destacava-se como uma metrópole cultural do interior, mas é no século XX que as práticas culturais, derivadas dos moldes modernizadores importados para o Brasil, tomam maior força na cidade. Além das diversas casas de teatro e jornais que nela constituíram-se ao longo do século XIX, o novecento ainda atribui à  planície campista a relação direta com a radiodifusão, aparatos que conjuntamente favoreceram maior interação entre diferentes públicos, artistas e intelectuais de múltiplos lugares. A cidade teve, contudo, seus próprios personagens de relevância na organização e gerência desses aparatos culturais, sendo em sua maioria pertencentes às classes médias e altas oriundas das oligarquias locais. Essa prevalência das elites políticas da cidade implica uma correlação entre cultura e classe, principalmente por tratar-se de uma cidade entre o campo e o mundo citadino, guiada por um espectro de capitalidade pronunciado por essas mesmas elites.

            O espectro em questão refere-se à  produção e circulação de uma identidade regional que é evocada ao longo de dois séculos nos projetos que buscaram tornar a então Vila de São Salvador uma província e, quando cidade, capital do Estado. De acordo com Chrisóstomo (2011), esse manejo pela capitalidade  desenvolve-se em três movimentos distintos. A começar com a localização estratégica da cidade, que a favorecia como um importante eixo de conexão comercial com o que é hoje o Norte Fluminense, a Vila de São Salvador começa a ser reconhecida politicamente, principalmente por sua estabilidade econômica com a cultura da cana de açúcar. Ainda no século XVIII, os diversos incentivos e investimentos da Coroa na Vila resultaram num plano de ocupação que sustentou uma rede de instituições judiciárias e religiosas. A partir desse olhar econômico para a região, sua imagem começa a se deslocar da alcunha de ‘selvagens e rebeldes’ à uma valorização  de suas características ambientais e à docilidade de seus habitantes[v].

            Com essa nova identidade regional que se forja e reproduz no XIX a partir de seus  recursos naturais e da riqueza econômica e cultural, as elites políticas locais estabeleceram[vi] o potencial da Vila  para competir com Niterói e Itaboraí a nova província do Império. Embora tenha perdido para Niterói nesse primeiro projeto de capitalidade, Campos recebe em 1835 o status de cidade, juntamente com um movimento de propaganda mais comedido em defesa do papel da cidade para o desenvolvimento do norte fluminense.

Ressaltar a importância da região, ora representando-a como uma área de grande potencialidade, ora como local degradado por falta de investimento e patriotismo dos cidadãos foram estratégias utilizadas pelas lideranças políticas para tanto incentivarem o que era considerado “a defesa do bem público” como para obterem recursos adicionais do governo central e provincial. De certa forma, as propostas das elites locais em transformar Campos num centro econômico foram lapidadas a partir da sistemática projeção da cidade como modelo de progresso e desenvolvimento regional[vii].

Mesmo com a crise provocada pela baixa da cana de açúcar e escassez da mão de obra, um segundo movimento pela capitalidade teve início em 1850. Nesse momento, a disputa pelo status de capital penetrava as várias cidades da província na expectativa de solucionar seus problemas econômicos e políticos. Contudo, Campos permaneceu no controle de ambos problemas, sendo o município mais abundante de toda província. Em 1855, um projeto foi submetido com as características que legitimavam a antiga Vila a tornar-se a Província de Goytacazes: “uma rede urbana, um espaço integrado, por meio do qual a capital exerce o seu papel de atrair e difundir os fluxos administrativos, comerciais, políticos e culturais”[viii]. No entanto, a fatalidade da epidemia de cólera rompeu a execução de mais esse movimento.

Contudo, a crise política no final do regime monárquico brasileiro reviveu o debate em torno da mudança da capital ainda no fim do século XIX, quando Campos demandou mais uma vez o título durante a década de 70 e, novamente, em 1893. Nesses dois momentos, mesmo com as constantes derrotas no desejo pela a capital, o apoio da Associação Comercial foi de suma importância em decorrência de sua estrita relação com essa recente conjunção de atividades citadinas. Todavia, esse espectro que circundou a planície parece não findar no século XIX, como pode-se observar no opúsculo “Campos capital” de Lamego Filho em novembro de 1930:

E pois em nome do passado, do presente e do futuro fluminense, que os grandes municípios do norte, sustentáculos do Estado do Rio de Janeiro, veem sob a chefia de Campos, Itaperuna e Padua – colossos expoliados da economia nacional – requerer a transferência de sua capital para a cidade de S.Salvador dos Campos dos Goytacás, afim de que, conflitantes nas suas fecundas administrações, possam estender as mesmas realizações pragmáticas, por todo o territorio estadual[ix]. 

            Tendo em vista o rastro discursivo em torno da capitalidade, a apropriação de Campos dos Goytacazes enquanto núcleo do circuito econômico e cultural, direciona o debate na compreensão da produção dos discursos por suas frações de classe que corroboraram com as narrativas desse espectro ainda no século XX. De acordo com Albuquerque (2008), um recorte histórico e espacial sobre uma região explica-se pelas práticas e discursos, sendo ela, portanto, “fruto dos saberes, dos discursos que a constituíram e que a sustentam”[x]. Guiado por esta identidade regional remanescente que demarcava a cidade, Lamego (1930) indaga a legitimidade de Niterói, então capital administrativa do Estado, por sua condição intensamente metropolitana não representar todo o espírito fluminense. Ele ainda enfatiza que é a região do norte fluminense a responsável por grande parte das receitas federais e estaduais, onde “em Campos se concentra a enorme produção dos municípios do norte e grande parte da dos limítrofes que os avizinham”[xi]. Em uma linha argumentativa bem semelhante, Godofredo Tinoco convoca, 37 anos depois, a mesma identidade que forjou a cidade sobre atributos beneméritos de capitalidade e representação estadual e nacional.

Se essa afirmativa constitui regra, o município de Campos, no Estado do Rio de Janeiro, constitui brilhante exceção. E constitui porque – revelam-nos recentes recenseamentos – é o município mais populoso do Brasil, porque tem nos seus 4.681 quilômetros quadrados, 350.000 habitantes: é, de acordo com as estatísticas, o município onde o brasileiro mais produz per capita. No entanto, é o município, talvez, mais brasileiro do Brasil, por isso que o elemento estrangeiro no seu meio – embora sempre bem recebido – é quase nulo. E, se procurassemos êsse número em 1918, o teríamos nulo, efetivamente, porque, àquela época, estavam ainda tôdas as usinas em mãos de campistas natos[xii].

            Como já mencionado, a constante formulação de epítetos de valor à cidade de Campos, está diretamente ligada ao projeto de enobrecimento e adequação da cidade a partir do padrão de modernização em voga. Mais esculpido do que nunca no século XX, esse projeto terá Tinoco como importante organizador e dirigente de suas demandas na cidade. 

É necessário sublinhar o impacto dos intelectuais – produtos e agentes da nova configuração social e política – no movimento de abolição da escravidão, na instituição da República, na expansão da produção industrial e agrícola e nas reformas urbanas. Eles eram os agentes responsáveis pela instituição de novas formas e espaços de sociabilidade. Sobretudo, através de seus escritos, eles participavam ativamente na concepção e na divulgação da cidade moderna que se buscava criar[xiii].

            Godofredo respondeu tanto ao projeto modernizador e identitário quanto aos anseios de uma reconfiguração republicana, ambas características que reverberaram na elite nilista de Campos. Da contribuição na criação da Campos moderna, com aparatos que se materializaram numa paisagem cosmopolita em meados do século XX, à participação nos movimentos políticos que abriram espaço à Segunda República brasileira, o intelectual denunciou esses atributos de sua intelectualidade de maneira um tanto quanto explícita em seus diversificados escritos públicos.          

            A sua filiação ao movimento que apoiava o conterrâneo Nilo Peçanha nos entraves republicanos, pode ser melhor apanhada em seu livro Nilo, o redivivo sob pseudônimo de Um Goitacá[xiv]. Nesse trabalho Godofredo demonstra o valor dado ao vulto nilista como um ato “deliberadamente partidário de um regime contrário à opressão e favorável à justiça”[xv]. É uma afirmativa que, aliás, está baseada na preocupação do próprio Godofredo com uma escrita da “História sob um aspecto puramente objetivo”, vista por ele como impossível de ser realizada e que, por isso, ele aparenta querer deixar claro de qual prisma filosófico parte a produção dessa biografia. Nesse sentido, afirma:

Não vamos mostrar, para exaltar, a vida de um poderoso, detentor de cornucópia das graças, das chaves do Tesouro – mas de um homem que nasceu pobre e que pobre perlustrou todos os cargos eletivos dêste país – desde a deputação federal até à Presidência da República, passando, de permeio, duas vezes pela Presidência do seu Estado natal e uma pelo Ministério do Exterior, numa época em que o orçamento dêsse ministério era limitado – e que legou ao jazigo do Cemitério de São João Batista um corpo consumido ao serviço da Pátria e à esposa a casa que recebera como presente de seus amigos.[xvi]

            O legado de Nilo Peçanha foi motor e atalho para a participação de parte da elite campista e fluminense na coisa pública em nível nacional, na qual Godofredo foi expoente. Esse legado associa-se sobretudo, ao espaço dado à região nas oportunidades políticas enquanto estadista, que poderia “mais uma vez, restaurar a economia, as finanças, a moralidade e a paz novamente desaparecidas das terras fluminenses”[xvii]. Sobre essa influência, Alves denomina:

[…] uma linhagem de lideranças políticas que permaneceram atuantes nos anos 1890-1930 e também no pós 30. Um grupo minoritário, uma elite política caracterizada pela homogeneidade fornecida pela socialização, ocupação e carreira política (CARVALHO, 1981), composto por comerciantes e fazendeiros, empresários locais, médicos, engenheiros, advogados e jornalistas. […]  Nomes como Luiz Chrysóstomo de Oliveira, Manuel Gesteira Passos, Benedito Gonçalves Pereira Nunes, João Guimarães, Cesar Tinoco, Godofredo Tinoco, Luiz Sobral, Ramiro Braga, Bruno de Azevedo, Alberto Lamego, Izimbardo Peixoto, João Barreto, Obertal Chaves, Cardoso de Melo, sendo vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores, prefeitos. Tais indivíduos são a expressão da elite campista, constroem a carreira política em torno do nilismo[xviii].

No caso de Godofredo, a influência nilista ainda mais direta estava representada por seu irmão César Tinoco (1884 – 1960), importante aliado de Nilo desde quando era redator no Gazeta do Povo, jornal do Partido Republicano Fluminense.[xix] Levando isso em consideração, cabe ainda salientar que a participação de Godofredo na coisa pública está ligada, sobretudo, a uma  ampla herança da família Tinoco em Campos, esta que se acomodou em dois importantes veículos de representação elitista da cidade: a cana de açúcar[xx] e a imprensa[xxi]. Este último foi de grande valia para a rede intelectual de Godofredo e sua organicidade, principalmente se considerado que “toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais”[xxii].

As especialidades que são atribuídas em seu trabalho intelectual serão, certamente, fator de maior circularidade das suas ideias. Embora formado em Direito pela Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, Godofredo integrou as áreas da literatura, história, jornalismo, economia, política e teatro em sua produção. Suas ações práticas serão mencionadas sempre que oportuno nestes trabalhos, principalmente no que refere-se ao movimento tenentista e seu seguimento em 1930, em que teve participação efetiva como articulador entre estados. Dessa forma, Godofredo evidenciou uma movimentação intelectual que se organizava não somente na prática discursiva, mas também na ação política coletiva.

Há de se notar que, o movimento de 30 contou com ampla participação de Campos em razão dos nilistas (partidários de Nilo Peçanha) terem simpatia ao tenentismo e apoiarem a Aliança Liberal. Figuras como Juarez Távora e o brigadeiro Eduardo Gomes tiveram o apoio dos adesistas do movimento, como César Tinoco, Dr. Cardoso de Melo, Godofredo Tinoco, Gilberto Siqueira, além do usineiro Francisco Ribeiro da Motta Vasconcellos – o Cel. Chico Motta. A participação do Godofredo Tinoco foi expressiva por suas ações. Tinoco juntou-se à “Coluna Gwyer”41 em Palmas (MG). A coluna invadiu o Norte Fluminense, dominando as cidades de Miracema, Pádua, Cambuci e S. Fidélis. Em Campos, os conflitos entre os defensores da revolução e os adeptos do governo foram intensos, uma vez que o prefeito em exercício, Luiz Sobral, apoiava Washington Luís. Jornais que se colocaram a favor do governo foram empastelados. O jornal O Dia de propriedade de Godofredo Tinoco é fechado e, ele mesmo foi detido, juntamente com o médico Cardoso de Mello, ambos foram remetidos ao Rio de Janeiro. A Associação Comercial logo aderiu ao movimento e os discursos inflamados expressavam o seu apoio[xxiii].

Em um de seus livros de título O Teatro em Campos 1735 – 1963, uma intervenção de característica particular atravessa o histórico do movimento teatral campista no ano de 1932. Godofredo explana em terceira pessoa sua participação contra a Revolução Constitucionalista, declarada pelos paulistas com fins a derrubar o governo provisório instaurado por Getúlio Vargas em 1930.

1932 só teve teatro no seu primeiro semestre, pois, a Revolução de São Paulo tumultuou de certo modo a vida social da cidade: – Godofredo Tinoco, depois de contacto pelo telefone com Eduardo Gomes, Cordeiro de Faria e Juarez Távora – seus companheiros de revolução de 1922 a 1930, depois de fazer um ‘meeting’ convocando os moços a defenderem e consolidarem a situação criada pelos revolucionários daquele período, embarcou no dia seguinte com um contingente de 384 voluntários campistas que se bateram bravamente desde o alto da Mantiqueira, até Espírito Santo do Pinhal, onde foram surpreendidos com a terminação da luta[xxiv].

Além de declarações informais em escritos de cunho outro que não político, Godofredo dedicou uma importante obra a esse conhecimento interno que teve na experiência entre os movimentos da década de 20 e 30. Seu reconhecido trabalho de 1931 Tempo bom… no setor leste, voltado à Revolução de 30 e seus pródromos, tem conteúdo dedicado à descrição e exame dos tratos internos em que fez parte. Em outro exame, mais curto e informal, com intuito de esclarecer algumas prerrogativas que atrelaram esse acontecimento político somente a morte de João Pessoa, o intelectual pontuou intimamente seu roteiro na coluna Gwyer dentre as condições pilares para o que culminou em 1930:

I – Tem sido repetido com alguma frequência que sem a morte de João Pessoa, não teria existido a Revolução de 30.

Não é exato, pois,  antes da morte de João Pessoa:

[…]

d) – fui feito agente de ligação entre o Nordeste e o Sul, levando instruções de Eduardo, Cordeiro e Tasso para o Rio Grande e para São Paulo, de todos êsses lugares trazendo palavras de ordem para Minas e Paraíba;

e) – da Paraíba, trouce instruções de Juarez para que oficiais prêsos no Rio de Janeiro – um dêles Asdrúbal de Azevedo – prêso no Regimento de Cavalaria, à Avenida Ivo – fugissem para determinados pontos.

A morte de João Pessoa teria sido, simplesmente, a gota d’água que fez transbordar o copo com antecedência de horas ou dias […][xxv].

Como movimento que decorre e se firma nas aspirações que procuram forjar uma nova identidade e consciência nacional ao país a partir de uma “republicanização da República”, encontrar os laços entre Godofredo e o direcionamento político do tenentismo mostra-se devido. Estes laços, em grande medida, dizem respeito a defesa da modernização e das reformas sociais, demandas proeminentes nas camadas médias urbanas, onde nelas também se encontra a situação institucional dos tenentes como membros do aparelho do Estado e que se pronunciavam em nome da coletividade nacional, numa alternativa democrática. Nesse quadro, a vinculação de Godofredo à Reação Republicana diz respeito, não somente à influência da candidatura de Nilo Peçanha em 1921, mas da contribuição geral das tensões regionais por suas oligarquias não vinculadas ao café. Assim, as dissidências oligárquicas “utilizam em sua luta pelo poder uma insatisfação militar de caráter corporativo, aguçada por uma grande coesão grupal”[xxvi]. A ênfase dos revolucionários nas reformas jurídico-políticas, como a ‘verdade de representação política’, ‘liberdade de imprensa e pensamento’ e ‘obrigatoriedade do ensino médio’ (etc.), confere a participação das demandas das camadas urbanas na base social do tenentismo, bem como está a par com as prerrogativas defendidas por Tinoco.

Os tenentes não se vêem como representantes de determinada categoria social, tentando impor à sociedade seus interesses específicos, mas falam em nome de interesses nacionais, supondo representar uma consciência nacional. Agora não falam mais, como em 1922, apenas em nome de uma corporação ofendida, mas se pronunciam em nome da coletividade nacional, propondo para ela uma sociedade verdadeiramente democrática[xxvii].

É nesse momento de estreitamentos dos personagens campistas com os dos demais estados em reação, que suscitou “um amplo debate sobre a importância de Campos no cenário fluminense, propiciando a retomada da idéia “Campos-capital”[xxviii], como já mencionado no documento de Lamego. As condições políticas que determinaram a desarticulação dos estados fora do eixo oligárquico dominante com o fim do domínio nilista,  determinou uma profunda “fragmentação política das elites políticas do estado do Rio de tal maneira que mesmo as facções identificadas com a revolução não tiveram condição de impor um elemento fluminense para a direção estadual ao longo dos anos 30.[xxix] A caráter da interferência do golpe na cidade, Lamego manifestou:

Mau grado as perspectivas da nova política, ensaiada pela Revolução, o povo fluminense nunca será livre emquanto lhe cair sobre a capital a sombra do palácio carioca. Qualquer arruaça, qualquer distúrbio, qualquer levante, na capital da República, reflecte-os immediatamente a nossa, em symetria fidelissima de espelho[xxx].

A condição geral do país no final da década de 20, a crise política, mais a crise econômica de 29, sufocou a agroindústria açucareira de Campos e região na década de 30. Diante dos prejuízos e reclamações dos produtores, o governo provisório de Vargas  ainda criou em 1933 o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) “com o objetivo de desenvolver uma política nacional de planejamento, controle e fomento da produção de açúcar e álcool”[xxxi].  Essas reivindicações, em decorrência do tumulto gerado pela as novas condições políticas, marcaram o pós 30 produzindo um eco do anseio pela capitalidade e da busca pela ‘idade de ouro’, por meio de “um consenso político que lhe possibilitasse resgatar, no novo regime republicano, seu antigo status econômico e político”[xxxii].

Os anos 1930 representam assim um novo momento político- econômico para as elites de Campos no desdobramento do processo de remodelação urbana como projeto político. Dotar Campos de condições de sediar a capital do estado e, assim se constituir num importante centro da política fluminense era condição sine quo na nova conjugação de forças que se instituía no país com o governo de Getúlio Vargas e notadamente com a interventoria de Amaral Peixoto no governo do Estado do Rio de Janeiro, de 1937-45[xxxiii].

Embora não se possa afirmar Godofredo como agregado a esse manifesto pela capitalidade, é efetivo em suas ideias o compromisso que estabeleceu com as afirmativas e projetos que buscaram elevar a imagem moderna e ‘civilizada’ da cidade. Em uma de suas crônicas, enobrecerá alguns resultados desse projeto pela relação que a cidade ora cravava com a cultura em circulação na capital:

O simples fato de grandes pintores da França Nova, depois das mostras feitas nas maiores capitais dos nossos maiores Estados – Rio de Janeiro inclusive – lembrarem-se de Campos, já representa um inequívoco privilégio da nossa cultura. Vamos travar conhecimento com a cultura clássica através dos pincéis modernos, até o impressionismo tão discutido[xxxiv].

Quando Salo Brand, então prefeito de Campos (1942 – 1945) e parte da base corporativista estadual de Amaral Peixoto, decreta a posse do prédio pela Academia Campista de Letras, instituição na qual Godofredo estava presidente, o intelectual promove uma carta aberta de honra a tal ato. Nesse intuito, Tinoco fundamentou em linha humanística sua diligência na promoção da cultura na cidade, pontuando sua convicção na educação como agente primordial para a consciência da sociedade civil nas questões nacionais.

O mundo, desde a sua mais remota história, mostra não haver medicina de efeitos mais heróicos que a cultura, porque a inteligência e a educação sempre foram o mais alto de todos os valores, a fonte mais rica de todas as riquezas.

O ser humano já traz em si, indelével, indeclinável, a capacidade superior sentir, a faculdade –  que é privilégio seu – de admirar e gozar o belo. Urge, pois, cultivá-la, aperfeiçoá-la, aumentá-la, porque as leis do belo ajuntam a todos os gráus de fortuna. Essa aristocracia do espírito que o gosto pressupõe, assinalava Rui, não depende absolutamente da riqueza, mas da elevação das impressões, da nobilitação do sentimento, na inteligência que dignifica as necessidades mais habituais da nossa passagem pela Terra![xxxv]

Mais tarde, em 1957, foi nomeado dentro do movimento que deu cabo ao déficit da cidade em relação aos cursos superiores. Num levantamento concedido em entrevista e publicado no Monitor Campista de 18 de abril do mesmo ano, Godofredo exibiu os estatísticos que comprovavam que Campos “sofria uma sangria de 80 mil cruzeiros por dia – ou seja de 2 milhões e 400 mil cruzeiros por mês – com os estudantes que estudam no Rio de Janeiro, pelo fato de não haver em  Campos nenhum Curso Superior”[xxxvi]. Nessa causa, fundou e dirigiu os dois cursos inaugurados em 1958.

Já com os cursos superiores montados e prestes ao funcionamento, com as suas inscrições a serem abertas em 1º de janeiro funcionando os cursos de Direito e Filosofia, graças ao dinamismo inexcedível de Godofredo Tinoco, vimos chegar assim ao fim uma campanha árdua, dura, mas graças a Deus vitoriosa[xxxvii].

               A partir da segunda metade do século XX, a cidade já contava com uma ampla estrutura cultural e política. A política de cooptação promovida por Brand entre 1942 e 1945 beneficiou o norte fluminense com o fomento de atividades econômicas e vultosas obras de infraestrutura. Nesse contexto, esculpia-se a política urbanizadora do Estado Novo – formulado dentro do ‘Plano Agache’ proposto por Salo Brand – que estabeleceu o gosto, a atitude cosmopolita na paisagem e assim significou e organizou novos espaços de fortalecimento de redes políticas.

Com efeito, a cidade de Campos atinge a década de 1940 sendo portadora de uma imagem cosmopolita, usufruindo de equipamentos urbanos modernos, possuía 8 praças públicas, 134 ruas, 7.812 prédios entre residenciais e comerciais, 05 jornais diários (Folha do Comércio, A Gazeta, A Cidade, A Notícia, o Monitor Campista, sendo o terceiro mais antigo do país), a Associação de Imprensa, fundada em 17-06-1928, o Conservatório de Música, inaugurado em 1936, usufruía dos serviços de correio aéreo, desde 1937. Em 1939 é inaugurada a Livraria Acadêmica e nesse mesmo ano é fundada a Academia Campista de Letras por um grupo de intelectuais, como Nelson Pereira Rebel, Barbosa Guerra, Godofredo Tinoco, Gastão Machado, Mario Barroso, Silvio Fontoura, Izimbardo Peixoto, Alcides Maciel. […] A cidade afirma-se como capital intelectual- cultural do norte fluminense notadamente pelo intenso movimento teatral não só pela produção/encenação de peças de teatro e de revista, destacando-se Múcio da Paixão. […] O dinamismo cultural é marcante, é inaugurada a Rádio Cultura de Campos (11-11-1934) graças ao entusiasmo de um grupo formado por Amador Pinheiro da Silva, Alcides Carlos Maciel, engenheiro- eletricista Avelino Silva, Antonio Pereira Amares, organizadores da Sociedade Rádio Cultura de Campos[…][xxxviii]

Percebe-se, portanto, que Godofredo buscou nos movimentos ditos revolucionários do século XX aliar e defender seu projeto de modernização da cidade encaminhando projetos de construção de  aparatos de difusão de informação, conhecimento e cultura. Sua participação direta na criação e administração desses aparelhos assegura a afirmativa. O intelectual entendia o compromisso de sua função, e atrelava a ela o valor moral e ético da classe que representava e que acreditava dispor em suas ações políticas. Em uma carta de 1961 à Mário Ferraz Sampaio, – atuante nos primórdios da radiodifusão brasileira bem como na instalação da Rádio Cultura de Campos – PRF 7 – Godofredo alude esse princípio circunscrito em sua função:

Os homens da nossa geração têm que mostrar aos da geração que nos vai suceder que aquêles que se fazem profissionais da divulgação das idéias – pela tribuna escrita ou falada – devem ser verdadeiros sacerdotes de uma causa imediatamente representada pela sadia liberdade do pensamento – único clima compatível com a dignidade humana[xxxix].

Esse paradigma ideológico guiou a intelectualidade de Tinoco tanto na defesa do golpe de 30 quanto no de 64, nos quais fez questão de sempre sustentar a alcunha de ‘revolução’[xl], como declarado nas fontes apresentadas.  Trata-se da defesa do que melhor sustentava a classe intelectual nacional, mas principalmente a que ele pertencia em Campos. Dessa forma, o fator progressista em seu discurso atento ao republicanismo, contemplava tanto o polo de valor universalista – da assimilação desses novos princípios liberais em circulação – quanto, e sobretudo, o de valor nacionalista – que no Brasil correspondia, como detectava Gramsci, a uma conservação “dos interesses e da influência clerical e militarista”[xli], mas sobretudo guiada por um ‘civismo’, uma pedagogia de Estado que forjasse a identidade nacional. Em um discurso de Tinoco na Associação da Imprensa Campista (AIC) em 1943, pode-se observar uma melhor aglutinação desses valores com que ‘o cidadão cumpre devotamente os seus direitos de membros de uma sociedade política”[xlii]:

Auxiliar, pois, Meus Senhores, a feitura da “Casa do Jornalista”, é pugnar pela alma indômita da Vossa própria nacionalidade, amparando com o Vosso apoio, aquêles que nunca Vos faltaram, e que se deram em holocausto sem Vós, aos Vossos e Vossa Terra, defendendendo com denodo e com tanecidade, a Moral, o Direito, a Propriedade, a Cultura – em uma palavra: – a Civilização![xliii]

Sua atuação correspondeu a um padrão, de pelo menos primeiros 60 anos de República, em que as elites intelectuais brasileiras estabeleceram intervenção cívica e política particularmente efetiva,  no ímpeto de diagnosticar as mazelas nacionais e locais e no esforço de tornar concreto a demanda modernizadora, estabelecida a partir da adesão do republicanismo. No caso fluminense, o consenso que seus intelectuais buscaram organizar no começo do século XX, era sobretudo com fins na ruptura da política empregada pelo eixo dominante Minas – São Paulo. Entretanto, esse projeto em torno da hegemonia federal em disputa acomodou-se no mesmo plano de busca por uma constante qualificação e fortalecimento da cidade de Campos frente a região norte fluminense. Contrastava um embate intra-oligárquico que colocava em voga a interiorização da política fluminense ou a sua nacionalização como formas de melhor participação política da região. Contudo, como discutido por Ferreira, o conflito das frações da elite campista mostrou que, embora as tentativas pela capitalidade não tenham sido sucedidas, as iniciativas do grupo nilista em estabelecer uma rede de alianças no escopo do Distrito Federal e entre estados que viria a emergir na Reação, deu seus frutos na elevação da figura de Nilo e dos nomes que com ele se organizaram. Contudo, passado a derrota do movimento, pode-se dizer que o sucesso obtido diz respeito às trajetórias políticas individuais que ao longo do século continuaram articulando a imagem campista nas esferas em que tiveram espaço.

O passado de opulência da cidade de Campos, que permanecia em voga em ambos projetos de interiorização e nacionalização da política local, tratou da construção de um passado moldado em atributos de grandeza. Estes correspondem ao reconhecimento de uma época que se configurou no tempo, na realidade concreta que, embora nostálgica, e por isso exacerbada, não era mítica. Representava, sobretudo, a decadência da realidade presente que precisava ser expurgada frente à necessidade de acomodar a cidade nos padrões de modernidade e na disputa política regional e estadual na qual sua elite queria lugar.

            Conclui-se que nesse objetivo, Godofredo exerceu  papel de “enunciador e organizador de uma reforma intelectual e moral”[xliv] que armou campo para o desenvolvimento da vontade de sua classe em busca de uma forma superior de civilização moderna.  Deve-se, portanto, o reconhecimento desse aspecto de classe a fim de não deixar seus feitos fora dos interesses particulares do bloco histórico a que serviu enquanto elemento superestrutural.

* Taiany Felipe é bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense – Instituto de ciências da sociedade e desenvolvimento regional / PUCG com permanência de vínculo cursando licenciatura. Exerce atualmente pesquisa de teor arquivístico e histórico sobre acervo artístico/político do intelectual Godofredo Tinoco na Casa de Cultura Villa Maria – UENF e compõe os grupos de pesquisa Officina de Estudos do Patrimônio (UENF), Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (UFF) e História das Direitas e do Autoritarismo (UFF) nas linhas Políticas Culturais, Patrimônio e Arte; Intelectuais, História Política e História Pública e História Política e Discursos, respectivamente.


[i] (CAMARGO, 2009, p. 36)

[ii] (DUARTE, 2018, p.13).

[iii] (SILVA, 2002)

[iv] (FARIA, 2008, p. 61)

[v]Segundo  Soffiati (1997), este gênero narrativo de valorização dos aspectos ambientais e culturais da região que será desenvolvido ao longo dos próximos séculos, parece encontrar suas bases nos relatos e memória do capitão Manoel Couto Reys no século XVIII.

[vi] Cabe salientar que, “o desejo de ser uma nova capital sinalizava a posição de destaque ocupada pelas lideranças do norte fluminense frente às decisões tomadas pelo executivo e legislativo provincial”. (CHRISÓSTOMO, 2011, p. 68).

[vii] (ibidem, p. 67)

[viii] (CHRISÓSTOMO, 2011, p. 76)

[ix] (LAMEGO, 1930, p. 18)

[x] (ALBUQUERQUE, 2008, p. 59)

[xi] (LAMEGO, 1930, p. 8)

[xii] (TINOCO, 1967, pp. 10 e 11)

[xiii] (CHRISÓSTOMO, 2011, p. 59)

[xiv] Pseudônimo que evoca uma identidade nacional firmada, neste momento, sobre o que seria de mais brasileiro. Portanto, atrelar o papel de seu povo originário, o Goitacá, na construção da identidade do campista, também mostra-se recorrente na literatura de auto enobrecimento regional e local.

[xv] (GOITACÁ, 1967, p. 131)

[xvi](GOITACÁ, 1967, p. 131)

[xvii] (ibidem p. 101)

[xviii] (ALVES, 2013, pp. 56-57)

[xix] Informações retiradas do verbete sobre o jornalista, encontrado na Fundação Getúlio Vargas, disponível em:

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/cesar-nascentes-tinoco

[xx] (ibidem, p. 81)

[xxi] Em seus livros “Imprensa Fluminense” (1963) e “Grandezas e Misérias da imprensa campista” (1965), Godofredo apresenta os 127 anos que a família Tinoco ocupava na estirpe de jornalista do Estado.

[xxii] (MICELI, 2001, p. 17)

[xxiii] (ALVES, 2013, p. 91)

[xxiv] (TINOCO, 1963, p. 89)

[xxv] Exame da Revolução de 30 sem datação feito por Godofredo Tinoco e componente de seu acervo. Documento completo digitalizado e disponibilizado no site da CCVM.

[xxvi] (FORJAZ, 1978, p. 23)

[xxvii] (ibidem p. 27)

[xxviii] (ALVES, 2013, p. 92)

[xxix] (FERREIRA, 1994, p. 30)

[xxx] (LAMEGO, 1930, p. 4)

[xxxi] (ALVES, 2013, p. 96)

[xxxii] (FERREIRA, 1994, p.12)

[xxxiii] (ALVES, 2013, p. 93)

[xxxiv] (TINOCO, 1949, pp.45 – 46).

[xxxv] Retirada da carta aberta de Godofredo Tinoco, quando presidente da Academia Campista de Letras (1944 – 1983), à Salo Brand, em agradecimento pela instalação do prédio da ACI durante sua ocupação como prefeito (1942 – 1945). Disponível em seu acervo digital no site da CCVM.

[xxxvi] Monitor Campista, 18 de outubro de 1957. Acervo Godofredo Tinoco.

[xxxvii] Folha do Comércio, 24 de dezembro de 1957. Acervo Godofredo Tinoco.

[xxxviii] (ALVES, 2013, p.108)

[xxxix] (TINOCO, 1965, p. 90)

[xl] “Mas, nem tudo está perdido neste País; como tudo demonstra, continúa em marcha a Revolução de abril, Amaral Peixoto, o inventor da ‘Caixinha’ no Estado do Rio, já foi esvasiado pelo grande Presidente Castelo Branco; Juarez que tanto deve a Campos há de zelar por nós, também” (TINOCO, 1965, pp. 87-88).

[xli] Gramsci pontua essa especificidade da intelectualidade na América do Sul e Central onde “as cristalizações ainda hoje resistentes nesses países, são o clero e uma casta militar, duas categorias de intelectuais tradicionais fossilizadas segundo o modelo da mãe-pátria européia” (GRAMSCI, 1985, p. 21).

[xlii] (MACEDO, 2015, p. 96)

[xliii]  (TINOCO, 1965, pp. 54-55)

[xliv] (GRAMSCI, 2001b, p. 18)

A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes. (1ª parte)

José D`Assunção Barros (2007) escreve que pensar e sentir a cidade antes do século XIX muitas vezes fora função dos poetas, dos cronistas e romancistas, bem como dos arquitetos e dos filósofos. Antonio Villela Junior – Vê Jota -, apresenta-se entre os cronistas da imprensa trirriense como aquele que mais escreveu sobre a sociedade nascente da Vila e depois distrito de Entre-Rios. Seus trabalhos atravessaram todo o período da formação urbana e indo além do movimento de emancipação, publicados nos anos iniciais da década de 1910 no jornal “Arealense”, bem como no informativo “Entre-Rios Jornal” (onde escreveu a coluna “Coisas que passaram”) entre outros, sendo de importância considerável para o estudo e a escrita da história de Três Rios/RJ e das sociedades constituídas nos anos iniciais da República, no interior do país.


Fotografia 1: Antonio Vilela Júnior – Vê Jota.

Dentre as diversas maneiras de se pensar a cidade e o espaço urbano de relação social, José D`Assunção Barros (2007) relaciona os estudos que consideram a “cidade como texto”, perspectiva apoiada sobre a contribuição da semiótica para o entendimento do acontecimento urbano, “e o seu leitor privilegiado seria o habitante (ou o visitante) que se desloca através da cidade,” sendo possível fazer uma leitura deste ambiente, através das diferentes escritas e linguagens que surgem nos processos de relação entre os grupos sociais e destes com os espaços urbanos, compreendendo seus critérios de aceitação e segregação, sua tecnologia, sua produção material e cultural, a distribuição de riquezas e etc.

Esta “escrita” da cidade é dinâmica, está sempre sendo revisada e alterada pelos próprios habitantes: “a cidade é um discurso”, (BARTHES. 2001) que pode ser lido e compreendido, mesmo com a diversidade de sentidos, através dos próprios espaços de relação (ruas, praças, monumentos, edificações) e das manifestações sociais e culturais que ocorrem nestes (festas, expressões artísticas, manifestações cívicas e esportivas etc.); sendo a fotografia a fonte que registra tanto os espaços quanto as manifestações nestes.

“De múltiplas maneiras o próprio espaço e a materialidade de uma cidade se convertem em narradores da sua história (…) É extremamente difícil e desafiador para o historiador que estuda as realidades urbanas do passado recuperar o registro (…) destes atos de fala.” (BARROS. 2007)

Fotografia 2: Nesta imagem as principais construções encontram-se margeando o trecho da Estrada União e Indústria – Rua da Condessa, (atualmente Avenida Condessa do Rio Novo), e da linha férrea da Estrada de Ferro Central do Brasil, (na fotografia a direita de baixo para cima e ao centro) na direção oposta à sua estação e pátio de manobra. Esta fotografia foi publicada na edição nº. 54 do O Jornal de Três Rios, que circulou em 3 de maio de 1961, com informação que o registro seria de julho de 1914, e pertencia ao Srº Guilherme Bravo, editor proprietário do jornal Arealense. Panorâmica do distrito de Entre-Rios na década de 10, sem fotógrafo conhecido, acervo André Mattos.

Na Vila de Entre-Rios, Estado do Rio de Janeiro, do último quarto do século XIX o pequeno contingente populacional permitia uma relação descrita pelo cronista como familiar, próxima ao que ainda ocorre nas pequenas cidades do interior ou em alguns bairros dos médios municípios brasileiros.

Através das imagens fotográficas percebe-se o quanto o distrito ampliou os espaços de relação com novas edificações para o comércio, a indústria e residências, ruas, praças, escolas e igrejas, o hospital, cinemas. O número de habitantes amplia-se recebendo também estrangeiros que se juntaram aos que aqui já residiam, entre estes os funcionários das estradas rodoviária e de ferro, os remanescentes dos proprietários rurais e os negros libertos das fazendas da região. Vê Jota percebe que este crescimento populacional determina a formação de “sociedades de toda a ordem,” grupos sociais são constituídos e estes que de distintos modos, escreveram o “discurso urbano” do período temporal de formação da cidade de Três Rios/RJ.

Não proponho recuperar neste trabalho, todos os caminhos percorridos através das variadas atividades cotidianas desenvolvidas pelos moradores de Entre-Rios; foram traçados múltiplos percursos, pois múltiplos os grupos sociais e suas manifestações de ordem cultural, religiosa, econômica e política, que se entrecruzam em vários momentos. Mas considerando a presença primeira das Fazendas de Café nesta região e da sua aristocracia rural, que se formaram também graças a relação com o negro através do trabalho escravo, permiti-me vislumbrar a inserção da população pobre e negra no espaço urbano de relação daquela sociedade nascente, utilizando-me para tanto das fotografias do acervo acumulado nas pesquisas para a construção de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado, percebendo presenças e ausências destes indivíduos em determinados espaços e grupos de relação; um …

“Decifrar de outro modo as sociedades, penetrando nas meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.” (ROGER, CHARTIER)

Fotografia 3: A imagem permite observar aspectos da formação urbana do distrito de Entre-Rios. Destaca-se à direita a estação ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil, com seu depósito e pátio de manobra repleto de vagões. Ao centro à esquerda, a Estação de Pedra da Estrada de Ferro Leopoldina com seu pátio, onde é possível ver uma locomotiva em partida (expelindo fumaça). Os trens entravam no pátio de ré, após manobra no atual bairro do Triângulo, depois de atravessar a Ponte das Garças. Fotografia do centro do distrito de Entre-Rios, entre a primeira metade da década de 1910 e o inicio da década de 1920. Sem informação do seu autor, acervo André Mattos.

 É preciso admitir que a coletividade da Vila de Entre-Rios, mesmo sendo um espaço em formação no interior do Estado do Rio de Janeiro, refletia a configuração da sociedade brasileira a época: nova organização social burguesa republicana (comercial, industrial e financeira), capitalista e urbana e são os representantes desta elite que produziram as imagens analisadas; o olhar do fotógrafo refletia em sua maior parte “as cenas” do cotidiano deste grupo.

Herdeira das propriedades de seus pais a Condessa do Rio Novo, sem descendentes diretos do seu casamento com seu primo José Antônio Barroso de Carvalho (Major Carvalhinho), concedeu por desejo expresso no seu testamento liberdade aos seus escravos deliberando também a utilização das terras da Fazenda de Cantagalo para o assentamento destes.

“Deixo livres todos os escravos que eu possuir ao tempo da minha morte, e desobrigados da prestação de serviços até aos vinte e um anos, os ingênuos filhos de minhas escravas nascidas depois da Lei de vinte e oito de dezembro de mil oitocentos e setenta e um. Esses libertos e ingênuos, e seus descendentes formarão em minha fazenda denominada de Cantagalo – uma colônia agrícola – com a denominação de “Nossa Senhora da Piedade”, que será a protetora do estabelecimento. Na mesma fazenda e a expensas do rendimento dela serão estabelecidas duas escolas para educação dos menores da colônia, de ambos os sexos, que serão franqueadas também aos menores da circunvizinhança, se não houver inconveniente. Aos adultos serão distribuídos lotes de terras a fim de cultivarem cereais para a sua subsistência e lotes de cafezais para beneficia-los e colher os frutos: destes, depois de convenientemente preparados e vendidos, lhes pertencerá a metade do produto liquido, e a outra metade à casa de caridade, que se fundar na cidade da Paraíba do Sul…” (Testamento da Condessa do Rio Novo de 18 de novembro de 1882, transladado do original em 1993 pela historiadora trirriense Irene Lopes Guimarães)

O período que se seguiu à libertação dos escravos – Mariana Claudina Pereira de Carvalho faleceu em Londres em 5 de junho de 1883 aos 87 anos -, e da Lei Áurea, encontra uma vila em processo de formação urbana, com a presença importante de trabalhadores funcionários da Estrada União e Indústria e da Estrada de Ferro D. Pedro II.

A principal expectativa por parte dos emancipados tornados libertos encontrava-se na Colônia e o término da escravidão apresentou-se como uma das etapas de um processo que visava obter o tratamento e direitos igualitários de cidadão. Segundo Isabela Innocencio (2005) foram um total de 244 escravos que conquistaram a liberdade, sendo 86 mulheres, 116 homens e 42 ingênuos.

Deste tempo até meados de 1935, quando do encerramento das atividades da Colônia Nossa Senhora da Piedade, Entre-Rios encontrava-se num crescente processo político visando à emancipação da cidade de Paraíba do Sul/RJ, principalmente por superá-la economicamente.

Nesta região do Vale do Paraíba a minoria de negros (é possível considerar a chegada neste percurso de tempo de negros oriundos de outras fazendas e regiões) se confronta então com os interesses daqueles que aportaram nestas terras e seus descendentes, atraídos pelas possibilidades de trabalho e renda junto às estações, ao comércio e a indústria, vindos do interior de Minas Gerais, bem como, imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, sírios e libaneses, e uma pequena parcela de alemães que vieram para a construção da cidade de Petrópolis/RJ e Juiz de Fora/MG e ingleses que nesta terra chegaram junto com os trilhos, os vagões e as locomotivas.

Para esta configuração, além das imagens fotográficas, foram importantes as crônicas do Vê Jota, pois através delas foi possível conhecer alguns dos personagens que transitavam por caminhos marginais nesta nova sociedade, “tipos populares” ou popularescos, presentes nas antigas ruas de terra batida.

“Tia Senhorinha”, velha crioula ex-escrava, curvada pela ação dos anos vividos e tida como dada a bruxarias, o que lhe valeu ser surrada algumas vezes pelos supersticiosos. “Panqueca”, português que trocara o hábito de trabalhar pelo de beber e tinha uma boca depravada. “Zé Periquito”, preto, moço, com os pés inchados pela quantidade de bichos que lhe atacavam os dedos; tinha a mania de se supor namorado das moças e vivia dizendo: “Zé Periquito qué casá, sim sinhô!” “Maria Jagunça”, uma preta descuidada dos requisitos de higiene e que por 40 réis de aguardente, portava bilhete de namorados: uma alcoviteira barata! “Cegonha”, outra preta, esta assediada e cozinheira que nas horas de folga, postava-se nos logradouros públicos e quando as crianças e mesmo marmanjos a espicaçavam, dizia: “Paga imposto!” e mudava de lugar. “Luiz”, mulato velhote trabalhador e fiel, que se esborrachava, as vezes e passava a elogiar as pessoas de destaque na localidade, terminando os elogios com frases como estas: “canalha”!, cachorro”! Antonio Simão, mulato que falava macio e vivia da caridade pública: foi o maior filante de cachaça de que viveu em Entre-Rios. Morreu abraçado a um garrafão vasio. Muitos outros tipos, alguns até perigosos, animaram as ruas de Entre Rios.” (EM COMEMORAÇÃO ao nosso aniversário – prêmio Melnhaque: A melhor “História de Três Rios”. JUNIOR, Antonio Villela. “O Jornal de Três Rios”. Três Rios/RJ. Ano II, 26 de abril de 1961, nº 53, p. 2.)

Apesar de experimentarem inicialmente uma proposta inédita de assentamento agrário, diferentemente da maioria dos ex-escravos que ao serem libertos não tinham muitas opções de trabalho e nem terra para produzir e morar, os negros da Fazenda Cantagalo e das fazendas de café da região, não conseguiram se livrar dos estigmas da cor e da escravidão, bem como dos interesses diversos – principalmente econômicos e fundiários -, daqueles que deveriam prover a realização dos desejos testamentários da Condessa do Rio Novo e que se incluem entre os fatores para a derrocada do empreendimento.

Entre os indivíduos listados por Villela Junior temos apenas um português e os outros são negros ou mulatos, indicando as condições de inserção dos indivíduos desta etnia naquela sociedade. É um discurso que desqualifica estes personagens, representações que demarcam territórios sociais (de classe e etnia), elaborados pelo senso comum e aplicados para descrever relações interpessoais e intergrupais.

Os termos utilizados também demonstram a maneira como os negros são percebidos: “ex-escrava”, “dada a bruxarias”, “preta descuidada”, “alcoviteira barata”, “velhote”, “trabalhador e fiel” (um ser subserviente, preparado para o trabalho pesado), “preta” e “filante de cachaça”. Os atributos físicos aparecem logo depois de seus nomes ou apelidos, identificando-os enquanto indivíduos marginais. O negro é relatado como um ser amoral, tendencioso ao vício da bebida, aos desvios da sexualidade e a violência. Cria-se com esta perspectiva um antagonismo de raças, “eliminava-se o escravo, mas inventava-se o negro/preto como uma marca social negativa. Libertava-se o trabalhador e instituía-se legalmente a idéia de “vadiagem” para controlá-lo.” (GOMES E ARAÚJO) Assim a utilização da mão-de-obra escrava durante um longo fundamental período de formação da sociedade brasileira determinou na pós-escravidão (o escravo e suas atividades no trabalho eram entendidos como coisas menores, inferiores) às delimitações de classes e papéis entre grupos étnicos distintos e o lugar que passaram a ocupar na cidade.

O que claramente se observa nas fotografias 4 e 5.

Fotografia 4: Tomada externa registrando a presença do ex-presidente Nilo Peçanha (marcado com uma seta) na Estação Ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil em Entre-Rios, quando da campanha para a eleição do presidente do Estado do Rio de Janeiro, de 1914. Os apoios da cobertura da plataforma em frente à estação ficavam fora de sua área, fixadas na calçada. Esta fotografia do primeiro quarto da década de 10 do século XX, pertence ao acervo  Srº Altair, sem fotógrafo conhecido
Fotografia 5: Ex-presidente Nilo Peçanha (marcado com uma seta) junto às autoridades quando da sua passagem pela Estação Ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil no distrito de Entre-Rios, registro externo do primeiro quarto da década de 10 do século XX. Sem autor conhecido, do acervo Sr. Altair

Nas duas imagens temos os registros fotográficos sobre a passagem do então ex-presidente da república Nilo Procópio Peçanha, pelo distrito de Entre-Rios (hoje Três Rios/RJ). Uma diferença marcante entre as duas está que na primeira, além dos políticos, comerciantes e outros representantes das elites do município de Paraíba do Sul e do distrito de Entre-Rios, reconhecidos principalmente pelas suas vestimentas e por se encontrarem em arredor do presidente, e membros de sua comitiva, temos a presença de populares e de crianças em número significativo, agrupadas e principalmente localizadas abaixo da posição do ex-presidente, mas em condições de serem “captadas” com destaque pela objetiva. A imagem valoriza a presença dessas pessoas junto a Nilo Peçanha.

Em confronto com o vetor escravidão, que como vimos, foi um dos constituintes sociais da base de formação da sociedade trirriense, tem-se à vista nesta imagem um bom número de adultos e crianças negras, bem como, percebe-se a ausência, nas duas imagens, da representação feminina, tendo em vista que a mulher brasileira adquiriu o direito de votar nas eleições nacionais somente no Código Eleitoral Provisório, de 24 de fevereiro de 1932, mas, à época, apenas as mulheres casadas devidamente autorizadas pelos seus maridos, às viúvas e solteiras com renda própria, costumavam aparecer em público.

Na segunda imagem, observa-se claramente o desejo de registrar a presença de Nilo Peçanha, junto a ele apenas as autoridades e os indivíduos expoentes das classes econômicas e políticas de Paraíba do Sul e do distrito de Entre-Rios. Os dois registros atendem a vontade de se comprovar a receptividade positiva e o apoio a sua campanha para presidente do Estado do Rio de Janeiro junto aos diferentes grupos sociais. Percebe-se também, à direita, presença de uma criança segurando o seu chapéu numa posição de reverência, trajando camisa e calça compridas e calçado com botas, demonstrando uma condição social superior às destacadas na fotografia anterior, enquanto os adultos portam chapéus.

Outro aspecto observado é o espaço físico onde as imagens foram construídas: ambas na Estação Ferroviária da Rede Central do Brasil, mas a primeira em local mais amplo, junto aos trilhos, propício a maior aglomeração popular, tendo no segundo plano os prédios do trecho urbano da Estrada União e Indústria (atual Avenida Condessa do Rio Novo); e a segunda, ao lado da sede da estação, onde o espaço reduzido serviu para limitar a presença apenas para representações políticas e econômicas da região.

O que nos informam esses personagens, suas roupas e adereços [também a falta destes como os sapatos nos pés de algumas crianças do primeiro registro], seus olhares, posição corporal e distribuição espacial na fotografia, seus espaços de relação, entre outros aspectos do registro imagético? Corroboram principalmente na identificação das divisões econômicas existentes nesta sociedade, na percepção da presença do poder político e econômico ainda nas mãos da etnia branca quase 30 anos após a libertação dos escravos, e na utilização do povo apenas para “confirmar” o apoio político à candidatura de Nilo Peçanha, entre outros fatores.

Referências

BARROS, José D`Assunpção. Cidade e História. Petrópolis/RJ. Editora Vozes. 2007.

BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados. v. 5 n.11 São Paulo/SP, jan./abr. 1991.

GOMES e ARAÚJO. Flávio e Carlos Eduardo Moreira. Abolição da escravidão: a igualdade que não veio. Disponível no site: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/abolicao_a_igualdade_que_nao_veio_6.html. Acesso em 23 jan. 2012.

INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. Liberdade e acesso à terra. Rio de Janeiro/RJ. Folha Carioca Editora Ltda. 2005.