UM ILUMINISMO JUDAICO? A HASKALÁ E OS FENÔMENOS DO
ESCLARECIMENTO NO DEBATE HISTORIOGRÁFICO E NAS IDEIAS DE MOISÉS MENDELSSOHN (1755-1786)

Filipe Peixoto Neves

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Filipe Peixoto Neves é historiador e licenciando em História pela Universidade Federal Fluminense, membro do Laboratório de Estudos da Imanência e Transcendência (LEIT/UFF). Pesquisador da História Judaica, também escreve sobre política e religião.

UM ILUMINISMO JUDAICO? A HASKALÁ E OS FENÔMENOS DO ESCLARECIMENTO NO DEBATE HISTORIOGRÁFICO E NAS IDEIAS DE MOISÉS MENDELSSOHN (1755-1786)

RESUMO

Este trabalho desenvolve-se, sob a óptica da História Intelectual e com o auxílio
metodológico da História dos Conceitos e de vasta análise de literatura pertinente,
atrevés de vários debates historiográficos acerca do Século das Luzes, o Iluminismo, e
seus diálogos com a Haskalá, o Iluminismo judaico. Partindo de tais implicações
historiográficas, seu objetivo é pôr à luz e compreender como as obras e ideias de
Moisés Mendelssohn (1729), considerado “o Sócrates judeu”, articulam-se com o
Esclarecimento já difundido na Europa e América do Norte e abrem as portas do
modernismo na sociedade judaica alemã, enquanto esta busca a sua emancipação e
fim das perseguições religiosas. Mendelssohn, o arauto do Iluminismo judaico, foi
um importante filósofo judeu em plena burguesia prussiana, mantendo contato e
trocando correspondências com outras grandes figuras de sua época, como
Immanuel Kant e Gotthold Lessing. Este trabalho primeiro esclarece quais seriam os
atuais debates historiográficos sobre o Iluminismo, as influências religiosas no
período e por fim faz análise das ideias e obras de Moisés Mendelssohn.
Palavras-Chave: Iluminismo. Haskalá. Mendelssohn. Debate historiográfico
(Iluminismo). História das Ideias.

ABSTRACT

This paper deals, from the perspective of the Intellectual History and with the
methodological aid of the Conceptual History and a vast analysis of relevant
literature, of the various historiographical debates about the Enlightenment’s Century,
the Enlightenment itself, and its dialogues with Haskalah, the Jewish Enlightenment.
Starting from such historiographical implications, this paper objective is to bring to
light and understand how the works and ideas of Moses Mendelssohn, considered
“the Jewish Socrates”, articulate with the already widespread Enlightenment in
Europe and North America and opens its doors to modernism in German Jewish
society, as it seeks its emancipation and an end to religious persecution.
Mendelssohn, the herald of the Jewish Enlightenment, was an important Jewish
philosopher in the middle of the Prussian bourgeoisie, maintaining contact and
exchanging correspondence with other great figures of his time, such as Kant and
Lessing. This paper first clarifies what would be the current historiographical debates
about the Enlightenment, the religious influences in the period and finally analyzes
the ideas and works of Moses Mendelssohn.
Keywords: Enlightenment. Haskalah. Mendelssohn. Historiographical debates
(enlightenment). Intellectual History.

INTRODUÇÃO

Empresa difícil é a do historiador em sua tentativa de conceituar o fenômeno
Iluminista. Ou seriam: fenômenos Iluministas? Nosso problema já é posto logo de
cara. Avancemos, então: no que costumam pensar, dentro de um contexto informal e
sem rigores acadêmicos, ao falar-se da Era do Iluminismo? Incontestável, seria, a
afirmação de que tal reflexão e resolução distinguem-se a depender do alvo de tal
inquirição. Num aspecto geral, longe de uma avaliação rigorosa, o inquirido poderia,
rapidamente, visualizar em seu consciente imagens da queda da Bastilha, um marco
da Revolução Francesa de 1789, ou a Liberdade, com seus desnudos seios, a
tremular a tricolor bandeira revolucionária, numa quase fidedigna representação do
quadro de Eugène Delacroix (1798). Mais alguns segundos e, talvez, arriscaria
balbuciar nomes como: John Locke, Rousseau (1712) e Voltaire (1694).
Nenhuma dessas rápidas concepções mentais estariam erradas. Não
obstante, há de se reafirmar o caráter heterogêneo e diversificado que transcorreu o
Século das Luzes – ou Século da Filosofia, como preferia o coeditor da Encyclopédie
(1751), Jean le Rond d’Alembert (1717) 1 .
Há de se sair em defesa pela ignição primeva acerca do despertar de um
interesse sobre o caráter plural e multifacetado do Iluminismo – ou Iluminismos,
como bem afirma Gertrude Himmelfarb (1922) 2 . Mas por qual motivo tratarmos
justamente do Iluminismo Judaico?
Para além do interesse pelo Século das Luzes, seus filósofos e filosofias,
rupturas e continuidades, compunha, em nós, imenso entusiasmo pela História
Judaica. E não apenas uma História do Judaísmo, mas uma latente História Judaica,
viva, polêmica, com suas lutas e resistências pelos séculos da Europa Cristã e
Oriente Islâmico.  Dentro de uma perspectiva questionadora, este traz mais perguntas e
indagações que propriamente afirmações, e respostas às inquirições com mais
interrogações. Indubitável afirmar que na historiografia brasileira os estudos sobre

UM ILUMINISMO JUDAICO? A HASKALÁ E OS FENÔMENOS DO ESCLARECIMENTO NO DEBATE HISTORIOGRÁFICO E NAS IDEIAS DE MOISÉS MENDELSSOHN (1755-1786)

 RESUMO

Este trabalho desenvolve-se sob a óptica da História Intelectual e com o auxílio metodológico da História dos Conceitos e de vasta análise de literatura pertinente, nos vários debates historiográficos acerca do Século das Luzes, o Iluminismo, e seus diálogos com a Haskalá, o Iluminismo judaico. Partindo de tais implicações historiográficas, seu objetivo é pôr à luz e compreender como as obras e ideias de Moisés Mendelssohn (1729), considerado “o Sócrates judeu”, articulam-se com o Esclarecimento já difundido na Europa e América do Norte e abrem as portas do modernismo na sociedade judaica alemã, enquanto esta busca a sua emancipação e fim das perseguições religiosas. Mendelssohn, o arauto do Iluminismo judaico, foi um importante filósofo judeu em plena burguesia prussiana, mantendo contato e trocando correspondências com outras grandes figuras de sua época, como Immanuel Kant e Gotthold Lessing. Este trabalho primeiro esclarece quais seriam os atuais debates historiográficos sobre o Iluminismo, as influências religiosas no período e por fim faz análise das ideias e obras de Moisés Mendelssohn.

Palavras-Chave: Iluminismo. Haskalá. Mendelssohn. Debate historiográfico (Iluminismo). História das Ideias.

ABSTRACT

This paper deals, from the perspective of the Intellectual History and with the methodological aid of the Conceptual History and a vast analysis of relevant literature, of the various historiographical debates about the Enlightenment’s Century, the Enlightenment itself, and its dialogues with Haskalah, the Jewish Enlightenment. Starting from such historiographical implications, this paper objective is to bring to light and understand how the works and ideas of Moses Mendelssohn, considered “the Jewish Socrates”, articulate with the already widespread Enlightenment in Europe and North America and opens its doors to modernism in German Jewish society, as it seeks its emancipation and an end to religious persecution. Mendelssohn, the herald of the Jewish Enlightenment, was an important Jewish philosopher in the middle of the Prussian bourgeoisie, maintaining contact and exchanging correspondence with other great figures of his time, such as Kant and Lessing. This paper first clarifies what would be the current historiographical debates about the Enlightenment, the religious influences in the period and finally analyzes the ideas and works of Moses Mendelssohn.

 

Keywords: Enlightenment. Haskalah. Mendelssohn. Historiographical debates (enlightenment). Intellectual History.

INTRODUÇÃO

Empresa difícil é a do historiador em sua tentativa de conceituar o fenômeno Iluminista. Ou seriam: fenômenos Iluministas? Nosso problema já é posto logo de cara. Avancemos, então: no que costumam pensar, dentro de um contexto informal e sem rigores acadêmicos, ao falar-se da Era do Iluminismo? Incontestável, seria, a afirmação de que tal reflexão e resolução distinguem-se a depender do alvo de tal inquirição. Num aspecto geral, longe de uma avaliação rigorosa, o inquirido poderia, rapidamente, visualizar em seu consciente imagens da queda da Bastilha, um marco da Revolução Francesa de 1789, ou a Liberdade, com seus desnudos seios, a tremular a tricolor bandeira revolucionária, numa quase fidedigna representação do quadro de Eugène Delacroix (1798). Mais alguns segundos e, talvez, arriscaria balbuciar nomes como: John Locke, Rousseau (1712) e Voltaire (1694).

Nenhuma dessas rápidas concepções mentais estariam erradas. Não obstante, há de se reafirmar o caráter heterogêneo e diversificado que transcorreu o Século das Luzes  – ou Século da Filosofia, como preferia o coeditor da Encyclopédie (1751), Jean le Rond d’Alembert (1717)[1].

Há de se sair em defesa pela ignição primeva acerca do despertar de um interesse sobre o caráter plural e multifacetado do Iluminismo – ou Iluminismos, como bem afirma Gertrude Himmelfarb (1922)[2]. Mas por qual motivo tratarmos justamente do Iluminismo Judaico ?

Para além do interesse pelo Século das Luzes, seus filósofos e filosofias, rupturas e continuidades, compunha, em nós, imenso entusiasmo pela História Judaica. E não apenas uma História do Judaísmo, mas uma latente História Judaica, viva, polêmica, com suas lutas e resistências pelos séculos da Europa Cristã e Oriente Islâmico[3].

Dentro de uma perspectiva questionadora, este traz mais perguntas e indagações que propriamente afirmações, e respostas às inquirições com mais interrogações. Indubitável afirmar que na historiografia brasileira os estudos sobre Haskalá estão concentrados em nicho específico[4]. Quando encontrados, mais certo estarem disponíveis nos poucos periódicos que tratam da História Judaica que sobre o Aufklärung – Esclarecimento.

Dentro dos porquês de uma pesquisa sobre o Iluminismo judaico, a pouca luz e esclarecimento do tema em nossa historiografia nacional são os mais acentuados. A relevância do tema responde-se com as mesmas perguntas que formular-se-iam ao depararmo-nos com ele: o que foi o Iluminismo Judaico? Dentro dos fenômenos do Esclarecimento, como se enquadra – se é que se enquadra – este novo Weltanschauung dos esclarecidos filósofos judeus berlinenses do setecentos , os chamados maskilim[6]? É compatível a ideia de um fenômeno do Esclarecimento dentro de um seio religioso judaico, um fenômeno, até então, intrinsecamente cristão e ocidental?

Tais problemáticas  configurar-se-iam como esqueleto e corpo de nossa pesquisa, o aspecto geral de nossa justificativa, mas faltaria o sopro de vitalidade, o Emet[7] que traria vida a este Golem[8] inanimado: os aspectos gerais das ideias de Moisés Mendelssohn dentro do contexto de uma Europa ressignificada pelos philosophes no turbulento “Século das Luzes”.

Deparamo-nos, então, com a hipótese deste trabalho, a pedra angular da pesquisa e de nossas questões: a Haskalá, conhecida como Iluminismo Judaico, é um fenômeno legítimo dentro dos diversos fenômenos do Esclarecimento. A característica judaica da Haskalá não é, em absoluto, contraditória com o Século das Luzes, nem com sua ideia de “emancipação”. É justamente o caráter diverso e plurirreligioso[9] do Lumières (Luzes) que fecunda as ideias de um Esclarecimento judaico. Se os franceses tiveram seus philosophes, os judeus – da Europa Central e Oriental – tiveram seus maskilim. Se França e Prússia tiveram Voltaire e Immanuel Kant (1724), os ashkenazim[10] tiveram Moisés Mendelssohn e Naphtali Wessely (1725).

Desta forma, objetiva-se com este trabalho reafirmar o caráter plural, diverso e multinacional do Esclarecimento – tão bem definido por Gertrude Himmelfarb, Jonathan Israel e diversos outros historiadores[11] (HIMMELFARB, 2011, p. 24-26) e (ISRAEL, 2009, p. 34-41); conceituarmos o que foi a Haskalá e o Esclarecimento judaico; também analisaremos o papel e as ideias principais de Moisés Mendelssohn (1729) em sua defesa do judaísmo, da emancipação dos judeus e sua luta contra superstições e misticismos dentro de sua religião, em favor da razão na religião. Também nos debruçaremos numa breve análise dos conceitos de liberdade e Esclarecimento para Mendelssohn e Kant.

Pretende-se verificar e demonstrar a hipótese e as questões deste por meio de metodologia da História Intelectual, onde analisar-se-ão fontes primárias e secundárias. Configuram-se como fontes primárias analisadas, neste trabalho, algumas das principais obras reeditadas de Moisés Mendelssohn e algumas de suas correspondências: Phädon (1767); Jerusalem (1783); Morning Hours (1786); To Lessing’s Friends (1786); Philosophical Conversations (1761); From Jacobi’s On the Doctrine of Spinoza (1785). Alguns dos escritos de Mendelssohn podem ser encontrados na obra editada de Michah Gottlieb: Moses Mendelssohn Writings on Judaism, Christianity and the Bible (2011). Analisaremos, também, literaturas pertinentes dos autores que pensam a história do Iluminismo, história do Iluminismo Judaico e os pensamentos e filosofia de Moisés Mendelssohn, bem como outros filósofos que venham a dialogar com o pensador judeu do Esclarecimento. Tais obras são: The Jewish Enlightenment (2005), Moses Mendelssohn (2010), Haskalah and History, The Jewish Eighteenth Century (obras de Shmuel Feiner); The Transformation of German Jewry (1990), Moses Mendelssohn and the Religious Enlightenment (1996) (David Sorkin). O Iluminismo e a Questão Judaica, escrito por Hannah Arendt (2016), também tem papel fundamental em nossa análise.

Em nossa justificativa pela abordagem do campo da História Intelectual, citamos diretamente Francisco Falcon, onde o próprio diz, em alusão às ideias de Ernst Cassirer: “[…] são as relações entre as ideias que permitem ao historiador conhecer a ‘fenomenologia do espírito de uma época’” (FALCON In: FLAMARION; VAINFAS, 1997, p. 161). Como já afirmamos acima, não se pretende em nosso a defesa da ideia de “Iluminismo único”, mas buscar em seu caráter diverso e plural o sentido deste fenômeno também conceitual no imaginário e no social da burguesia judaica em Berlim dos setecentos. Neste sentido, a busca por uma metodologia de história comparada haveria de fragilizar este pelo tempo e espaço que cabem em nossa pesquisa. Ainda assim, um dos maiores desafios de um historiador das ideias, com a proposta que temos, seria juntar as partes – os fenômenos em análise – e afirmar: Aufklärung! Hercúleo desafio, mas não impossível.

Diferentes escolas que trabalham com a intelectualidade nos auxiliam neste esforço metodológico: tanto as concepções de Bildung (construção) e consciência de Arendt quanto a Begriffsgeschichte (História dos Conceitos) de Reinhart Koselleck (1923), possibilitando a compreensão do Esclarecimento como fenômeno dinâmico e histórico. Tanto Arendt (2000, p. 39) quanto Koselleck (2006, p. 305-327) exploraram a “consciência histórica” – ou consciência da historicidade – quase como uma condição existencial produzida por nossas projeções imaginárias, em nossa análise de como o presente se relaciona com o passado e o futuro[12]. À parte dos esforços subatômicos da metodologia linguística de Koselleck, é de nossa fundamental importância não transplantar conceitos de forma ingênua e arbitrária – comprometendo, assim, toda a análise –, mas de utilizar como suporte metodológico sua abordagem do campo dos conceitos[13] onde o próprio Koselleck afirma:

[…] enquanto os conceitos têm capacidades políticas e sociais, sua função e performance semânticas não são unicamente derivadas das circunstâncias sociais e políticas às quais eles se referem. Um conceito não é simplesmente indicativo das relações que ele cobre; é também um fator dentro delas. Cada conceito estabelece um horizonte particular para a experiência potencial e a teoria concebível e, nesse sentido, estabelece um limite (KOSELLECK apud JASMIN, 2006, p. 33).

 

Diante de tais fatos acima explanados, tempo e espaço são delimitados e problematizados neste trabalho. Não nos cabe a totalidade da intelectualidade do Esclarecimento e todo seu horizonte de eventos, tão pouco de toda Haskalá – que frutifica por toda Osteuropa (Leste Europeu) até os fins do século XIX. Destarte, a primeira parte deste trabalho deve ser entendida como análise e discussão de alguns dos fenômenos do Iluminismo e o que entende-se por Haskalá  (Iluminismo Judaico). Em nossa segunda parte, é enfim tomado o recorte da análise que se propõe: as ideias de Moisés Mendelssohn, um filósofo judeu na Prússia de Frederico II da Prússia (1712), um “déspota esclarecido”.

Na primeira parte, a primeira cautela metodológica deve ser a de tomar como ponto de partida o que nós, neste trabalho, entendemos por Iluminismo, a Era do Esclarecimento, alguns de seus fenômenos e características no campo filosófico e religioso. Para tal empreitada, analisar-se-ão algumas das ideias nas obras de Peter Gay (1923), Ernst Cassirer (1874), Jonathan Israel (1946), Gertrude Himmelfarb (1922), David Sorkin (1949) e Shmuel Feiner. Dentro dessa primeira parte, faz-se necessária uma sucinta explicação do que é a Haskalá dentro dos fenômenos dos Iluminismos na Europa e América e se é compatível a ideia de um iluminismo “religioso” com os demais fenômenos do Esclarecimento.

Em nossa segunda parte do trabalho, trataremos da vida, as obras e ideias de Moisés Mendelssohn, o “Sócrates judeu” – como ficou conhecido (FEINER, 2000, p. 336)[14]. Ao lado de Espinosa, Mendelssohn é uma das principais vozes da modernidade judaica e europeia. Além disto, Moisés Mendelssohn é o arauto do Esclarecimento Judaico, a Haskalá[15]. Destacar o papel de Mendelssohn é conditio sine qua non para nós, não pela falsa ideia de ter sido a única voz da Haskalá, ou por não ter recebido críticas dentro e fora do seio religioso e laico judaico – Hannah Arendt (2016, p. 130) criticará algumas de suas ideias “ingênuas” e assimilacionistas, pouco mais de 145 anos após a morte de Mendelssohn[16]. Mas pela importância e originalidade do autor judeu em buscar na razão e nos filósofos esclarecidos a defesa do judaísmo como “religião da legislação revelada”, como o próprio filósofo afirma:

Volto à minha observação anterior. O judaísmo não se vangloria de nenhuma revelação exclusiva de verdades eternas que são indispensáveis ​​à salvação, de nenhuma religião revelada no sentido em que esse termo é geralmente entendido. Religião revelada é uma coisa, legislação revelada, outra (MENDELSSOHN, 1983, p. 97, tradução nossa).

DEBATES HISTORIOGRÁFICOS

O dinâmico Século das Luzes inaugurou um novo Régime d’historicité (Regime de historicidade), como bem afirma François Hartog (1946). Antes dele, a hipótese de Reinhart Koselleck apontava que uma mudança radical na consciência histórica (Geschichtsbewusstsein) ocorreu na virada do século XVIII[17].

Em sua hipótese, Koselleck percebe o Esclarecimento tomado e nutrido pela crítica de uma hipócrita burguesia “esclarecida” que via na historicidade de seu fomento da divisão dualista do mundo a justificativa e consequência da própria crítica política (2006, p. 75-110). “Hipócrita burguesia esclarecida” pois a crítica política dos “esclarecidos” visava a tomada indireta do poder, tendo como pressuposto uma posição “apolítica” contra o Estado Absolutista. Tal crítica radical[18] dos agentes do Esclarecimento é fomentada e aprisionada pela visão de um dualismo moral que se nutre dentro do Estado. Mesmo que de forma indireta, a crítica esclarecida legitima a crise e a revolução através da moralização da política, que verá o soberano absolutista como imoral. Nesta síntese, o burguês do Lumières vê, então, a justificativa para a ação violenta, a rebelião. Assim sintetiza Koselleck:

O Iluminismo, forçado à camuflagem política, sucumbiu à sua própria mistificação. A nova elite vivia na evidência de uma legalidade moral, cujo sentido residia em apresentar uma antítese à política absolutista. A separação da moral e da política conduziu a crítica soberana e legitimou uma tomada indireta do poder, cujo significado político efetivo permaneceu encoberto para os atores, precisamente em virtude do seu auto-entendimento dualista. Obscurecer a compreensão desta dissimulação como dissimulação era a função histórica da filosofia da história. Ela é a hipocrisia da hipocrisia em que a crítica se havia degenerado. […] O anonimato político do Iluminismo cumpre-se na soberania da utopia. […] Pois a relação indireta com a política, a utopia – que, após a oposição secreta da sociedade ao soberano absoluto, veio dialeticamente à luz -, transformou-se nas mãos do homem dos tempos modernos em um capital sem provisão política (KOSELLECK, 2016, p. 161).

Necessário dizer que Moisés Mendelssohn, testemunha e ator do fervor político e intelectual da segunda metade do século XVIII, já alertava sobre os perigos de um “abuso do Iluminismo”, ou sua radicalização, ao alertar que tal diligência “enfraquece o senso moral e gera teimosia, egoísmo, heresia e anarquia” (apud FEINER, 2010, p. 195, tradução nossa ).

Ainda hemos de analisar de forma apropriada o pensamento de Mendelssohn, mas no que concerne à abordagem da crise europeia do setecentos – tese de Koselleck –, o professor Shmuel Feiner nos dá um prelúdio das ideias do pensador judeu em sua crítica ao “filosofismo radical” de alguns dos philosophes.

O Iluminismo fracassaria, por um lado, se fosse percebido pelos líderes do Estado como uma ameaça ao regime, que assim negaria o Iluminismo aos seus cidadãos. Por outro lado, o Iluminismo fracassaria se seus representantes radicais o usassem mal com o objetivo de destruir a religião e a moralidade. Em ambas as condições de confronto, Mendelssohn propôs que o Iluminismo deveria ser comedido porque os danos em sua divulgação e promoção seriam maiores do que os benefícios (2010, p. 194, tradução nossa).

Diferente de Koselleck, numa análise mais pomposa e otimista tanto dos philosophes quanto do próprio Esclarecimento, Tzvetan Todorov inicia sua obra O espírito das Luzes (L’Esprit des Lumières) afirmando que é no período do Esclarecimento que “[…] os seres humanos decidem tomar nas mãos seu destino e colocar o bem-estar da humanidade como objetivo principal de seus atos” (2008, p. 9). Ainda que de um prisma mais filosófico que de rigor historiográfico, Todorov, sem hesitação, levanta alguns pontos caros e polêmicos para os historiadores do Lumières. Recortamos apenas dois de seus vários comentários para termos um início:

O espírito das Luzes, tal como se pode descrevê-lo hoje, levanta um problema curioso: encontram-se nele os ingredientes de épocas variadas, em todas as grandes civilizações do mundo; […] Ainda que não se possa observá-lo em todo lugar e sempre, o pensamento das Luzes é universal: eis o que somos obrigados a constatar antes de tudo. Não se trata apenas de práticas que o pressupõem, mas também de uma tomada de consciência teórica. Encontram-se traços desde o século III a.C, na Índia, nos preceitos dirigidos aos imperadores ou nos editos que estes difundem. Encontram-se ainda nos “pensadores livres” do Islã dos séculos VIII a X; ou durante a renovação do confucionismo sob os Song, na China, nos séculos XI e XII; ou nos movimentos de oposição à escravidão, na África negra, no século XVII e no início do XVIII (2008, p. 133-134).

E por último:

As Luzes pertencem ao passado, já que existiu um século das Luzes; […] Continuamos então a evocá-las para, segundo o caso e as disposições do autor em questão, acusá-las de ser a origem de nossos males antigos e atuais[…] Propomos então “reacender as Luzes”, ou ainda fazê-las brilhar até os lugares remotos e as culturas [sic] que ainda não as conhecem (ibidem, p. 149).

Todorov parece partir de uma tradição histórico-filosófica que descreve o Iluminismo quase que de forma linear, una – mesmo com algumas divergências entre seus pensadores – ainda que o próprio filósofo búlgaro critique a ideia de linearidade dentro de alguns dos intérpretes do período (ibidem, p. 27).

Sobre esta polêmica, ainda que a defesa de Dan Edelstein (1955) esteja correta, onde o Esclarecimento não significaria uma soma de diversas partes, mas a matriz onde ideias, conceitos e ações são ressignificadas (EDELSTEIN, 2010, p. 13), não há de se anular, em totalidade, a hipótese de John Pocock (1924), que fala em pluralidade de “Iluminismos”[19]. Pocock retoma uma crítica à historiografia de Peter Gay que afirmava: “Houve apenas um único Iluminismo” (apud HIMMELFARB, 2011, p. 24); (EDELSTEIN, 2010, p. 12). Neste contexto, vemos como benéfica a manutenção e defesa do termo “Iluminismo” e “Esclarecimento”, no singular, não por depreciarmos da ideia de uma pluralidade de “iluminismos”, mas por vermos os fenômenos iluministas seguirem uma coerência nacional, intelectual e cultural de sua época; coerência posta, inclusive, em discordâncias de variados temas dos “esclarecidos”.

Ainda que seja empresa difícil achar uma “coesão” nos variados fenômenos do Esclarecimento, tal empreitada já foi realizada dentro da historiografia, sem dobrar-se à ideia de “um único Iluminismo”. Mesmo que recebidas com uma variedade de críticas contemporâneas, as obras de Jonathan Israel e John Robertson – ainda que não dialoguem em concordância explícita – Iluminismo Radical: a filosofia e a construção da modernidade 1650-1750 e The Case for Enlightenment: Scotland and Naples 1680-1760 , respectivamente, conseguem construir um bom arsenal teórico de como o Iluminismo, em sua vasta gama de pluralidades, pode ser entendido como um movimento Europeu urbano e de construção (Bildung), visando conceitos semelhantes como emancipação dos “cidadãos do mundo” (Weltbürger). Um clássico neste sentido é A Filosofia do Iluminismo, obra do neokantiano Ernst Cassirer, que já em seu prefácio afirma:

A totalidade desse movimento incansavelmente flutuante, em permanente fluxo, não poderia reduzir se a uma soma de opiniões individuais. A “filosofia” do Iluminismo propriamente dita é algo muito diverso do conjunto do que foi pensado e ensinado pelos grandes mestres do período, por Voltaire e Montesquieu, Hume ou Condillac, D’Alembert ou Diderot, Wolff ou Lambert. […] Por isso tínhamos que decidir, naturalmente, deixar em segundo plano uma profusão de detalhes, mas cuidando de não omitir nenhuma das forças essenciais que modelaram o rosto do Iluminismo e determinaram sua visão da natureza, da história, da sociedade e da arte. Graças a esse método, é possível descobrir que a filosofia de século XVIII, que ainda há quem se obstine em apresentar como uma mistura eclética de temas intelectuais díspares, é dominada, na verdade, por um reduzido número de grandes ideias fundamentais que nos são propostas numa síntese coerente e segundo uma rigorosa articulação (1994, p. 12-13).

Ainda que não defenda a ideia de um “único Iluminismo” – o próprio Cassirer vai definir diferenças substanciais entre a filosofia dos philosophes franceses da filosofia esclarecida (Aufgeklärt) dos alemães[20] –, Cassirer busca, em sua hipótese, desnudar o “fio condutor” das variadas ramificações das ideias esclarecidas dentro de uma “filosofia do Iluminismo”. Neste sentido, ainda que alegue diversas  partes de um fenômeno, Cassirer tenta buscar uma ideia central de razão, dentro do que ele relembra ser o “Século da Filosofia”, como bem afirmara D’Alembert. A compreensão da totalidade desta nova filosofia concebida seria o próprio gênero moderno de concepção da natureza, ciência e conhecimento, caracterizadas pela então recente relação que se estabeleceu “[…] entre sensibilidade e entendimento, entre experiência e pensamento, entre mundus sensibilis e mundus intelligibilis” (CASSIRER, 1994, p. 67).

É no movimento de emancipação do conhecimento físico e da ideia de natureza newtoniana que Cassirer vai tecer um dos fios condutores interligando filósofos diferentes no La pensée des Lumières (O pensamento Esclarecido). Ernst Cassirer nos lembra que o pensamento esclarecido é embebido pelas ideias de filósofos que não necessariamente são os philosophes franceses, mas, também, filósofos holandeses como Espinosa (que também é judeu), alemães como Christian Wolff e Leibniz, e, principalmente, os britânicos Isaac Newton e David Hume. Cassirer nos lembra que é neste novo fenômeno esclarecido dentro das ciências naturais, tão influenciado pelo pensamento de Newton, que D’Alembert escreve Elementos de filosofia. É neste mesmo fenômeno que Voltaire escreve Éléments de la philosophie de Newton; Éléments de physiologie escrito por Diderot e Fondements de la chimie de Rousseau (ibidem, p. 65-80).

Aqui fazemos uma breve pausa: Koselleck afirma que o Iluminismo “floresceu justamente na França”, o que não é um fato fácil de ser verificado. Há, porém, um problema nesta defesa: se, para Koselleck, “[…] o ponto de partida do Iluminismo foi o sistema absolutista […]” (1999, p. 19) e se a França foi “[…] o primeiro país que superou de maneira resoluta as guerras internas religiosas mediante a adoção do sistema absolutista” (ibidem, p. 19-20), há um vício lógico na defesa de Koselleck ao afirmar que o Esclarecimento “floresceu” na França. Se é verificável a tese de Werner Näff, de que é na França que temos o primeiro modelo de arrefecimento das guerras religiosas pela adoção do Estado Absolutista, Koselleck não poderia argumentar que o Iluminismo “floresceu” em outro lugar que não na França, ou cairia em armadilha contraditória.

Destarte, ainda que correto analisar fenômenos e interpretações diferentes dentro do Esclarecimento, ao que parece, não precisamos seguir John Pocock ao supor que diferentes contextos formaram Iluminismos plurais. Em vez disso, podemos analisar com maior acuidade, com Ernst Cassirer e John Robertson, um Iluminismo no qual impulsos nacionais e cosmopolitas foram combinados: o contexto nacional, inspirando os expoentes da economia política, auxiliando na inquirição e publicação de soluções adaptadas às circunstâncias particulares de seus países; o cosmopolita, encorajando-os a pensar comparativamente e a estruturar seus argumentos para o bem geral da humanidade. Dentro desses fenômenos, há, também, o impulso religioso, do qual falaremos a seguir.

UM ESCLARECIMENTO RELIGIOSO: A FALSA IDEIA DO ILUMINISMO RADICALMENTE ATEU

Se admitir-se-á  um fenômeno como o Iluminismo judaico, deve-se admitir, e analisar – por consequência –, ideias religiosas dentro do pensamento Esclarecido (La pensée des Lumières). Ou deveríamos deduzir que o movimento que se segue às ideias de Mendelssohn, a Haskalá, fora único e anômalo – em seu conceito religioso – dentro da composição de uma época anticlerical, o que seria repreensível. Reduzir-se-á, tampouco, o Esclarecimento na cruzada do enciclopedismo francês – tão bem demonstrada nas ideias de d’Holbach – contra a religião revelada? O Iluminismo não fora um movimento fundamentalmente articulado por radicais ateus ou outros atores irreligiosos. Tal análise iria na contramão do que se pensa atualmente sobre Iluminismo e seus fenômenos (ROBERTSON, 2007, 377-74).

Ao contrário de uma cruzada ateia, o que caracterizou o Iluminismo já a partir da primeira metade do século XVIII foi um novo foco na melhoria deste mundo, observações e análises do que seria a Natureza Humana, a relação do Homem com Deus, novas interpretações exegéticas e hermenêuticas, plena liberdade de pensamento, de expressão, dentre outros (ROBERTSON, 2007 p. 8). É o caso de se analisar os pensamentos de Rousseau, Voltaire, Hume, Priestley e, essencialmente, neste, Moisés Mendelssohn. Tais homens letrados não reconheciam na razão filosófica a única e suficiente substância para o estabelecimento dos verdadeiros valores morais, mas pela tradição, prática e religião (ISRAEL, 2013, p. 150).

Encorajados pela identificação de tais antecedentes, os historiadores e pesquisadores de outras áreas têm se inclinado ainda mais a analisar o Iluminismo ao longo de linhas confessionais, em fenômenos plurais como Iluminismo Protestante e Católico (ROBERTSON, 2007, p. 15). Acerca de um Iluminismo confessional, Matytsin e Edelstein afirmam:

[…] hoje, seria ingênuo argumentar que os philosophes e seus aliados romperam claramente com o passado. Mesmo seus argumentos mais subversivos sobre a religião organizada devem muito à cultura católica ortodoxa da qual emergiram e na qual Voltaire, Diderot e outros philosophes amadureceram […] mesmo os argumentos contra a existência de Deus e contra a imortalidade da alma humana podem ser rastreados até os debates da cultura erudita católica que “geraram sua própria antítese filosófica (2018, p. 02, grifo nosso).

Há de se afirmar, atualmente, que não é difícil empresa estabelecermos uma conexão clara entre a cultura erudita do Iluminismo e a religião nos países protestantes, particularmente em Escócia, Suíça, Prússia e outros estados alemães onde o Iluminismo foi institucionalizado nas universidades[21]. Dada a oposição vociferante dos philosophes à Igreja Católica, no entanto, qualquer compatibilidade entre o catolicismo e o Iluminismo parecia problemática. A estreita relação entre fé e razão existia em várias denominações, como demonstrou The Religious Enlightenment (2008), de David Sorkin. Sorkin concentra-se nos detalhes individuais das inúmeras maneiras pelas quais a razão e a religião interagiram em diversos contextos racionais e confessionais. Sua análise, não apenas de intelectuais protestantes e católicos, mas também de pensadores judeus, mostra que o “Iluminismo religioso” não se limitou a nenhuma denominação específica em um país ou grupo de países específicos, mas cruzou fronteiras religiosas e nacionais. E foi “o primeiro desenvolvimento comum às religiões ocidentais e religiões da Europa Central”. Continuando a tendência revisionista, Sorkin argumenta que “o Iluminismo não era apenas compatível com a crença religiosa, mas também propício a ela”. É nesse sentido, de um fenômeno confessional do Esclarecimento, que nosso se alinha e vem a analisar e debater a Haskalá e os pensamentos de Moisés Mendelssohn.

2.1 TRAÇANDO UMA DEFINIÇÃO HISTÓRICA DA HASKALÁ

 A Haskalá foi claramente um fenômeno urbano que evoluiu em cidades como Berlim, Königsberg e Viena, onde famílias judias de classe alta e média sofreram aculturação europeia nas últimas duas ou três gerações nas duas últimas décadas do século XVIII e Königsberg refletiu um processo especialmente intenso (FEINER 2001, p. 189).

A aculturação das famílias de Berlim que acumularam grande riqueza na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) foi expressada em uma adaptação da aparência externa, a língua alemã, certos padrões de lazer e reuniões sociais. Segundo Jonathan Israel (2009, p. 32-41), uma verdadeira crise apareceu já no fim do século XVII: a radicalização religiosa em direção ao deísmo, colapso da unidade familiar, uma porcentagem relativamente alta de divórcio, nascimentos extraconjugais e conversão ao cristianismo. do final do século XVII – muito antes do aparecimento dos primeiros maskilim – e que atingiu seu apogeu nos salões de mulheres judias em Berlim na virada do século XVIII. Meninas judias estudavam música, dança e línguas europeias, especialmente alemão e francês, com professores particulares, e se vestiam nos melhores estilos rococó e barroco da aristocracia. Era natural para eles lerem romances franceses e frequentarem o teatro (FEINER, 2001, p. 195).

Os maskilim, porém, consideravam esses processos superficiais ou radicais e cada vez mais além das linhas legítimas. É verdade que os próprios maskilim sofreram mudanças moderadas no estilo de vida, como pode ser visto nos retratos que foram preservados. No entanto, desde cedo eles criticaram fortemente a aculturação que não foi engendrada pelo pensamento à época. Eles rejeitaram as mudanças extremas na vida judaica que cada vez mais levavam ao envolvimento na sociedade cristã, à tentação de se converter, casamentos mistos, apatia religiosa e ateísmo, tudo o que eles consideravam uma ruptura total com todas as normas morais. Os primeiros maskilim pregaram contra os caçadores de prazeres, os bebedores de vinho e os foliões que negligenciavam suas almas (FEINER, 2001, p. 197).

No início da era, os múltiplos estados alemães eram sociedades corporativas baseadas em economias agrárias, guildas e mercantilistas; ao final dela, o novo estado alemão unificado era uma sociedade amplamente burguesa no meio de uma industrialização, urbanização e comercialização em expansão sem precedentes. Esta foi uma transformação de estados e sociedades estatais para um estado-nação e uma sociedade civil (SORKIN, 1990, p. 13-17).

Uma característica distintiva dessa transformação – o que a distinguiu da França e da Inglaterra, por exemplo – foi que ela ocorreu sob os auspícios de uma aliança entre a monarquia e a aristocracia. A partir do final da Guerra dos Trinta Anos (1648) a monarquia e a aristocracia tentaram alterar as relações políticas para aumentar seu poder através de uma política de raison d’etat  (Ibidem, p. 172-187). No entanto, uma reforma das relações políticas não poderia ser efetuada sem uma reforma da estrutura social. A tentativa da monarquia e da aristocracia de modernizar a política não poderia ser alcançada sem uma correspondente modernização da sociedade. Suas políticas, portanto, enfraqueceram antigos grupos sociais e criaram novos. Esses novos grupos sociais, por sua vez, queriam uma parcela do poder político. A nova ordem que a aliança da monarquia e da aristocracia inesperadamente deu origem ameaçava a reivindicação de poder dessa aliança.

Em outras palavras, em nome do poder político, um Estado modernizador iniciou mudanças sociais; mas essas mudanças sociais geraram consequências políticas imprevistas que o Estado então tentou impedir para preservar seu poder. Em consequência de sua aliança, então, a monarquia e a aristocracia se viram na posição paradoxal de fazer o papel de parteira de uma nova ordem social que então se recusaram a deixar nascer (Ibidem p. 183-85). As elites políticas da velha ordem social viram-se presidindo uma transformação que encaravam com manifesta ambivalência e mal disfarçado desdém. Essa situação paradoxal constituiu a característica básica da transformação da Alemanha durante a era.

Na França do século XVIII, onde a pressão política e a tensão social trouxeram a “questão judaica” à atenção pública em várias ocasiões, essa ambivalência cristalizou-se em duas tradições (ISRAEL, 2013, p. 55-62) Montesquieu continuou a tradição da razão de estado em relação aos judeus, ligando-o ao relativismo cultural. Os judeus podiam ter seus méritos e deficiências relativos em comparação com os gregos, mas ainda assim merecem tolerância religiosa. Para Voltaire, Diderot e D’Holbach, em contraste, os judeus eram os exemplos do clericalismo medieval e da superstição religiosa, uma afirmação baseada na identificação do Antigo Testamento como fonte do cristianismo. Voltaire, em particular, reviveu a imagem dos judeus na literatura clássica, afirmando sua corrupção inata e irremediável (ISRAEL, 2013, p. 60-64).

Na Alemanha, a crítica da teologia do Aufklärung seguiu os deístas ingleses e Voltaire, vislumbrando os elementos indesejáveis ​​do cristianismo contemporâneo como uma herança do judaísmo do Antigo Testamento. A Aufklärung, portanto, advogava a eliminação desses vestígios de elementos judaicos para acelerar a transformação do cristianismo em uma religião pura de ética (FEINER, 2010, p. 86-98). Kant foi além da Aufklärung nesse aspecto como em outros. Sua concepção baseava-se na oposição do espírito filosófico à religião positiva. Traçando uma dicotomia radical entre religião autônoma e direito heterônomo, Kant negou ao judaísmo o status de religião, vendo-o, em vez disso, como uma constituição política (SORKIN, 1996, p. 227). Por causa de sua confiança na lei e ritual, revelação e crença messiânica, Kant viu o judaísmo como o arquétipo de uma religião oposta à razão, e assim designou o cristianismo uma religião totalmente “ocidental”, negando suas origens “orientais”, judaicas, destarte, a tradição da raison d’etat na Prússia defendia a tolerância dos judeus por sua utilidade econômica sem, no entanto, descartar uma imagem de sua degradação moral (Ibidem, p. 227-228).

A emancipação dos judeus pertencia à transformação dos estados e sociedades alemãs. Esse processo não começou no final do século XVIII, mas teve antecedentes em desenvolvimentos após o fim da Guerra dos Trinta Anos (1648). O crescimento de estados absolutistas, baseados no centralismo administrativo, mercantilismo e, eventualmente, utilizando a Aufklärung como ideologia legitimadora, teve um impacto lento, mas cada vez mais significativo, nas comunidades judaicas da Alemanha. As comunidades anteriormente “autônomas” declinaram gradualmente à medida que os judeus se tornaram geograficamente dispersos e socialmente diferenciados, enquanto os estados usurparam as funções jurídicas e cívicas das instituições comunitárias. Enquanto a política do absolutismo estatal, em parte, inadvertidamente preparou o caminho para a emancipação ao integrar lentamente os judeus no aparato administrativo do Estado, ao transformar a comunidade autônoma ela também coincidiu com fatores judaicos internos que aceleraram seu progresso.

Em outras palavras, enquanto a maior transformação da sociedade alemã exigia mudanças correspondentes na sociedade judaica, esta não ocorreu meramente por causa de fatores externos, de forma unilateral. Havia fatores judaicos internos em ação que influenciaram a maneira pela qual o processo maior atingiu a comunidade judaica e, por sua vez, deu à transformação sua forma particular para o grupo minoritário. (FEINER, 2010, p. 124-127) Enquanto os judeus chegaram ao território alemão pela primeira vez no trem das legiões romanas no século IV, comunidades substanciais apoiadas pelo comércio internacional concentraram-se primeiramente ao longo do Reno e em centros comerciais (Colônia, Mainz, Worms) nos séculos XI e XII.

Para os judeus do setecentos, a defesa da Haskalá envolvia uma crítica das instituições, pensamento e comportamento, passado e presente, que pretendia trazer uma regeneração e transformação fundamental e que incluía pensamento independente e autônomo, humanismo e tolerância, uma mudança de valores para novos aspectos sociais, econômicos, e ideais culturais, e a normalização da existência judaica (FEINER, 2004, p. 48-49). No entanto, a Haskalá estabeleceu limites a essas aspirações de renovação para evitar a aniquilação da cultura judaica. Como os maskilim estavam intimamente envolvidos na etnia, religião e cultura judaicas, eles tinham plena consciência da influência destrutiva de um modernismo superficial e externo. Eles muitas vezes alteravam sua postura de uma luta direta contra o “velho” para a conservação e proteção do “velho” contra o “novo” (SORKIN, 1990, p. 111-117).

No entanto, a Haskalá construiu seu apoio à renovação judaica na tradição judaica, especialmente na língua hebraica, na Bíblia e na história nacional. Em comparação com outras opções de modernização, a Haskalá parece relativamente conservadora e moderada (ISRAEL, 2011, p. 28-46). Embora seus programas apontassem para uma reforma abrangente da vida da comunidade judaica, na prática os maskilim atuavam principalmente nas áreas de belles-lettres, redação jornalística e educação e só ocasionalmente assumiam o novo papel político de ligação entre judeus e governo (FEINER, 2004, p. 53-54). A Haskalá desempenhou um papel crucial, mas não exclusivo, no processo de secularização judaica, e foi fundamental para o desenvolvimento da cultura, mentalidade e estado de espírito do judeu moderno (SORKIN, 1990, p. 177)

A VIDA DE MOISÉS MENDELSSOHN, SUAS OBRAS E IDEIAS NO PERÍODO DAS LUZES

 No frio Outono de 1784, na Prússia, a pergunta “Que é o Esclarecimento?” era respondida no periódico mensal Berlinische Monatsschrift[22] por um famoso filósofo alemão [23]. Moisés Mendelssohn, o filósofo que nos referimos, era um judeu ingresso na Sociedade de Leitura (Lesegesellschaft) berlinense. Alguns meses depois de Mendelssohn, a mesma pergunta seria respondida no periódico por um também conhecido filósofo alemão: Immanuel Kant (FEINER, 2001, p. 189).

Moisés Mendelssohn está entre aquelas figuras raras que são uma lenda em sua própria vida e um símbolo depois disso. No entanto, um status tão raro tem responsabilidades distintas. Dois séculos implacavelmente agitados da História moldaram a miríade de versões da lenda e do símbolo, bem como os diversos usos feitos deles. Esses mais de dois séculos dominam nosso campo de visão e exigem nossa compreensão do pensamento de Mendelssohn. A lenda e o símbolo apresentam um Mendelssohn com duas faces: uma é o homem do Aufklärung alemão, imortalizado na denominação “o Sócrates judeu”, após a publicação de seus diálogos socráticos, “o Fédon”, em 1767. O outro é o singelo judeu, Moisés Dessau – que é como ele assinou muitos de suas cartas e obras em hebraico –, consagrado na frase “de Moisés até Moisés não houve ninguém como Moisés”, o que fez dele o pensador judeu dos tempos modernos, o legítimo sucessor do Moisés da antiguidade e o medieval Moisés Maimônides (FEINER, 2010, p. 25-33).

Nas inúmeras descrições e análises desses dois rostos desde a morte de Mendelssohn, a questão incontornável tem sido a relação entre eles. As respostas a esta pergunta constituem um verdadeiro índice do pensamento judaico moderno, uma vez que tal resposta tem sido parte integrante de praticamente todas as filosofias e ideologias judaicas modernas. Em sua época, o único eixo era que os “lados” de Mendelssohn eram inteiros e coesos entre si: ele era o judeu moderno exemplar em sua capacidade de harmonizar a cultura europeia com a crença e as observâncias judaicas (FEINER, 2004, p. 129-135). Isaac Euchel assumiu esta posição em seu estudo de Mendelssohn publicado em 1788. Euchel chamou Mendelssohn de “singular em sua geração, único em sua nação” e fez dele um modelo para todos os judeus: “Sua vida deve ser nosso padrão, seus ensinamentos nossa luz” (FEINER, 2010, p. 185).

Tanto Shmuel Feiner (2004, p. 127-135) quanto David Sorkin (1990, p. 59-60), apontam como Mendelssohn foi visto como criador de uma simbiose judaico-alemã, o homem que “desejava promover conjuntamente o judaísmo e a educação alemã (deutsche Bildung)”, que como “judeu religioso sincero e um escritor alemão” era “um nobre modelo para a posteridade” (SORKIN, 1990, p. 60).

O outro eixo, apontado pelos historiadores, vê uma face de Mendelssohn como inadequada e em desarmonia, tornando-o o falso profeta da assimilação e da desnacionalização. De acordo com Sorkin (Ibidem, p. 61), o publicitário judeu do final do século XIX, Peretz Smolenskin (1842), aponta isso de forma clara: “Moisés Mendelssohn manteve a visão do amor por toda a humanidade, e sua família e amigos o seguiram. Mas para onde isso levou? Quase todos eles se converteram”. Em um espírito crítico, o filósofo do século XX Franz Rosenzweig (1886) escreveu: “De Mendelssohn em diante[…] o judaísmo de cada indivíduo se contorceu na ponta de uma agulha” (Ibidem.)

Quer se trate Mendelssohn como um herói, um vilão ou algo intermediário, a relação entre o filósofo alemão e o pensador judeu permanece. Até mesmo o biógrafo de Mendelssohn, Allan Arkush (1951), transmitiu uma inconfundível ambivalência ao tentar compreender essa tensão. Arkush é claro ao afirmar Mendelssohn como figura importante para os judeus alemães, em virtude de sua simpatia pela língua alemã e participação na cultura alemã, sua lealdade intransigente como judeu, sua formulação de uma filosofia moderna do judaísmo e sua defesa dos direitos civis judaicos (ARKUSH, 1994, p. 07-09). No entanto, Arkush não poderia fazer essa afirmação de forma inequívoca. “De muitas maneiras, Mendelssohn foi o primeiro judeu alemão moderno, o protótipo do que o mundo veio a reconhecer como o caráter específico, para o bem ou para o mal, do judaísmo alemão” (ibid., p. 13). Essa análise do biógrafo nos lembra como mais de dois séculos de história assombram qualquer investigação sobre Mendelssohn. Essa dificuldade se aplica quer construamos o símbolo de Mendelssohn de forma restrita, entendendo-o apenas em relação ao judaísmo alemão, como Arkush e outros fizeram, o construamos amplamente, vendo Mendelssohn como o judeu moderno.

Mendelssohn nasceu em 1729 em uma família pobre, embora instruída, em Dessau. Promissor estudioso do Talmud  e dos textos rabínicos, foi para Berlim em 1743 para continuar seus estudos na yeshivá[24]. Mendelssohn compartilhou a situação de outros estudantes de yeshivá, ganhando seu pão diário através de uma combinação de refeições gratuitas e s acadêmicos ímpares. Sua situação melhorou em 1750, quando foi nomeado tutor da rica família Bernhard e mais ainda em 1754, quando se tornou balconista na fábrica de seda da família, cargo que também deu-lhe o privilégio de residir em Berlim (FEINER, 2010, p. 24). Ambas as ocupações eram típicas para os homens judeus letrados. Nas décadas de 1750 e 1760, Mendelssohn serviu a comunidade de Berlim escrevendo sermões e traduzindo-os para o alemão para ocasiões festivas.

De acordo com Feiner (2010, p. 93) em 1763, os anciãos da comunidade berlinense reconheceram as contribuições de Mendelssohn, isentando-o de impostos. Durante esses anos, Mendelssohn também publicou dois números do primeiro jornal em hebraico moderno, o Kohelet Musar; ele escreveu um comentário sobre a cartilha filosófica de Maimônides – Milot ha-Higayon –, em 1760-1761, um tratado hebraico sobre a imortalidade da alma em 1769 e um comentário sobre o livro de Eclesiastes em 1770. Posteriormente, ele começou a traduzir para o alemão e comentar partes da Bíblia, começando com uma tradução dos Salmos (FEINER, 2010, p. 178-184).

Esse esforço culminou em uma tradução do Pentateuco, com comentários dele e de outros, publicado como “Livro dos Caminhos da Paz ” – a tradução alemã foi impressa em caracteres hebraicos -. Como resultado de sua reputação, Mendelssohn foi chamado para falar e defender os judeus (FEINER, 2010, p. 185-186). Essa atividade começou no final da década de 1760 (Altona, 1769; Schwerin, 1772; Suíça, 1775; Königsberg, 1777; Dresden, 1777; Alsace, 1780) e resultou na publicação de um compêndio da lei judaica para uso nos tribunais alemães (Ritualgesetze der Juden, 1778), uma introdução a uma tradução de um apelo do século XVII para a readmissão dos judeus à Inglaterra (“Rettung der Juden”), bem como seu Jerusalem[25] (Ibidem, 2010, p. 186-189).

Sua abordagem da história se assemelhava à de alguns importantes teólogos discípulos de Christian Wolff[26]. A fase política vai desde os primeiros pronunciamentos políticos de Mendelssohn até sua obra decididamente política, Jerusalem . Ele une tradição do pensamento político iluminista alemão, fazendo a transição de “intercessor” para defensor dos direitos civis. Aqui ele reiterou os principais princípios de sua fé: o judaísmo era uma religião de conhecimento prático (“legislação divina”) fundamentada na história, mantida por transmissão oral e baseada na heteronomia. Ele usou a teoria da lei natural secular e eclesiástica – esta última também havia sido usada pelos wolffianos teológicos – para argumentar que os judeus mereciam uma concessão incondicional de direitos, bem como deveriam se reconstituir como uma sociedade voluntária sem poderes coercitivos.

Essas três fases do pensamento de Mendelssohn correspondiam em grande parte às três etapas do desenvolvimento da Haskalá: de uma tendência entre indivíduos (1700-1770), a um círculo intelectual (década de 1770), a uma sociedade organizada com um jornal (década de 1780). Mendelssohn foi o único membro da Haskalá a fazer a transição do período inicial para sua fase política posterior. No entanto, sua atividade política representava claramente um desvio de sua agenda original.

Este foi o caso da Haskalá em geral. Sua reputação como movimento revolucionário resultou de sua convergência na década de 1770 com as mudanças políticas e sociais fundamentais conhecidas como emancipação e assimilação. Embora a Haskalá tenha se identificado com essas mudanças, elas de fato alteraram seu curso original. No pensamento de Mendelssohn, as relações entre Judaísmo e Iluminismo, filosofia e revelação, política e crença eram tão intrincadas que poderiam ser melhor descritas pelas versões negativa e positiva de uma metáfora. O Iluminismo não foi uma tela pronta na qual Mendelssohn meramente pintou uma versão do judaísmo com tintas pré-misturadas. Ele desenhou a tela em seu próprio design, misturou sua própria paleta de cores e pintou diretamente de sua imaginação religiosa e filosófica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos estabelecer um diálogo entre as diversas correntes historiográficas sobre o Iluminismo e a Haskalá, o Iluminismo judaico. Somado a isso, consideramos dificultosa a tarefa de se analisar o Esclarecimento judaico sem o devido entendimento da importância das obras e das ideias de Moisés Mendelssohn. Longe de ter sido o único proponente de um afastamento do judaísmo das raízes supersticiosas do misticismo, Mendelssohn pode ser considerado o arauto e “profeta” deste “judaísmo moderno”, por mais complexo e polêmico que tal conceito carregue.

Estabelecer ou acrescentar itens na gigantesca historiografia sobre o Iluminismo pode até ser considerado cansativo e repetitivo, mas jamais inútil, jamais sem importância. Este se propôs a trazer à luz da historiografia brasileira o mais atual e polêmico debate sobre o período do Esclarecimento, seus desdobramentos, suas visões de mundo, as influências religiosas no que já foi creditado como período de “radical ateísmo” e, principalmente, como a grande e existente comunidade judaica europeia – principalmente aquela estabelecida na Prússia – recebeu e percebeu o período das Luzes.

A não grande e não extensa pesquisa de um Iluminismo judaico, na historiografia brasileira, não representa uma falta de qualidade em nossos s acadêmicos, mas ilustra a inviabilização da existência de um grupo religioso minoritário que participa, dialeticamente, de todo processo turbulento do Século das Luzes. O déficit dessas pesquisas tende a consolidar a imagem caricata do judeu europeu fechado em seu próprio mundo, iletrado e supersticioso, sem participação direta ou interventiva na formação da identidade, política e filosofia europeia.

É justamente na contramão de tal caricatura que se faz importante a análise da vida e das obras de Moisés Mendelssohn em sua hercúlea batalha pela autodeterminação dos judeus, sua emancipação e o direito de preservarem e manterem uma religião milenar. Em Mendelssohn e em outros maskilim, a emancipação judaica toca o real e a razão, fugindo do campo sobrenatural do misticismo judaico (Cabalá) e do messianismo teológico e teleológico.

É nesse aspecto da existência de uma consciência “esclarecida” judaica que firmam-se as bases deste trabalho. É no entendimento de uma comunidade judaica aberta – e ao mesmo tempo relutante – com a modernidade europeia e todos os seus conflitos sociais, políticos, religiosos e culturais que pretendemos demonstrar, onde a existência de um Iluminismo judaico não seria contradição.

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NOTAS: 

[1] CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo, 1994, p. 20

[2] Ibid. p. 38-43.

[3] Para maior conhecimento sobre lutas entre judeus e muçulmanos no Oriente Cf. A History of the Jews in Arabia.

[4] Isto é de fácil averiguação quando se pesquisa por “Haskalá” ou “Iluminismo judaico” no Google Acadêmico.

[5] O chamado Iluminismo Judaico é considerado um “iluminismo tardio”, se comparado com os outros iluminismos da Europa e América. Vários dos maskilim vão produzir intelectualmente apenas no século XIX. Cf. FEINER, 1999, Jewish Enlightenment e Mendelssohn and his “Disciples”.

[6] Maskilim é o plural de maskil, como eram conhecidos os seguidores e proponentes da Haskalá.

[7] A palavra אמת – lê-se da direita para a esquerda – transliterada para “emet”, significa “verdade”, em hebraico. Dentro da tradição mística do judaísmo, a Cabalá, existe a ideia do golem: um ser feito de barro, à imagem de um homem, que após tomar vida através de um ritual onde pronuncia-se o misterioso e sagrado Nome de Deus, tem em sua testa a palavra Emet escrita. A fim de “matar” este golem, o místico deve apagar a letra “aleph” (א) da palavra Emet (אמת), que está inscrita na testa do golem, de modo que resultará na palavra Met (מת) – morto. Adaptações e transformações da lenda têm sido feitas ao longo dos séculos, este ritual é descrito por Jacob Grimm no Jornal para Eremitas (ROSENFELD, p. 41, apud SCHOLEM, 1988, p. 190).

[8] Ser antropomorfo ligado à mística judaica, ganhando vida através de ritual divino.

[9] Neste trabalho abordaremos o caráter religioso do Iluminismo, sua busca pelo Unitarismo e Religião Natural.

[10] Judeus oriundos da Europa Central e Leste Europeu

[11] Dan Edelstein, Anton Matytsin, Franco Venturi, etc.

[12] A despeito de partirem de problemáticas distintas, tanto Hannah Arendt em Entre o passado e o futuro (2000) quanto Reinhart Koselleck em Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos (2006) e Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês (1999) contribuem fundamentalmente ao escopo historiográfico de nossa análise neste trabalho. Sobre a possibilidade de aproximar os dois autores, há o artigo de João de Azevedo e Dias Duarte (2012) publicado pelo periódico “História da Historiografia”.

[13] Cf. (SILVA, 2009, p. 301-318, grifos do autor) onde o autor afirma: “Do ponto de vista metodológico, a história dos conceitos pode ser concebida, inicialmente, como uma ferramenta, um instrumento indispensável para o aprimoramento da prática da História Social. O destaque à função instrumental da história dos conceitos para o aprimoramento disciplinar da História Social não implica aceitar que a primeira possa ou deva ser absorvida pela segunda”.

[14] Em seu livro Haskalah and History: The Emergency of a Modern Jewish Historical Consciousness, Shmuel Feiner afirma, segundo as ideias de Avraham Ber Gottlober (1811-1899): “A imagem de Mendelssohn não dependia de forma alguma nem da historiografia nem dos historiadores: a crença de que Mendelssohn era o ‘líder dos maskilim’ espalhou-se por todo o mundo judaico não por causa do Geschichte der Juden de Graetz, mas por causa do testemunho da própria História. A História produziu sua própria evidência, sem a mediação de um historiador, e foi a História que construiu a imagem reverenciada de Mendelssohn, tornando-a domínio do público judeu em geral” (2000, p. 336, tradução e grifos nossos).

[15] FEINER, Shmuel, 2001, p. 185-219. Cf. p. 206-208.

[16] Em seu Aufklärung und Judenfrage (O Iluminismo e a questão judaica), publicado em 1932, Arendt diz: “[…] a defesa de Mendelssohn da religião judaica e sua tentativa de preservar o ‘conteúdo eterno’ – tão ingênua quanto possa nos parecer hoje – não era totalmente descabida” (ARENDT, 2016, p. 130). Arendt faz uma revisão da filosofia da História de Mendelssohn, Lessing e Herder, onde estes autores, por mais que discordassem um dos outros em alguns pontos (principalmente Herder e sua crítica ao Iluminismo e seus philosophes) chegariam, segundo Arendt, no mesmo fim: a perda da identidade judaica como salário da assimilação nacional (ARENDT, 2016, p. 116-132).

[17] Cf. (KOSELLECK, 2006, p. 280-296).

[18] Cf. (KOSELLECK, 2006, p. 137).

[19] Em seu livro Barbarism and Religion: The Enlightenments of Edward Gibbon 1737-1734, John Pocock faz uma defesa assídua do conceito de “Iluminismos” ao invés de “Iluminismo”. Cf. (POCOCK, 2004, p. 13).

[20] Cf. Os problemas fundamentais da estética In. CASSIRER, 1994.

[21] Cf. Bibliotecas e Iluminismo e Alemanha: O Aufklärung Radical In: Iluminismo Radical.

[22] Berlim Mensal foi um periódico mensal publicado por Johann Erich Biester e Friedrich Gedike. Serviu principalmente como porta-voz da Berliner Mittwochsgesellschaft (Sociedade Berlinense das Quartas-feiras).

[23] Immanuel Kant.

[24] Escola de estudos judaicos.

[25] Principal obra de Mendelssohn, falaremos dela mais à frente.

[26] Importante filósofo alemão.

 

 

POR VOZES E MEMÓRIAS: EXPERIÊNCIAS VENEZUELANAS

Mariana Lopez Expósito, pedagoga, especialista em Educação Infantil e em Educação em Direitos Humanos pela UFABC, professora de Educação Infantil na SME/SP.

POR VOZES E MEMÓRIAS: EXPERIÊNCIAS VENEZUELANAS

INTRODUÇÃO

Por volta de 2013 inicia-se na Venezuela uma importante crise política, econômica e social. 

Do ponto de vista político: A chegada de Hugo Chávez à cena política venezuelana, eleito presidente em 1998 e em mais quatro eleições subsequentes, totalizando quatorze anos de governo. Chávez promoveu ampla distribuição de renda no país, com melhoria dos índices sociais e econômicos, com medidas populistas e autoritárias (cerceou o direito à imprensa livre, obrigou multinacionais a entregar parte do controle das empresas ao Estado, entre outras), inclusive após seu governo sofrer um golpe em 2002, foram os militares que o reconduziram ao poder. Durante seu terceiro mandato, por meio de uma emenda constitucional sua eleição foi permitida pela quarta vez. 

Sucessor de Hugo Chavez após sua morte em 2013, Nicolás Maduro venceu uma eleição com margem apertada e manteve o pouco espaço para a oposição, aumentando a perseguição à imprensa. Seu governo é alvo de inúmeras denúncias de prisões, ameaças, torturas e até execuções, em 2016 recebeu aprovação da Suprema Corte para retirar os poderes da Assembleia Nacional. 

Do ponto de vista econômico: a principal fonte de riqueza da Venezuela é o Petróleo. Não havendo investimento dos governos anteriormente citados em setores como na indústria e na agricultura, o país comprava tudo o que não produzia. Assim, a desvalorização do petróleo a partir de 2014 impactou diretamente no abastecimento do mercado venezuelano: sem o dinheiro da venda do petróleo o governo parou de comprar os itens básicos para a população. Além disso, em 2017 o governo norte americano, liderado então por Donald Trump, passou a impor sanções econômicas ao governo autoritário de Nicolás Maduro 

Do ponto de vista social: o impacto para a sociedade foi a hiperinflação e racionamento nos mercados; aumento da natalidade uma vez que inexiste anticoncepcionais para a venda bem como medicamentos básicos; com esse cenário aumenta a criminalidade e consequentemente da violência policial na repressão contra a criminalidade e contra os manifestantes populares que demonstram sua insatisfação com a situação do país. Falta de empregos, recursos para a sobrevivência, agravamento de doenças, culminando em 2019, com a interrupção do fornecimento de energia e água, o país chegou à beira de uma catástrofe sanitária. 

Essa crise impeliu boa parte de sua população a fugir para os países vizinhos, dentre eles o Brasil, devido a certa “facilidade” (coloco aqui facilidade entre aspas porque se deve a interpretação subjetiva, muitos andaram por dias, passando necessidades no percurso, outros contaram com ajuda financeira de seus familiares para compra de passagens, entre outros desafios que enfrentaram) de entrada por Roraima. Caracterizando uma migração forçada, o que o Instituto Migrações e Direitos Humanos designa como: 

O termo “refugiado” vem sendo também associado à pessoa ou grupos que são forçados a deixar seu país, embora não necessariamente “perseguidos”, por fome, desemprego, questões raciais, étnicas, desordem política interna do país, motivos religiosos, e buscam segurança ou perspectivas de vida e sobrevivência em outros países. Quando, nestes casos, não se configuram todos os elementos legais que caracterizam o conceito de refugiado, estes migrantes são frequentemente chamados de imigrantes econômicos ou refugiados de fato. (IMDH, 2014)

Nesse contexto o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), de acordo com publicação da Acnur em 2019, baseado na Declaração de Cartagena de 1984, decidiu sobre a existência de grave e generalizada violação de direitos humanos aos venezuelanos, levando a efeitos práticos importantes na resolução de diversos casos desta população.

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2018) aponta que é urgente e necessário educar em Direitos Humanos, para a defesa, o respeito, a promoção e a valorização desses direitos.

Observamos que o Brasil conta com um conjunto de normas, especificamente a Constituição de 1988, cuja marca cidadã inspira outros documentos oficiais, e políticas públicas voltadas para a proteção e promoção dos direitos humanos. 

  No entanto, esta realidade convive com violações sistemáticas, e em muitos casos dramáticos, destes direitos. Na sociedade brasileira, a impunidade, as múltiplas formas de violência, a desigualdade social, a corrupção, as discriminações e a fragilidade da efetivação dos direitos juridicamente afirmados constituem uma realidade cotidiana. (CANDAU, 2012).

Por outro lado, vemos a cada dia o crescimento de discussões, reflexões, cursos que afirmam “uma nova sensibilidade social, ética, política e cultural em relação aos direitos humanos” (CANDAU, 2012).

Assim, observamos que apesar de todo o arcabouço jurídico, há uma distância entre o mesmo e a realidade vivida, se os direitos humanos

não forem internalizados no imaginário social, nas mentalidades individuais e coletivas, de modo sistemático e consistente, não construiremos uma cultura dos direitos humanos na nossa sociedade. E, neste horizonte, os processos educacionais são fundamentais. (CANDAU, 2012).

Com a chegada, em 2019, desta população no CEI (Centro de Educação Infantil) em que eu trabalhava, nos deparamos com um desafio importante em garantir a educação como direito humano fundamental, a partir dos referenciais do Comentário Geral n° 13/1999 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU – Organização das Nações Unidas, cujas quatro principais características são: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade. Na verdade, não estávamos preparados para um efetivo trabalho com crianças venezuelanas, uma vez que não falávamos espanhol e nem as crianças e famílias que atendíamos português.

JUSTIFICATIVA

Para todas as pessoas, adaptar-se exige um esforço de se integrar ao novo espaço, rotinas, alimentação, pessoas, cheiros e tudo o que um novo ambiente carrega. Para as crianças esse esforço é ainda maior, uma vez que, embora disponham de Cem linguagens de acordo com o poema escrito por Loris Malaguzzi91920-1994), nós, adultos, ainda não sabemos interpretá-las. 

“A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos, cem pensamentos, cem modos de pensar de jogar e de falar. Cem, sempre cem modos de escutar de maravilhar e de amar. Cem alegrias para cantar e compreender. Cem mundos para descobrir. Cem mundos para inventar. Cem mundos para sonhar. A criança tem cem linguagens (e depois cem, cem, cem) mas roubaram-lhe noventa e nove. A escola e a cultura lhe separam a cabeça do corpo. Dizem-lhe: de pensar sem as mãos de fazer sem a cabeça de escutar e de não falar de compreender sem alegrias de amar e de maravilhar-se só na Páscoa e no Natal. Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já existe e de cem roubaram-lhe noventa e nove. Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho a realidade e a fantasia a ciência e a imaginação o céu e a terra a razão e o sonho são coisas que não estão juntas. Dizem-lhe enfim: que as cem não existem. A criança diz: Ao contrário, as cem existem”.

Podemos então imaginar o desafio, o quão difícil seja para a criança proveniente de outro país, que além dos elencados acima, haviam deixado seu país, sua cultura, suas raízes, mesmo que não tivessem esses fatos a nível do consciente.

Além disso, as dificuldades de acesso às políticas públicas para o povo imigrante/refugiado, que embora previsto em legislação há uma barreira, uma distância entre o que a lei preconiza e o que a pessoa tem condições de acessar, incluindo ações concretas, específicas para o povo venezuelano, e a criança imersa neste contexto, apreendendo informações, ideias, sentimentos destas experiencias, deste mundo do qual faz parte ativamente, de tudo e ao tempo todo.

Chomsky (1997) afirma que “a faculdade humana de linguagem parece ser uma verdadeira “propriedade da espécie”, variando pouco de indivíduo para indivíduo. Para o autor

a língua é o resultado de dois fatores: o estado inicial e o curso da experiência. Podemos conceber o estado inicial como um mecanismo de aquisição da linguagem que recebe como dados de entrada (input) a experiência, e fornece como saída (output) a língua — saída esta que constitui um objeto internamente representado na mente/cérebro”.

Sendo, portanto, uma capacidade inata do ser humano. Concordando com Chomsky, Evélio Cabrejo-Parra (2011), afirma que os bebês carregam consigo competências naturais ao nascer, dentre elas a competência da linguagem. O bebê vem ao mundo com uma sensibilidade grande a voz humana, assim, a voz se forma, é pela voz do outro que construímos a nossa. A linguagem falada tem ritmo, cadência, regularidades próprias. Os povos constroem sua cultura pela palavra e é através da oralidade que o sujeito se torna capaz e potente para construir sua identidade.

Assim, a barreira da linguagem, pensando nesta como toda forma que o ser humano usa para se comunicar, incluindo aí a língua, que é a forma de comunicação social mais utilizada, seja por sons e/ou gestos tornou-se evidente. 

A língua pode ser o lugar de afetos, memórias e sentimentos agradáveis, na publicação da Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo, Currículo da Cidade – Povos Imigrantes (2021, p. 50), observamos: “A língua falada representa mais do que a forma como nos comunicamos com outras pessoas. Ela é a ponte que estabelecemos com as nossas origens e a maneira como entendemos a nós mesmos. A língua nos traz o sentimento de pertencimento”.

Pensando na diversidade linguística que se apresentava e em como incluí-la em nosso fazer, com crianças tão pequenas, planejamos algumas propostas pontuais como: convidar as famílias venezuelanas que faziam parte do CEI para um preparo culinário típico de sua região para o grupo MGI (do qual eu era a professora); convidar a mãe para vir em nossa roda cantar cantigas da cultura da infância da Venezuela para as crianças do nosso grupo e, convidar duas mães para contar sobre como se deu sua vinda para o Brasil.

Foi a partir desta experiência que este trabalho se origina, nasce aqui esta ideia de construção de um repositório de memória “falada”, por meio história oral e de cantigas infantis, representativas da população venezuelana, da cultura da infância venezuelana que possam contribuir para, além da preservação da memória dos mesmos, o acesso em momentos de necessidade (como no caso da acolhida), saudade, ou para lembrar, recordar de experiências afetuosas com a língua materna e do contexto da infância.

Quando a língua com que uma pessoa se identifica está distante, esta faz tudo o que é possível para mantê-la viva porque as palavras te devolvem tudo: o lugar, as pessoas, a vida, as ruas, a luz, o céu, as flores, os sons. Quando uma pessoa vive sem sua língua se sente (…) em uma diferente altitude, respira outro tipo de ar e está sempre consciente da diferença (Jhumpa Lahiri in SÃO PAULO, p. 52, 2021)

A fim de facilitar o acesso a essas memórias, criaremos um podcast, que dará visibilidade às narrativas orais diferentes e ao mesmo tempo, poderá ser utilizada por outros profissionais, outros interessados a distância, facilitando o trabalho, especialmente com crianças pequenas, em outros contextos. 

OBJETIVOS E HIPÓTESES

OBJETIVO GERAL

Afirmar ações em Direitos humanos por meio de narrativas orais de imigrantes venezuelanos, preservando suas memórias em arquivos digitais com a construção de podcast. 

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

  • Afirmar ações em Direitos Humanos valorizando o humano;
  • Preservar as memórias do povo venezuelano;
  • Afirmar a identidade do povo venezuelano;
  • Valorizar a oralidade como forma de preservação de história e de comunicação; 
  • Contribuir para a valorização da escuta ativa e sensível;
  • Trazer a luz vozes desta população: imigrantes venezuelanos;
  • Contribuir para o empoderamento desta população;
  • Favorecer o acesso ao direito da herança social e o direito a memória à população venezuelana;
  • Promover ação de respeito e valorização da diversidade e da solidariedade, construindo um lugar de memória da população venezuelana.

HIPÓTESES

Desde os mais remotos tempos, a humanidade narrava fatos e acontecimentos, numa ânsia de saber e domínio sobre a vida. Narrava o que não compreendia e para compreender a vida, para guardar na memória e para se humanizar. A forma mais antiga de se conhecer histórias é pela oralidade, pela palavra. 

A partir da construção do projeto do podcast como um repositório de memória “falada”, usando a oralidade para traduzir suas memórias de histórias e cantigas, uma vez que

A memória faz de nós aquilo que somos e podemos vir a ser (SOUZA e SALGADO, 2015).

A memória recolhe os incontáveis fenômenos de nossa existência em um todo unitário; não fosse a força unificadora da memória, nossa consciência se estilhaçaria em tantos fragmentos quantos os segundos já vividos (Ewald Hering, 1920, in MOURÃO e FARIA, 2015).

Assim os episódios de podcast podem contribuir para a manutenção do que foi vivido aceso e visível (audível no caso), para acesso, lembrança, acolhimento, conhecimento e aconchego. Numa perspectiva de resistência ao esquecimento.

METODOLOGIA 

Como metodologia utilizamos o entrelace entre a História pública e a História oral. Não como sinônimos, mas como campo que se abre para um diálogo que envolve o público em sua produção, no caso deste trabalho. 

Embora haja diversos estudiosos que contribuem para fortalecer o conceito de História Pública, no texto História pública: entre as “políticas públicas” e os “públicos da história” Almeida e Rovai (2013) o aponta como “um conceito escorregadio por abrigar múltiplas tendências profissionais e acadêmicas, e por isso exige responsabilidade e compromisso acadêmico e social”. 

  Eu defino História Pública como sendo baseada em três particulares enfoques: a comunicação de História para públicos não acadêmicos, a participação pública, e a aplicação da metodologia histórica a temas do dia a dia. Esses critérios relacionam-se com uma redefinição mais ampla da profissão histórica desde os anos 1960. Simbolizada pelo crescimento da Internet e novo acesso popular ao conhecimento, novas questões cresceram sobre o historiador e seu papel na sociedade (CAUVIN, 2018, p. 5, in FAGUNDES, 2019).

Esse novo caminho propõe para além da preservação da cultura, o como envolver a comunidade na reflexão de sua própria história, sendo, portanto, uma produção de autoria colaborativa.

Para Matos e Sena (2011) a História oral, enquanto procedimento metodológico, procura registrar, de forma a tornar perpétuo as lembranças, impressões, vivências das pessoas que se dispõem a compartilhar suas memórias com os demais e assim promover o conhecimento do que foi vivido pelos narradores com mais riqueza e colorido das situações.

Particularmente, em relação a História oral, valoriza-se sua capacidade de

ser um meio privilegiado para oferecer respostas rápidas a demandas sociais pelo registro e pela análise histórica de acontecimentos contemporâneos, sobretudo aqueles imprevisíveis, como conflitos sociais e desastres naturais; um meio privilegiado de reconhecer e preservar as narrativas de pessoas e grupos em situações de sofrimento e de vulnerabilidade de várias ordens, situações que passam a ser constitutivas de suas identidades pessoais e sociais. (SANTHIAGO, BORGES e RODRIGUES, 2020).

Assim, convidaremos, inicialmente, algumas famílias venezuelanas que frequentaram o CEI Jardim São Luiz I, pois já temos contato.  

Utilizaremos do aparelho celular para gravar os áudios das histórias, memórias e cantigas venezuelanas; 

Criaremos uma conta na plataforma Anchor, para hospedar os áudios, que posteriormente serão disponibilizados a quem se interessar. Os programas de podcast serão semanais inicialmente. O podcast é um programa de rádio sob demanda, você pode ouvir como, onde e quando quiser, diferente do rádio convencional que é síncrono, o podcast é assíncrono, utilizaremos texto corrido que tem um roteiro pré-definido para o podcast.

A proposição do uso de ferramentais tecnológicas como o uso do celular, plataformas e a necessidade de disponibilidade de Internet para acessar e produzir o trabalho, acompanha o momento sócio histórico no qual estamos inseridos. Mas gostaríamos de frisar que o fio que liga ao passado se dará pelo uso e manutenção da palavra.

RESULTADOS PARCIAIS/ESPERADOS

A partir das publicações dos episódios, com o acesso de professores, esperamos conseguir colaborar para que a voz dessa população seja ouvida, no sentido mais amplo da palavra voz. 

Esperamos conseguir manter viva a memória deste povo, incluí-los verdadeiramente aumentando a igualdade de oportunidades, diminuindo o complicador das relações que é a barreira da língua. 

Colaborarmos para a construção de uma cultura a favor da não violência, do respeito e acolhimento. Fomentamos experiências acerca do uso da palavra, da oralidade, da resistência e da inclusão, especialmente com crianças pequenas.

A seguir link da plataforma Anchor: https://anchor.fm/mariana-lopez-exposito e do Spotify: https://open.spotify.com/episode/71AmJ7JSL9NADjk9wv7O0s?si=hmJpfV10QIWjRajUIq-I4g&utm_source=copy-link&nd=1

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até mesmo para nós ouvirmos, ao visitarmos o podcast, é motivo de emoção. Quanta história, quanta experiência, quanta vida! É como se pudéssemos a partir do passado, atuando no presente, nos responsabilizar, nos implicar com e pelo futuro, é como me sinto, é como vejo.

O que seriam destas memórias, destas histórias, destas cantigas, destas vozes se não fossem vividas e divulgadas? Concordando que é pela língua que nos apresentam e apresentamos o mundo, que é a língua que nos conecta, que nos dá o sentimento de pertencimento.

É preciso ter esperança, do verto esperançar, como bem o proclamou Paulo Freire (1992), e não de esperar, mas sim de luta, de ação. Por uma Educação em Direitos Humanos onde as três dimensões: formação, empoderamento e transformação sejam referencias e norte para uma educação democrática, alicerçada na igualdade como concepção da natureza humana. 

Desejo que este trabalho cresça, não por mim, mas para todos e por todos os envolvidos com a Educação da criança pequena: crianças venezuelanas que ao ouvirem vozes, línguas originárias, aproximando-se de uma palavra conhecida sintam sua identidade reconhecida; famílias venezuelanas que ao saberem que seus filhos foram acolhidos, que estão bem, se sintam também acolhidas, bem, que possam também saber que sua língua está viva, pulsante e que podem proporcionar isso a outros conterrâneos, o reencontro com suas raízes e preservação de suas memórias; aos professores da Educação Infantil, apesar de muitas vezes a cultura escolar encontrar-se engessada, que poderão utilizar a voz de pessoas venezuelanas para se aproximar de suas histórias e assim conhecer e acolher verdadeiramente seus alunos, considerando-os na sua singularidade e inteireza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Ministério dos Direitos Humanos. Brasília. 2018. Disponível em:< Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos — Português (Brasil) (www.gov.br) >. Acesso em 15 abr 2022. 

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CHOMSKY, NOAM. Novos Horizontes no Estudo da Linguagem. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada [online]. 1997, v. 13, n. spe [acessado 5 junho 2022], pp. 51-74. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-44501997000300002>. Epub 11 Dez 2001. ISSN 1678-460X. https://doi.org/10.1590/S0102-44501997000300002.

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SANTHIAGO, RICARDO; BORGES, VIVIANE T. e RODRIGUES ROGÉRIO R. O Devir Público Da História No Tempo Presente: Outras Linguagens, Outras Narrativas Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas Volume 12, número 1, jan./jun. 2020. DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d1.p.13.38. Disponível em:<Vista do HISTÓRIA ORAL E PÚBLICA (ufam.edu.br)> Acesso em 29 mai 2022.

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SOUZA, ALINE B. DE e SALGADO, TANIA D. M. Memória, Aprendizagem, Emoções e Inteligência. Revista Liberato, Novo Hamburgo, v. 16. N.26. p. 101-220, jul./dez. 2015. Disponível em:<06-Art09-Memoria-Aprendizagem-29-Set.indd (ufrgs.br)>. Acesso em 15 abril 2022.

Vídeo: Prof. Dr. Salomão Barros Ximenes. Disponível em: <Módulo V – Direitos Humanos e as Diversidades na Escola – UFABC Parte 1 – YouTube>

Vídeo: Prof. Dr. Salomão Barros Ximenes. Disponível em:< Módulo V – Direitos Humanos e as Diversidades na Escola – UFABC Parte 2 – YouTube>

 

 

 

“Daspu”: Estigma ante o imaginário social da prostituição.

Milena Gomes de Senna

 

Milena Gomes de Senna

Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR), Campos dos Goytacazes. Atuou como bolsista no “Programa Bolsa Desenvolvimento Acadêmico 2017”, associada ao Projeto “ Ensino de História, Lei 10.639 e a formação de professores: Perspectivas para a educação das relações étnico-raciais”. No ano de 2018 a 2019, atuou como bolsista na Iniciação à Docência CAPES (PIRP), pelo Projeto “Enquadramento de Memórias de Campos dos Goytacazes: História Pública e Ensino de História” residindo no Colégio Liceu de Humanidades de Campos. Atualmente participa do projeto de extensão “Formação continuada para professores que atuam na rede pública do município de Campos dos Goytacazes: tecnologias em sala de aula, uma relação entre o saber e o fazer” na UENF, Laboratório CCH/LEEL. Também é aluna na Universidade Federal Fluminense (UFF), na modalidade de bacharelado em História.

 

“Daspu”: Estigma ante o imaginário social da prostituição.

Resumo:

Este artigo tem como objetivo refletir o imaginário social atribuído às trabalhadoras sexuais ao longo da história da humanidade, que por sua vez está atrelado ao estigma produzido socialmente. Na contramão das imposições sociais  nasceu a ONG Davida e a grife Daspu que serão abordados devido à importância deste movimento na busca de reivindicar o direito à cidadania, o respeito à cultura, segurança, a manifestação contra a marginalização da profissão e seu estigma histórico-cultural que corresponde à demarcação civilizatória das sociedades em que o patriarcado é reproduzido no âmbito da composição da família nuclear. O debate apresentado neste trabalho é realizado com base nos pressupostos de Erving Goffman, acerca do conceito de estigma social,  relacionando-o a obra de Michel Foucault e o livro “Puta feminismo” da Monique Prada militante em defesa dos direitos das trabalhadoras sexuais, assim como a respeito da influência do feminismo como tema “fundante” das reivindicações por direitos humanos e o bem estar em busca da regulamentação por lei.
Palavra chave: ONG Davida; Daspu; Estigma; Imaginário Social.

 

INTRODUÇÃO:

 

Cada indivíduo desenvolve um papel construído no espaço das interações sociais, podendo ser estigmatizado caso não cumpra o modelo que lhe foi esperado socialmente (GOFFMAN, 1980). Nesta perspectiva, o presente trabalho tem como objeto a prostituição feminina, uma profissão que conseguiu avançar em relação aos direitos civis ao longo do século XX, porém ainda não é regulamentada no Brasil contribuindo para o seu exercício na clandestinidade. Importante salientar algumas premissas básicas para a compreensão deste trabalho, pois se restringe a tratar de um grupo de trabalhadoras sexuais em sua grande maioria cisgênero, de classe social baixa, maiores de idade que optaram por exercer tal profissão, não pretendendo adentrar a causa desta escolha ou casos de exploração sexual e abuso, que se enquadram como um ato totalmente criminoso e repudiado.
A reflexão se inicia  abordando a teoria do estigma social tratada pelo sociólogo Erving Goffman, investigando a forma de se relacionar dos indivíduos, simbolismos e a maneira que se dá a relação social em diferentes grupos, sobretudo os enquadrados como categoria de descrédito. A discussão ressalta uma breve perspectiva histórica acerca da profissão e o papel desempenhado pela mulher na civilização Antiga à Idade Moderna.
No capítulo seguinte é abordado a construção do movimento de prostitutas no Brasil, no final dos anos 1970 com base no livro “Daspu: A moda sem vergonha.” de LENZ, Flavio, 2008, com uma grande mobilização das mulheres no centro de São Paulo contra a violência e opressão recorrentes no cotidiano da categoria. Este acontecimento fortalece a militância de Gabriela Leite, liderança na busca por direito e a realização de novos projetos que contribuem na construção de um novo imaginário a respeito desta atividade desenvolvida por mulheres, confrontando um outro estigma: o da vitimização. A grife Daspu nasceu no ano de 2005 na cidade do Rio de Janeiro e ganhou visibilidade nos meios de comunicação, despertando o interesse do público com a “batalha das grifes” iniciada pela butique paulistana Daslu, que demonstrou o preconceito moralista “pequeno burguês”, e suas proprietárias receberam críticas por suas atitudes preconceituosas.
Resgatar essas memórias é humanizar as histórias de vida destas profissionais, que são mães, filhas e avós considerando a importância de combater ao estado de exclusão normativa, condenada pela moral dos “bons costumes” que as perseguem durante séculos.

Estigma:

O interacionismo simbólico faz parte do conjunto de sociologias contemporâneas,‌ também chamada de representação teatral com a ideia de que os indivíduos desenvolvem papéis nas relações cotidianas como se estivessem em um teatro. Para refletir sobre o desempenho desses papéis,‌ será utilizado como base a obra “Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”,‌  do sociólogo,‌ antropólogo e escritor canadense Erving Goffman no século XX,  a teoria  traça uma análise na década de 60 para compreender como ocorre o processo de separação dos indivíduos considerados “diferentes”, sofrendo exclusões constantemente. O estigma pertence a todos os cidadãos, é um desvio do padrão de comportamento esperado que é imposto socialmente a determinados grupos ou indivíduos.
Os argumentos cristãos segundo Lima e Teixeira, (2008) contribuem para sustentar a misoginia, pois associam a mulher como detentora do mal, do perigo, sedutora, pecadora, à filha de Eva. Diante disso, o exemplo de comportamento feminino a ser seguido deveria ser o de Maria, mãe de Jesus, se dedicando a ser mãe, esposa e “pura”, propagando a concepção de que “a mulher é fruto de uma costela do homem”. Para Michel Foucault, o desenvolvimento das sociedades burguesas vitorianas e do capitalismo inicia uma hipótese repressiva, vista de maneira autoritária transformando a sexualidade que antes do século XVI era relativamente livre e passa a ser centralizada na família e resguardada para quatro paredes, no quarto dos pais e avós. No entanto, embora a Igreja afirmasse sua posição rígida contra todo relacionamento sexual fora do matrimônio, considerando o ato como pecado, a prostituição nunca foi proibida pois passou a ser encarada como um “mal necessário”, destinado aos homens. Contudo a Idade Média, atribuiu uma significativa rejeição no imaginário coletivo em relação ao trabalho sexual, sinônimo de desvio de caráter e moral.
Atualmente a palavra estigma possui diferentes significados, mas especialmente no que se refere aos aspectos sociais, para a sociologia o conceito de estigma social está relacionado com a categorização de um grupo por outro,‌ conferindo um grau inferior de status social, seja pela sua origem ou condição. Atribuir uma marca a um grupo está associado às pré-concepções que estereotipa esses indivíduos, revelando o preconceito semelhante ao ocorrido “guerra das grifes” iniciada pela butique paulistana Daslu, alegando que qualquer comparação a grife Daspu estaria rebaixando sua imagem, pois a marca carioca seria composta por trabalhadoras sexuais, indivíduos automaticamente desacreditados socialmente.

Considerando a teoria goffmaniana, será abordado neste trabalho especificamente a categorização conforme “culpa de caráter individual”, percebida como distúrbios mentais,‌ questões relativas ao comportamento ligados a sexualidade,‌ paixões tirânicas ou não naturais,‌ crenças consideradas falsas como religiões afro-brasileiras,‌ desonestidade,‌ posicionamento político radical entre outros. Estes não são atributos necessariamente do corpo físico, visível de imediato, porém são condições que levam alguém a ser estigmatizado. A escritora e trabalhadora sexual Monique Prada, afirma que:

Em geral, as pessoas não conseguem perceber que a prostituta pode ser a vizinha que cria seus filhos sozinha, a universitária que mora ao lado, a moça independente e discreta da casa da frente. Almoçamos, jantamos, consumimos. Existimos, por mais que existirmos também fora do gueto seja inconveniente em uma sociedade profundamente hipócrita e conservadora – uma sociedade que nos alimenta, mas não quer que sentemos à mesa. (p.68)”.

 

Os aspectos “não contaminados” da identidade social de um indivíduo não consegue lhe conferir o respeito e a consideração que ele havia previsto, mesmo que todas as demais características se apresente conforme a “norma”, ainda assim pode não ser compensatório em relação ao estigma que carrega. O contato entre os “normais” e os estigmatizados pode ser estabelecido por tensão ou acolhimento e compreensão das diferenças. O termo “iguais” na obra goffmaniana é utilizado para englobar todas as pessoas que apresentam um atributo que os diferencia dos demais como no caso da ONG Davida,‌ são indivíduos que possuem traços em comum e, portanto, se identificam um com os outros a partir da narrativa estigmatizado. O grupo de pessoas que concedem apoio aos estigmatizados são os “informados”,‌ essa terminologia faz analogia ao termo utilizado por homossexuais que ao longo do tempo foram chamados de simpatizantes. É a idéia dos indivíduos que de alguma maneira partilham da vida de quem é estigmatizado,‌ portanto gozam de certa aceitação dentro do grupos de “iguais”,‌ assim o “informado” que não possui um atributo de descrédito mas em função de uma certa simpatia pelo estigmatizado estará classificado no grupo que está entre os “normais” e “iguais” que possuem algum atributo,‌ como parentes e amigos. O estigma, portanto, provoca uma separação na sociedade entre os “normais” e os “desviantes”. Cria-se uma aproximação entre os estigmatizados como uma rede de proteção e aceitação da sua própria condição,‌ como por exemplo no caso da ONG Davida, que para além das trabalhadoras conta com a contribuição de familiares, amigos e cônjuges, os “informados”.

O Nascimento da Grife, Repercussão Midiática e Estigma:

Quanto à história do nascimento da grife Daspu é de grande relevância abordar sobre a fundadora, Gabriela Silva Leite, batizada como Otília e falecida em 2013 vítima de um câncer. Buscou fortalecer a cidadania das “mulheres da vida”, mobilizou juntamente com outras ativistas a criação de projetos como a Rede Brasileiras de Prostitutas e a ONG Davida. De acordo com o livro “Daspu: a moda sem vergonha” (2008), escrito pelo jornalista, ativista e companheiro de Gabriela, Flavio Lenz. Afirma que a Rede Brasileira de Prostitutas surgiu com o intuito de organizar mulheres que atuam na prostituição de diversos lugares do país, para conhecer suas diferentes reivindicações, saberes e dialogar com a sociedade. Seu ativismo inicia em 1979, porém o dia 12 de junho de 1982 é impulsionado, Gabriela mobiliza com suas colegas de ofício uma passeata em São Paulo para denunciar um ato de violência da polícia militar contra as prostitutas da Boca do Lixo ocasionando na morte de três mulheres, entre elas uma estaria grávida. Devido ao apoio da mídia que divulgou o caso, o movimento realizou uma assembleia dois dias após o ato que resultou no afastamento do delegado responsável, Wilson Richetti.

Em 1987, o desejo de Gabriela em reunir uma grande quantidade de trabalhadoras se concretiza com o I Encontro Nacional de Prostitutas na cidade do Rio de Janeiro, articulado junto a amiga Lourdes Barreto, ativista paraibana. Este evento promoveu a articulação política que dá base a Rede Brasileira de Prostitutas interligando e fortalecendo a identidade profissional do grupo. Estiveram presentes 70 mulheres de diferentes estados como São Paulo, Bahia, Pará, Goiás, Rio de Janeiro entre outros. Para debater e denunciar a violência por parte do Estado e  a epidemia da HIV/Aids, infecção sexualmente transmissível que segundo a medicina higiênica, homossexuais e prostitutas são enquadrados como “grupo de risco” (GUIMARÃES, 1996), aumentando a discriminação e estigma social sobre eles :

“O discurso médico sobre a prostituição produzido na segunda metade do séulo passado define a livre manifestação do desejo sexual pelas noções de excesso de prazer e/ou ausência da finalidade reprodutora e a insere no espaço da sexualidade pervetida e doente. (GUIMARÃES, 1996, p.300)”.

Entanto, esse encontro serviu para firmar os laços, a identidade e base para a fundação de associação em diferentes estados, uma rede ou melhor uma união da cidadania de cada uma, valorizando seu protagonismo como afirma o slogan  do encontro “Mulher: da vida, é preciso falar”.
Após alguns anos, em 1992, a ativista funda a Organização não governamental Davida – prostituição, direitos civis e saúde, que se concretiza como entidade que atua por trás da criação de todos os projetos e políticas públicas voltado às necessidades das profissionais dos sexo, seja na área da cultura, educação ou saúde contando com parcerias como o Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde. Com o intuito de organizar a categoria contra o preconceito, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, violências em geral, além do reconhecimento da prostituição como profissão legal e direitos humanos. O jornal Beijo da Rua é mais um veículo criado por Gabriela e aliados no ano de 1988, para disseminar a comunicação, notícias, poemas, desfiles de moda entre outras coisas sobre a prostituição a nível nacional e internacional dando a elas o total protagonismo.
Devido a articulação da categoria contra o estigma, a favor do cuidado e a elevação da autoestima, no ano de 2002 se tornou possível que o Ministério da Saúde produzisse uma campanha nacional de prevenção à HIV/Aids com o slogan “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”. A iniciativa contou com adesivos, cartilha, manual, agenda, bottons e spot de rádio informando sobre as principais doenças sexualmente transmissíveis, a importância do preservativo, informações sobre o câncer de mama, dependência química entre outros assuntos que contribuíram na área de políticas públicas. Para o movimento é importante dar um passo além da área de saúde, assim no mesmo ano a prostituição foi incluída na relação de atividades profissionais do Ministério do Trabalho, a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
Em julho de 2005 a Ong Davida completava 13 anos em ótimo estado financeiro e de realizações, bastante focado em ações culturais e comunicação em busca de uma maior integração social. Neste período os projetos existentes eram o grupo de “Mulheres Seresteiras”, a apresentação da terceira temporada da peça “Cabaré Davida” um espetáculo para agregar conhecimento e quebra de estigma contra o Hiv/Aids, e o bloco de carnaval “Prazeres Davida”, os três eventos acontecem em praças e ruas do centro do Rio de Janeiro, geralmente no principal ponto boêmio e espaço de batalha das mulheres que atuam na Ong, a Praça Tiradentes.  Com todo esse clima de festa e realizações, na tarde de 15 de julho de 2005 os membros da Ong celebram na sede no bairro do Estácio, os 13 anos de mobilização e trabalho com petiscos, conversas, danças e bebidas. Nesta noite sentada em uma mesa no segundo andar da casa sede, Gabriela e alguns membros da Davida, entre eles o designer Sylvio de Oliveira, para quem comenta sobre a ideia de uma confecção proposta inicialmente por Imperalina Piedade da Silva colaboradora ativa nas criações da organização e costureira. Segundo Gabriela: “As meninas, a Lina, principalmente, andava falando muito de a gente ter uma confecção. Acho que seria melhor uma história de grife, de moda mesmo, que pudesse até levantar dinheiro para a Davida” (LENZ, 2008, p.47).

Nesse exato período, a grife da alta sociedade paulistana Daslu, estava envolvida em um escândalo de lavagem de dinheiro e sonegação de imposto estampado em todos os jornais, sites e tv. Com o assunto em alta, Sylvio aborda “Ah, já sei o nome: Daspu!” gerando gargalhada das pessoas ao redor, pois ninguém imaginaria que a ideia fosse a frente, porém ela foi concebida, devido uma descoberta de forma inusitada. Segundo o assessor de comunicação da Daspu, Flávio Lenz (2008), relata que o projeto foi deixado um pouco de lado após a festa de aniversário da Ong, devido às tarefas diárias já existentes, mas ainda era pauta de discussão na mesa do bar, (LENZ, 2008), cita a possibilidade de bares na Glória o “Taberna” ou “Caçador”, chamado pelo grupo de Varanda’s ambos eram bastante frequentados por eles, por tanto esses locais considera-se a hipótese de algum ouvinte alheios ali presente, ter vazado para imprensa uma versão do surgimento da grife diferente da original. No entanto, no dia 20 de novembro de 2005, saiu uma nota do Elio Gaspari no jornal “O Globo”, dizendo sobre o surgimento de uma grife de prostitutas, a Daspu, e ainda menciona o apoio de uma ONG escandinava, estrangeira.
Assustados com essa informação do nascimento da grife e com receio de terem perdido uma ideia, Gabriela como dirigente da organização começa entrar em contato com alguns colegas, para saber a origem dessa ONG estrangeira. Mas logo, o telefone tocou à procura de informações sobre a tal grife, era o Marcelo Bastos, jornalista do “O Dia”, em busca de detalhes do surgimento. Roupas, confecção, proposta e protagonistas por trás da Daspu, para serem lançadas em uma matéria, Gabriela confirma a existência da marca, afirmando ter uma “linha completa”: “Folia, com roupas de festa; Básica, para visual do dia-a-dia, e Lingerie, direcionada às prostitutas que trabalham em locais fechados, com direito a peças apimentadas”(LENZ, 2008, p. 47). A equipe se tranquiliza após o contato do jornalista, pois a ideia estava firme, porém faltava planejamento, agora era o momento de criar de fato o visual da marca, um logotipo para sair no jornal e pensar na confecção. O designer Sylvio cuidou da parte estética imediatamente e no dia 21 de novembro, segunda-feira, saiu a matéria no jornal “O Dia”, identificando o nascimento inesperado e o susto da grife. Naquela mesma agitada segunda-feira, a ONG recebeu ligações dos jornais Folha de São Paulo e Isto É. Um repórter da revista semanal marcou de comparecer à sede da ONG no dia seguinte para fotografar as peças da grife, porém a única foto possível foi de Gabriela segurando dois papéis de folha A4, um com a imagem da marca e outro com a arte-final da camiseta do bloco Prazeres Davida, que por acaso teria ensaio na mesma segunda-feira, aproveitando para expandir a ideia da grife nas ruas, gerar mais visibilidade para o bloco entre os carnavalescos e movimentar lucro com a venda de camisas. O evento aconteceu na Praça Tiradentes percorrendo até a rua Imperatriz Leopoldina, no centro do Rio de Janeiro, com a presença de muitos foliões chamando atenção de jornais e revistas a grife era a queridinha do momento, com toda essa movimentação e popularidade em três dias, na quarta-feira 23 de novembro, os organizadores decidem produzir a primeira peça de forma rápida e básica, uma camiseta com o logo da marca na frente, feito em transfer. No dia seguinte estava pronta e gerando a felicidade do grupo. Nota-se que a grife não estava estruturada, pois o nascimento ocorreu de forma inesperada, porém chamou a atenção da mídia que noticiou cada informação descoberta do projeto criado por prostitutas na cidade carioca, aumentando cada vez mais a visibilidade e apressando seu desenvolvimento. Após dias de estreia, as prostitutas recebem um convite do programa Fantástico para aparecer na TV nacional assistida por uma grande massa, com uma matéria exclusiva, contando sobre a marca e desfile das suas peças, porém a equipe tenta adiar um pouco para o mês de dezembro. Devido ao convite inesperado, novamente tudo se dá na correia, Imperalina Piedade da Silva, a Lina foi fundamental produzindo cada roupa, desde minissaia a vestido com flu-flu. Conquistando espaços de comunicação de massa, as ativistas dispõem da possibilidade de propagar não apenas sua marca, mas a causa ideológica, cultural e política das prostitutas. No entanto a repercussão da grife que reafirma a identidade das putas Davida, se assemelhando ao nome da famosa luxuosa multimarca paulistana Daslu criada em 1958, em alta nas manchetes de jornal do período devido a acusação de sonegação fiscal, subfaturamento na importação de mercadorias e contrabando envolvendo a sócia Eliana Tranchesi, presa pela Polícia Federal. A visibilidade da recém grife deu início imediato a dois movimentos opostos, a movimentação da equipe Daspu para conseguir de fato concretizar a marca, fazendo o projeto sair do imaginário, e da Daslu que não estava gostando das notícias associando uma grife de prostitutas ao nome da butique paulistana pois iria difamar sua imagem, por tanto se mobilizam rapidamente para impedir. No dia 28 de novembro, segunda-feira a Ong recebe uma notificação extrajudicial datada no dia 24 de novembro de 2005, que se  refere a brincadeira publicada no jornal Folha de São Paulo com o nome “Daslu x Daspu”, vista pela multimarcas milionária como uma forma de “sujar” sua imagem, por tanto ameaça processar a ONG caso o nome “Daspu”, não fosse trocado em dez dias, demonstrando grande ato de preconceito da sonegadora paulistana direcionado a categoria social aborda como marginais, que por outro lado, acabou ganhando mais repercussão midiática com o escândalo. No dia primeiro de dezembro, a mídia informa que a Daspu havia contratado um advogado para cuidar do caso e não desistiria do nome, já que a decisão de continuar teria derivado de centenas de mensagens diárias, com o apoio de mulheres da vida e aliados da causa, denominado por Goffman de “iguais” e “informados”, que se indignaram com a atitude tomada pela butique da alta burguesia paulistana Daslu, e a evidente posição da mídia que contribuiu discursivamente a seu favor gerando a chamada “batalha das grifes”.

A Daspu, como todo  empreendimento, precisava de publicidade para entrar e se manter no mercado, no caso da grife das prostitutas a mídia espontânea foi a grande aliada. No dia seguinte, quarta-feira, a marca tinha a esperada gravação para o programa “Fantástico” com um desfile exclusivo que contou com poucas peças confeccionadas pela única costureira da Ong que acompanhou os bastidores. As imagens do desfile foram produzidas no Arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro, com as modelos : Val Pereira, Jane Eloy, Maria Nilce e Juliana de Freitas. Demonstrando a afirmação da arte das putas em rede nacional e continuidade da marca, segundo Gabriela : “Quero deixar bem claro que a palavra DAS é uma palavra da língua portuguesa, não é de propriedade de ninguém. O PU é nosso, é da nossa profissão.”(LENZ, 2008. p.55)
Ao decorrer dos dias a cobertura midiática abordando a “batalha das grifes” só crescia, com notícia do “Jornal do Brasil” na coluna do Eric Nepomuceno no dia seis de dezembro, aborda de forma “crítica” o estigma jogado em cima dessas mulheres sem vergonha de ganhar a vida e caminhar na contramão da moral socialmente estabelecida. A reportagem da Folha de S.Paulo no dia onze de dezembro, na coluna da jornalista Mônica Bergamo, contextualiza o confronto jurídico entre as marcas, assunto que estava em alta no período e a construção da primeira coleção confeccionada para ser lançada em fevereiro, no entanto a Daspu já estava disponibilizando a venda de camisas pela internet, no site da marca.

Compreendendo o fenômeno da globalização, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa incorporados à vida em sociedade e a capacidade da difusão de ideias de maneira impactante, como vimos acima no caso Daslu x Daspu. Para Gramsci, a dominação  de um grupo exercida sobre as demais se estabelece de forma instável, possibilitando compreender o termo “lutas hegemônicas”, que seria a organização da luta de grupos excluídos socialmente se opondo e atingindo o poder, neste contexto se relaciona com a vitória da Daspu um projeto ligado a cultura, moda, arte e política. Desse modo, a mídia abrindo espaço para a divulgação do trabalho de grupos marginalizados, como a grife Daspu, é uma maneira de contribuir para uma maior visibilidade e divulgação em larga escala de grupos sociais como as prostitutas, denominado pela teoria goffmaniana como categoria de descrédito. A grife Daspu, que surpreendentemente surgiu na mídia e ganhou o apoio popular no conflito com a butique paulistana, possibilitou que esse grupo de mulheres ampliasse cada vez mais o espaço para expor suas questões e discutir sua posição de inferioridade na sociedade, se tornando mais que um símbolo comercial. Estas minorias de direitos, investem em narrativas que tem por objetivo, a desconstrução do imaginário hegemônico e de percepções sociais comprometidas com uma lógica elitista e excludente.
Diante de acontecimentos favoráveis para as dasputinhas, aproveita-se o finalzinho de dezembro, antes das datas comemorativas, para realizar o primeiro desfile da grife, com dez peças, que seria a prévia da coleção marcada para sair em março de 2006. Já o desfile acontece no dia 16 de dezembro, uma sexta-feira em praça pública, com autorização da prefeitura do Rio de Janeiro na Praça Tiradentes.
A grife Daspu, desde a sua primeira aparição obteve um grande espaço na mídia a nível mundial, tendo a oportunidade de divulgar não apenas seu trabalho, mas ocupar uma posição importante de visibilidade e combate ao preconceito em busca de direitos como o reconhecimento da prostituição como uma profissão legal.

Considerações finais:

No Brasil no ano de 2003, a regulamentação da prostituição foi apresentada como Projeto de Lei 98/2003, pelo ex-deputado federal do Rio de Janeiro, Fernando Gabeira pelo Partido Verde, porém este foi arquivado, surgindo no ano seguinte a PL 4244/2004, do ex-deputado Eduardo Valverde do Partido dos Trabalhadores, que também é arquivada. A pauta da regulamentação, voltou a ser apresentada no ano de 2012, através do ex-deputado Jean Wyllys do PSOL o Projeto de Lei 4211/2012, ficou conhecida como PL Gabriela Leite que contém a mesma finalidade dos projetos anteriormente apresentados. O Projeto, aborda a profissão para além do estigma, marginalização ou busca de direitos civis, ressaltando também a importância de distinguir a prostituição da exploração sexual, dando a possibilidade do Estado fiscalizar e combater a exploração sofrida por mulheres, jovens ou crianças. A exploração sexual consiste em atos como por exemplo, o não pagamento de serviços prestados voluntariamente, o indivíduo que é forçado a fazer todo e qualquer tipo de trabalho sexual independente da idade e o exercício da profissão por menores de dezoito anos, sendo enquadrado como abuso. Assim, a lei configura a exploração sexual como um ato criminoso, que deve ser averiguado e penalizado. Já o ofício da profissional do sexo, deve ser praticado de forma autônoma e voluntária, por indivíduo maior de idade, capaz psicologicamente e obtendo remuneração pelo seu serviço. A PL afirma que o intuito da regulamentação não é aumentar o número de profissionais, por outro lado busca a redução de riscos e preconceitos que carrega a atividade, além de afirmar direitos humanos, para um grupo marginalizado por uma falsa moralidade social.
O terceiro projeto de políticas públicas que reivindica a regulamentação e prevê direitos a longo prazo como a aposentadoria, se encontra atualmente arquivado. Este projeto de regulamentação criado pela Rede Brasileira de Prostitutas, a única rede em defesa das prostitutas neste contexto junto a assessoria do ex-deputado Jean Wyllys, divide opniões pois  no tempo presente existem outras redes de prostitutas a Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS) criada em 2015 e a Articulação Nacional de Profissionais do Sexo (ANPS) criada em 2016, que junto ao advento da internet tornou o debate mais amplo, questionando esse modelo de regulamentação que busca englobar todas as mulheres de diferentes classes e raça desconsiderando suas especificidades, algumas mulheres têm mais escolhas, outras tem menos escolhas. Assim, o debate sobre o que fazer com o trabalho sexual no Brasil deve ser assumido pelas prostitutas de forma mais direta.

Em 2011 o deputado e pastor João Campos do PSDB-GO apresentou o PL 377/11, que criminaliza o ato de pagar ou oferecer pagamento a algum indivíduo pela prestação de serviço de natureza sexual. O PL transita no Congresso Nacional até o momento, uma ameaça aos direitos das trabalhadoras. No entanto, a luta das profissionais continua diante da necessidade de serem reconhecidas como cidadãs, interlocutoras e intelectuais da sua própria história.
No tempo presente o movimento político fundado por Gabriela Leite em 1992 no Rio de Janeiro, foi nomeado “coletivo puta da vida” e atua nas mídias digitais com mais frequência desde 15 de julho de 2020 devido à crise sanitária e humanitária do novo COVID-19. O novo formato de organização nas mídias sociais instagram e lives no youtube é uma alternativa de continuar fomentando os debates que rodeiam as trabalhadoras sexuais cisgêneras e transgêneras de todo Brasil. A luta das mulheres da vida se mantém a 29 anos, contra o estigma e por condições melhores para a sua ocupação profissional.

Bibliografia :

Estigma – Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert. Data da Digitalização: 2004. Data Publicação Original: 1891.

“O termo “categoria” é perfeitamente abstrato – e pode ser aplicado a qualquer agregado, nesse caso a pessoas com um estigma particular. Grande parte daqueles que se incluem em determinada categoria de estigma podem-se referir à totalidade dos membros pelo termo “grupo” ou um equivalente, como “nós” ou “nossa gente”. Da mesma forma, os que estão fora da categoria podem designar os que estão dentro dela em termos grupais. (p.23)” GOFFMAN,‌ Erving.

LIMA, R. S. S.; TEIXEIRA, I. S. Ser mãe: o amor materno no discurso católico do século XIX. HORIZONTE-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 6, n. 12, p. 113-126, 2008.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I – A vontade de saber. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1994.

http://daspu.com.br/o-que-e/

LENZ, Flávio. “Daspu: A Moda sem Vergonha”. Coleção Tramas Urbanas da Editora AeroPlano, 2008.

GUIMARÃES, Carmen Dora., 1996. “Mais merece!”: O estigma da infecção sexual pelo HIV/AID sem mulheres. Revista de Estudos Feministas. p.297-318; 1996. Conferir:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16805/15396

Cartilha da campanha: “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”
http://www.aids.gov.br/sites/default/files/campanhas/2002/38289/cartilha_maria_sem_vergonha.pdf

Matéria digital. Folha de S.Paulo, na coluna da jornalista Mônica Bergamo: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1112200510.htm

Monasta, Attilio.  Antonio Gramsci / Atillio Monasta; tradução: Paolo Nosella. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.  154 p.: il. – (Coleção Educadores)  Inclui bibliografia.  ISBN 978-85-7019-554-8. 1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Educação – Pensadores – História. I. Título

Acesso ao projeto de Lei 93/2003 :

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=104691

PL 4244/2004 : https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/266197

https://www.instagram.com/coletivoputadavida/

Plínio Salgado: A formação do ideário do ideólogo chefe

 

Yuri da Silva Ribeiro Bonilha

Graduando do curso de Bacharelado em História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da UFF/Campos dos Goytacazes

Yuri da Silva Ribeiro Bonilha[i]

 

 

 

Resumo: No presente artigo procuro analisar como o pensamento de Plínio Salgado se forma nos seus anos pré-AIB. Para isso, analiso seus romances da década de 1920 e início da de 1930, e norteando minha explanação com a bibliografia acerca do tema. Ao fim, busco fazer a ponte entre esse ideário construído ao longo da década de 1920 com a fundação da AIB e alguns de seus preceitos.

 

Palavras-chave: Plínio Salgado, Modernismo, Integralismo.

Resumén: En presente artículo trato de analizar cómo el pensamento de Plínio Salgado se formó em sus años de pré-AIB. Para eso, analizo sus romances de la década de 1920 e princípios de la de 1930, y guiando mi explanación con la bibliografia sobre el tema. Al fin, trato de unir la ideología construída al largo de la década de 1920 con la fundación de la AIB e algunos de sus preceptos.

 

Palabras-clave: Plínio Salgado, Modernismo, Integralismo.

 

 

 

O Integralismo foi um dos principais movimentos de massas da história do Brasil, tendo por volta de 800 mil filiados[ii] durante a década de 1930 e espalhados em células por todo o território nacional. É de conhecimento geral que Plínio Salgado foi o fundador, chefe e principal divulgador do movimento que veio a se chamar Ação Integralista Brasileira, a AIB, considerado o primeiro partido de caráter nacional. Apesar de bastante tentadora a análise da atuação política do movimento e seus impactos na sociedade, o presente artigo tem como força motivadora outro aspecto: a formação do ideário de Plínio Salgado.

Partimos da premissa que para compreender o concreto – o movimento, neste caso – devemos compreender primeiramente a teoria, a ideia. Ou melhor, o ideal a ser alcançado. A palavra ideal é uma das chaves para a compreensão do pensamento do Chefe integralista, mas voltaremos nesse ponto mais adiante. Sendo assim, nosso objetivo aqui é analisar como se construiu o pensamento de Plínio Salgado, passando pelo início de sua vida como escritor, sua fase modernista e os primeiros momentos já na frente da AIB.

Antes de vir a ser reconhecido como um dos modernistas da década de 1920, presente na Semana de Arte Moderna de 1922, Plínio, na sua juventude, escreveu uma série de poemas no estilo parnasiano[iii], como atesta o historiador Rodrigo Santos de Oliveira. Apesar de ter escrito poemas nesta métrica, não legou grandes obras a este movimento.

Foi na década de 20 e 30 que Salgado escreveu suas principais obras modernistas, como O Estrangeiro, O Esperado, O Cavaleiro de Itararé e O Curupira e o Carão. Este último em parceria com Menotti del Pichia e Cassiano Ricardo. Todas estas obras, um tanto quanto românticas, terão nelas contidas diversos conceitos e ideais que Plínio Salgado mais tarde sintetizaria como o ideário integralista. Procurarei analisar esses conceitos ao longo deste artigo.

Plínio tinha a ideia que o modernismo era um movimento em construção que necessitava de diretrizes para nortear seu desenvolvimento. As muitas correntes que circulavam dentro do movimento também desagradavam o escritor, já que para ele deveria existir uma coesão maior de ideias, norteadas principalmente por ideais patrióticos. Plínio com a Coleção Verde-amarela[iv] irá defender uma linha de atuação nacionalista em contraponto, sobretudo, a Oswald de Andrade, que defendia a antropofagia cultural, isto é, a absorção de valores, movimentos e escolas estrangeiras e a sua aglutinação com as características culturais brasileiras. Plínio se opõe pois para ele a arte brasileira deveria ser edificada utilizando-se dos valores culturais do povo brasileiro. Ele escreve em oposição a Oswald Andrade e seu Movimento Antropofágico o seguinte trecho extraído do livro O Curupira e o Carão de 1927:

Em três correntes dividiu-se o grande rio [modernismo]: a de Mário de Andrade com, os extremistas; a do “Pau-Brasil” importado da França por Villagaignon e lavrado por Oswald de Andrade e a nossa Verdeamarela, que quer conter, vivas, a alma e a paisagem da Pátria. Se um espírito comum é o Deus tutelar das três igrejas, cada uma criou seu Evangelho e seu rito. A nossa está para a de Mario como a igreja católica para a grega ortodoxa. Oswald é o heresiarca, quase huguenote, a quem reservamos uma noite de São Bartolomeu… (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927: 14-15 apud OLIVEIRA, 2015, p.339).

 

 

A estreita relação entre política e arte estará presente na mentalidade de Plínio Salgado e isso refletirá a sua obra como um todo. Pegarei como exemplo duas fontes duas das principais obras do modernista: O Estrangeiro (1926) e O Esperado (1931).

Ambos os livros citados acima fazem parte de uma trilogia de romances que seguem nesta ordem cronológica e tem como terceiro e último componente a obra O Cavaleiro de Itararé (1933). Não adentraremos nesta obra no presente artigo, portanto, retomemos ao primeiro livro da trilogia. Mas antes de retornar é importante frisar que este trabalho não visa fazer uma resenha ou crítica literária, tampouco uma sinopse. Algumas passagens e personagens da obra serão destacados com o intuito único de demonstrar a formação do pensamento de seu autor. O foco nestes escritos são mostrar como o pensamento de Plínio Salgado e suas conceituações centrais já estavam presentes em suas obras pré-carreira política e pré-AIB.

O Estrangeiro é como o próprio Plínio Salgado disse certa vez, “o […] primeiro manifesto integralista”[v]. Nesta obra observamos alguns conceitos que caminharão com Plínio Salgado a partir de então, e consequentemente, até a fundação da AIB. O primeiro, e que tem relação com todos os outros, é a dualística entre sertão e litoral.

Para Salgado o litoral era o que representava o que tinha de mais decadente na sociedade e representava a verdadeira ameaça ao Brasil verdadeiro, segundo seu pensamento. O litoral era a representação alegórica do comunismo, do liberalismo, do cosmopolitismo, da mentalidade secular, do urbanismo, em suma, de tudo que Plínio Salgado declarava ser – pelas palavras do professor Juvêncio, uma dos personagens principais do livro – a ruína do Brasil. Por sua vez, o sertão era revestido com uma áurea angelical. Era aquilo que existia de mais essencial para a construção de um nacionalismo autêntico. O interior rural, católico e caboclo[vi] era na visão de Salgado o que o Brasil era e estava deixando de ser por conta da invasão do “litoral” sobre o “sertão”. Colega de Plínio Salgado, o escritor Cassiano Ricardo define muito bem essa dicotomia com palavras que poderiam ser encontradas na boca ou nas páginas do próprio Salgado:

Dentro de nossa originalidade como povo livre é que nós da taba verdeamarela procurando a melhor forma de expressão para revelar o Brasil. Os outros também, não há dúvida. Mas há uma diferença enorme de processos e de atitudes. […] O caso, entretanto, é que eles, a começar pelo começo estão errados: olham o nosso país visto do litoral; nós procuramos olhá-lo, visto do centro. Quando querem descobrir o Brasil, metem-se a procurá-lo nos livros (os que não foram à Europa) ou vão achá-lo na “rue de la Paix” (os que passeiam a sensibilidade displicente a bordo dos transatlânticos). Ao passo que nós, quando queremos certificar-nos da nossa existência e da nossa originalidade, enveredamos pelo país a dentro. […] Os nossos adversários são adeptos da cultura importada e das receitas de inteligência: são dadaístas, futuristas, expressionistas, cubistas, impressionistas, principalmente francesistas; nós não. O que propugnamos é a criação de uma cultura nossa, viva e intelectual. Americana[vii] e brasileirista (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927: 47-48).

 

Atrelado ao embate “sertão” x “litoral” entra a questão do imigrante. Para Plínio Salgado o imigrante não era um mal por si só. O escritor reconhecia a importância dos imigrantes para a formação da brasilidade[viii], afinal, para ele, a raça brasileira era formada pela mistura do branco português, do índio nativo e do negro cativo. Para Salgado o imigrante era considerado até mesmo peça fundamental para o crescimento do Brasil. O que Salgado não admitia era o imigrante que não se adaptava a terra e não deixava-se assimilar aos costumes brasileiros, pois para ele, este imigrante estava preso a sua nacionalidade e/ou cultura de origem e entravava o desenvolvimento do brasileiro enquanto povo. Vale lembrar que Plínio Salgado pensava o povo brasileiro como um “Povo Criança”, ou seja, ainda em maturação. Sobre a questão da assimilação Plínio Salgado discorre em um discurso na Radio Educadora Paulista posteriormente publicado no Correio Brasiliense em 1934, como atesta Leandro de Pereira Gonçalves:

As correntes imigratórias, que nos procuram, terão de renunciar o Passado, condição que foi imposta aos nossos avós, quando pisaram a terra americana. E nós devemos acolhê-las, se nos sujeitarmos a quaisquer imposições que tragam o cunho de velhos prejuízos europeus, ou que tenham em mira perpetuar, dentro de nossa Pátria, feições nacionais estrangeiras: Assim, nosso espírito nacional deve estar alerta, para que um cosmopolitismo nocivo não venha retardar a palavra que o Brasil compete dizer um dia ao mundo. (SALGADO, 1995, p. 89, apud, MATOS, GONÇALVES, 2014, p.174).

 

Outra citação do líder integralista importante de ser trazida a tona é a que ele faz uma explanação acerca dos judeus. Porém, de forma psicanalítica, o que nos interessa nesta citação é observar o que está nas entrelinhas. A partir desta valiosa minucia é possível perceber a lógica assimilativa de Plínio Salgado já em tempos de AIB:

Não sustentamos preconceitos de raça; pelo contrário, afirmamos ser o povo e a raça brasileiros tão superiores como quaisquer outros. Em relação ao judeu, não nutrimos contra essa raça nenhuma prevenção. Tanto que desejamos vê-la em pé de igualdade com as demais raças, isto é, misturando-se, pelo casamento, com os cristãos. Como estes não são intransigentes nesse sentido, desejamos que tal inferioridade não subsista nos judeus porque uma raça inteligente não deve continuar a manter preconceitos bárbaros. (SALGADO, 1936)

Quando Salgado diz que deseja ver a raça judia em pé de igualdade com as outras raças e logo em seguida condiciona a via desta igualdade ser através do casamento com cristãos. É exatamente a mesma lógica em relação aos imigrantes. Desta forma o judeu deveria abdicar de sua etnia e crença e adaptar-se a lógica cristã, sendo então assimilado.

Ainda dentro da visão sobre o imigrante, para Plínio Salgado o comunismo também era visto como um problema. O comunista era visto como o estrangeiro que vem ao Brasil, reluta em ser assimilado e ainda pior (para Salgado), tenta impor valores internacionalistas alienígenas aos brasileiros. Um de seus personagens principais em O Estrangeiro se chama Ivan, um comunista russo que vem ao Brasil, não se adapta e, consequentemente, tem um final trágico: suicida-se.

Para desfechar a análise sobre O Estrangeiro julgo ser interessante trazer um trecho de um escrito de Salgado intitulado Cartas aos Camisas-Verdes aonde ele relembra de quando escreveu o livro e de suas inspirações. Essas lembranças são uma boa amarração do que já foi discutido até aqui:

[…] Imaginei, nessa época (1922), a figura central do meu romance, o professor Juvêncio e o seu contraste, Ivan, o intelectual que não compreendeu a Terra, o estrangeiro de todos os países, o desenraizado sem Pátria, que tanto pode ser um russo como um brasileiro de portas de livrarias. Tudo o que escrevi nas páginas daquele livro, que eu considero o primeiro manifesto integralista, eu senti nesta parte do sertão da minha terra. (SALGADO, 1935, p. 24-25).

 

Neste trecho podemos perceber a dualidade sertão, na figura do professor Juvêncio (alter ego de Plínio Salgado) e litoral, na figura de Ivan, o comunista cosmopolita, materialista e alheio a cultura tradicional[ix] brasileira; e a questão acerca do imigrante e sua assimilação. No final, Plínio confirma a nossa análise ao dizer “Tudo o que escrevi nas páginas daquele livro, que eu considero o primeiro manifesto integralista”, pois no romance O Estrangeiro é possível perceber diversos conceitos e análises que estarão presentes na fundação da AIB em 1932.

Partindo para a segunda obra da trilogia Crônicas da Vida Brasileira, O Esperado, lançado em 1931, logo após a Revolução de 1930 e de Plínio Salgado voltar da Europa, é uma obra aonde também podemos perceber as críticas do autor frente as incertezas e instabilidades da sociedade. O mundo de O Esperado é o de uma sociedade caótica, composta por diversos indivíduos – daí o número grande de personagens na trama – aonde não há um personagem central, mas uma massa de pessoas que tem suas vidas interferidas por conta de um grande projeto que é discutido para ser votado que irá beneficiar as ambições de um capitalista inglês.

A angústia e a incerteza causadas por esse projeto, que de forma indireta acaba por interferir na vida de todos é percebida logo de cara, e não por acaso, como atesta Robson dos Santos, o título da primeira parte do livro chama-se “Que Angustia É Essa? ” e tem como epígrafe a seguinte frase: “Há um rumor de angústias e de gemidos, crescendo em torno dos arranha-céus…”. Mas de onde vem essa angústia e incerteza no coração da cidade grande? A resposta estava também presente em O Estrangeiro.

A aversão de Plínio Salgado ao capitalismo, ao cosmopolitismo e a todo o resto que já fora citado anteriormente estará presente também em O Esperado. Apesar do autor reforçar suas críticas, ele o faz por outra perspectiva. Em O Esperado, Plínio Salgado dissocia a imagem do imigrante ao comunista apátrida, já que neste romance, o problema do imigrante não assimilado se dá também com personagens sírios, italianos, alemães e até mesmo negros brasileiros que adotavam costumes estadunidenses.

“Multidão indo e vindo, no dia azul, na rua Quinze embandeirada em festa. Um soldado que vai, um padre que vem. Dois sírios conversam na esquina: concordatas com desvios e acordos forçados. Bigodes e relógios de portugueses, rostos massa de tomate de italianos. No trote buzinado um ford, um chauffeur japonês sacode um alemão. Negrinhas de meias de seda nos braços palm-beach de zumbis endomingados desfilando no cake-walke cosmopolita das estilizações yankes do Zanzibar.”. (SALGADO, 1981, p.21).

A dualística “sertão x litoral” presente em O Estrangeiro também se faz presente aqui, mas de forma também diferente. O avanço do litoral sobre o sertão pode ser interpretado ao longo da segunda parte do livro através da relação dos personagens Edmundo Milhomens e Camurça, com o senador corrupto Avelino Prazeres. Os dois primeiros se veem numa situação econômica difícil e acabam tendo que aceitar emprego oferecido pelo senador Prazeres, mesmo sabendo das desonestidades por trás das ações do cargo. Resumidamente Milhomens e Camurça são humilhados e manipulados pelo senador que os manda para o interior para conseguirem assegurar os interesses de Prazeres, que visa expandir suas propriedades. Percebe-se então como o litoral, na figura do senador, controla e se apossa do sertão, na figura de seus empregados, visando a exploração do primeiro para com o segundo, já que os interesses econômicos do senador são o norteador de suas ações. Podemos concluir que Salgado, assim, compreende o capital e o materialismo como destruidores da pátria autêntica, já que essa pátria está nas mãos dos interesses de políticos corruptos aliançados com investidores estrangeiros.

Depois de uma breve explanação da trajetória literária de Plínio Salgado, e dos conceitos chaves de seus dois primeiros romances na sua importante trilogia, podemos perceber as raízes de certos pontos da doutrina integralista.

Eliana Regina D. Dutra definiu bem a concepção de Plínio Salgado acerca de nação e povo, e isso é importante a essa altura. A autora diz que Salgado compreendia a nação como a consciência dos limites entre uma nação e outra. Fica claro, portanto, porque Salgado em seus romances sempre utilizava o imigrante como contraponto ao povo brasileiro e, em consequência, como gancho para exaltar a cultura e a tradição brasileira em face ao outro. A nação não poderia existir numa sociedade inconsciente do seu próprio ser. Assim, ao fundar a AIB em 1932, Plínio Salgado irá escrever, um ano depois, a seguinte frase em seu livro ‘O Que é o Integralismo’: “O Integralismo não é um partido: é um movimento. É uma atitude nacional. É um despertar de consciências.
É a marcha gloriosa de um Povo.” (SALGADO, 1933, p.77). Temos nesta frase a correlação entre povo e nação que Salgado idealizara: um povo nacionalmente consciente e que se move em direção a um objetivo áureo e bem definido.

Outro ponto de ligação importante e complementar envolvendo a nação também se encontra entre a ideologia e a obra pliniana. O caos, a melancolia e a desordem que tomam conta de seus romances está intimamente ligada com a falta de projeto nacional. Em ‘O Esperado’, por exemplo, não há um grande projeto nacional que norteia o país, mas apenas personagens vivendo sob o caos urbano. Não há o despertar de consciências em seus personagens. Se para Plínio Salgado essa desordem[x] que permeia a urbe impossibilita um projeto nacional, este, por sua vez, defenderá a ordem como fator indispensável para se pensar a nação, como fica claro em ‘A Doutrina do Sigma’ quando Salgado nomeia 8 aspectos de ordens fundamentais para conter a ebulição social que fragmenta a sociedade em pequenos nichos de interesses individuais ou de pequenos grupos, impossibilitando um interesse maior, o nacional.

Como última análise, percebemos a fundamental importância de se compreender a literatura de Plínio Salgado para se compreender a sua atuação política. Os romances pré-AIB contém explicitamente ou implicitamente preceitos e alegorias fundamentais para o ideário do autor, e que não surgiram somente em 1932, mas fora um processo paulatino de reflexão e construção ideológica, motivado pelo contato com as transformações da sociedade do tempo presente do autor e da análise e concepção romântica do passado e do povo brasileiro.

 

 

Bibliografia:

 

CARNEIRO, Marcia Regina da Silva Ramos. Participar pela direita – o novo integralismo e o direito de defender a negação de direitos numa outra “democracia. Anais do Seminário Internacional de História do Tempo Presente. Florianópolis: UDESC; ANPUH-SC; PPGH, 2011.

DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Entre a melancolia e a exaltação: povo e nação na obra de Plínio Salgado. Revista Brasileira de História, vol. 19, núm. 37, setembro, 1999, p.0 Associação Nacional de História São Paulo, Brasil.

GONÇALVES, Leandro Pereira. A formação do Integralismo brasileiro e a literatura de Plínio Salgado. Albuquerque: revista de História, Campo Grande, MS, v. 4 n. 8 p. 49-67, jul./dez. 2012.

OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. A produção literária de Plínio Salgado e suas influências no integralismo. Historiae, v.6, n.1, Dossiê História e Cultura. Rio Grande, 2015.

MATOS, Maria Izilda Santos de, GONÇALVES, Leandro Pereira. O ESTRANGEIRO na obra de Plínio Salgado: matrizes, representações, apropriações e propostas. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 10, n. 1, p. 157-182, janeiro-junho, 2014.

SANTOS, Robson dos.. A estética política – literatura e sociedade em O Esperado, de Plínio Salgado. Revista Urutágua (Online), v. 12, p. 01-09, 2007.

 

 

 

Fontes:

 

SALGADO. Plínio. “O que é o Integralismo” (1933), 4ª edição, in “Obras completas”, 2ª edição, volume 9, São Paulo, Editora das Américas, 1959, pp. 77.

SALGADO, Plínio. A Doutrina do Sigma, Editora Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1934.

SALGADO, Plínio. O Esperado, 5ª edição, São Paulo, Editora Voz do Oeste

, Brasília, INL, 1981.

 

[i] Graduando do curso de bacharelado em História da UFF campus Campos dos Goytacazes.

[ii] Dados segundo a historiadora Márcia Carneiro no artigo Participar pela direita – o novo integralismo e o direito de defender a negação de direitos numa outra “democracia”. Publicado em 2011 pelos Anais da I Seminário Internacional História do Tempo Presente. 

[iii] Incentivado por Menotti del Pichia a largar a poesia parnasiana e começar a escrever prosa.

[iv] Em conjunto com Menotti del Pichia e Cassiano Ricardo.

[v] SALGADO, 1935.

[vi] Vemos aqui a oposição campo x cidade, mas também a demarcação de duas características que o nacionalismo brasileiro deveria ser: católico e caboclo.

[vii] Americana aqui não tem o sentido contemporâneo de referência aos Estados Unidos. No significado da década 1920 quer dizer referente ao continente americano.

[viii] A confluência das três raças (indígena, branca e negra) que dariam origem a raça brasileira, segundo a narrativa integralista. Plínio Salgado escreve sobre a confluência das raças no seu livro A Quarta Humanidade, “Nós somos um povo que começou a existir desde a morte de todos os preconceitos, quando as três raças se fundiram, irmanadas, no exercito selvagem de negros, de índios e de brancos, na aventura guerreira de Camarão, Negreiros e Henrique Dias.”(SALGADO, 1934: p.138).

[ix] Tradicional na concepção de Plínio Salgado sobre o que era a cultura brasileira. Podemos encontrar uma definição do que é Tradição para o autor em Compêndio de instrução moral e cívica de 1968 quando ele diz: “a garantia da sustentação dos caracteres essenciais da psicologia de um Povo, da manutenção de suas virtudes e das aspirações constantes do seu progresso”. (SALGADO, Plínio, 1968, pp.64-66 apud DUTRA, Eliana Regina Duarte, 1999, p.7).

[x] Não apenas a desordem pública, mas também a desordem moral, espiritual, familiar, militar, política e etc.

O COLETIVO RAP DA PONTE COMO FOMENTO DE RESISTÊNCIA E VETOR DE CIDADANIA DA JUVENTUDE DE MACAÉ, NORTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 

 

Juliana Simões de Lima

Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR), Campos dos Goytacazes – RJ (2014-2018). Atuou como bolsista no Projeto de Iniciação à Docência da CAPES (PIBID) com o projeto Memórias Locais de Campos dos Goytacazes pela UFF Campos (2015-2017). Também foi bolsista no período de 2018 à 2019 do Projeto de Residência Pedagógica pela CAPES (PIRP) residido na escola C.E Dr. Thiers Cardoso. Atuou como secretária da cultura no Centro Acadêmico de História na Universidade Federal Fluminense no período da gestão Carlos Marighella em 2015. Atualmente é aluna na Universidade Federal Fluminense (UFF) – Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR), Campos dos Goytacazes (RJ) como bacharelanda em História, e do curso de pós graduaçao em Geografia pela mesma universidade.

 

O COLETIVO RAP DA PONTE COMO FOMENTO DE RESISTÊNCIA E VETOR DE CIDADANIA DA JUVENTUDE DE MACAÉ, NORTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Resumo

Este artigo busca analisar como o movimento cultural Rap da Ponte em Macaé/RJ, se apresenta enquanto vetor de cidadania e experiência social para a juventude periférica local. Assim, o objetivo principal é pensar o coletivo para além de um fenômeno de resistência, entendendo-o como um instrumento de contribuição para formação de um pensamento crítico e de representação regional e cidadania cultural. Assim, espera-se identificar o papel do coletivo na disputa de territórios, no questionamento das desigualdades urbanas e na busca de uma política cultural inclusiva na cidade de Macaé/RJ.

Palavras chave: Coletivo – Território – Políticas Públicas – Desenvolvimento Regional

 

Atualmente, os contextos socioculturais e políticos se apresentam por meio de projetos ambiciosos, um capitalismo voraz, onde cada dia mais as formas de lucro são inclinadas à cultura, usando-a como objeto de trocas e políticas de clientelismo. Como apresenta Ribeiro (2012, p. 4), “se por um lado apontam para um companheiro fraterno, ao mesmo tempo sinalizam para expansão de mercados, sempre enxergando a cultura como instrumento de trocas”.

Nesse contexto, a autora aborda a necessidade de um planejamento participativo, o que vai de encontro com a necessidade de repensar toda estrutura política de maneira que seja mais inclusiva. Dessa maneira, segundo a autora: “Trata também da necessidade de disputar a noção de território e criar metodologias que compartilhem com o entendimento da experiência social”. Dessa maneira, Corrêa (2007), apresenta a análise da escala intra-urbana, que pode ser vista de dois modos, sendo: “divisão econômica do espaço e, de outro, a divisão social do espaço”, onde processos, formas-conteúdo e funções influenciarão na diferenciação deste espaço para diferentes grupos sociais.

Nessa perspectiva, a literatura relata a centralidade do território para a reflexão política e, logo, estratégica (SANTOS, 1999). Para entender a dinâmica do território na cidade, será utilizada os aportes teóricos de Santos (1999) pensando que é “na densidade do território, e através da conjugação entre espaço banal (SEVALHO, 2012, p. 10) e cotidiano, que se afirma o homem lento”. Assim, para Santos (1999) o território é o espaço usado, onde desenvolvem-se relações humanas de identidade, vizinhança, solidariedade. O “homem lento” é personagem elaborado por Santos, (1994) em sua discussão sobre técnica, espaço e tempo. Personifica o homem comum, pobre, do lugar, que, no ambiente das metrópoles emergentes, resiste às forças verticais, externas, da globalização (SEVALHO, 2012, p. 10).

Na visão de Chauí (1995, p.74.), “o autoritarismo não é simplesmente uma forma de governo, mas a estrutura da própria sociedade brasileira.”, onde é preciso aceitar um novo desafio, entendendo a necessidade de mudança estrutural completa, nas formas de agir e pensar a cultura política, priorizando fundamentalmente a cidadania cultural. Entende-se, desta forma, que é preciso superar essa estrutura política a qual a autora se refere.

Em diálogo com Chauí, Ribeiro (2012) diz ser necessário uma nova cartografia da ação social, que valorize os contextos da vida de cada indivíduo, com suas experiências particulares e subjetividades. O que se pretende dessa cartografia e outras cartografias dos territórios usados, é de que maneira a resistência ao apagamento da vida de relações, o qual cada vez mais se faz de forma dominante, hegemônica se refletem nas relações entre a sociedade e o Estado. Assim, os contextos, a vida de relações que as novas cartografias devem valorizar, é o próprio espaço. Deve-se valorizar a experiência social, traçar realmente a transformação do território em território usado, território praticado, território experienciado (RIBEIRO, 2012, p. 10).

Neste sentido, Corrêa (2007), aborda sobre a necessidade de se pensar em uma escala conceitual e cartográfica que abarque a complexidade da diferenciação sócio-espacial ocorrida nas relações, a exemplo do Coletivo Rap da Ponte, apresentado nesta pesquisa.

O início desse projeto se ampara na análise das relações socioculturais e territoriais do movimento Rap na cidade de Macaé, situada na Região Norte do estado do Rio de Janeiro. Os estudos possuem como ponto de partida a interpretação de como o coletivo Rap da Ponte, atua como vetor de cidadania, instrumento no processo de resistência, ressignificação de territórios e na busca de nova cultura política para juventude macaense, que seja mais inclusiva e valorize as identidades e características individuais.

De acordo com Ribeiro (2012) a necessidade da disputa de territórios (re) organiza os espaços e impõem dinâmicas distintas a cada grupo social. Nesse sentido, Chauí (1995) também traz contribuições que discute esse contexto quando aborda a resistência do “homem lento” (SEVALHO, 2012, p. 10) frente ao processo de globalização em curso. Assim, essas perspectivas, nos ajudam a perceber a necessidade da busca de uma nova cultura política, que deve ir de encontro a essa disputa de territórios, com a perspectiva de romper com a estrutura política vigente que se mostra excludente e sectária, entendendo o problema como algo estrutural.

Na visão de Souza (1997), não há como negar a manifestação que os sujeitos terão sobre a cidade, ao apresentarem técnicas de resistência a uma organização espacial hegemônica que ignora a sensibilidade, aqui podendo ser entendida como a arte do Hip-hop na cidade de Macaé.

Desde seu início, o Hip-hop traz consigo características de ser um movimento politizado e de protesto, tornando-se porta voz dos anseios das classes desfavorecidas e ferramenta de manifestação política e social, seja em Kingston (capital da Jamaica) nos anos 1960, no Bronx (bairro de Nova York) dos anos 1980, ou em Macaé atualmente. Podendo ser reconhecido como o que Haesbaert (1999, p. 21-22) chama de diversidade territorial ao possuir uma relação com o “particular-geral e o singular-universal” proposto pela renovação da geografia regional ao buscar “evidenciar a capacidade dos grupos humanos de recriar espaços múltiplos de sociabilidade”. Mesmo sem uma precisão histórica, de como e onde esse movimento começou, segundo Souza (2004) pode-se demarcar seu início na imigração de jamaicanos de Kingston para os Estados Unidos da América. Para o autor, isto se deu em razão que já no início da década de 1970, muitos jamaicanos, em sua maioria jovens, emigraram para os EUA devido a uma crise econômica e social que se abateu sobre a ilha de Kingston. Percebe-se, nesse sentido, que o Hip-hop desde seu início passou a ser entendido como um movimento social, que por meio das suas manifestações expressa toda sua insatisfação de forma incisiva.

O início do Hip-hop no Brasil, também se desenvolveu em um cenário de instabilidade política e desigualdade socioeconômica. Como mostra Herschmann (2000), este movimento chegou ao país por volta de 1980 em meio a ditadura militar. Foi um período de forte crise financeira e política. O autor, ainda ressalta, que o inchaço nos espaços urbanos da época acarretava o surgimento de diversas periferias.

Depois de quatro décadas do surgimento do Hip-hop, o movimento mantém um caráter de luta na busca de igualdade através da cultura, onde percebe-se nitidamente o questionamento das desigualdades urbanas presentes nas ações executadas por seus agentes. Para Haesbaert (1999, p. 23) é de extrema importância a valorização dos aspectos culturais, assim como dos naturais, para se entender a “desigualdade-diferença e globalização-fragmentação através das relações global-local”.

Essa discussão se vincula diretamente ao contexto da “Geografia imaginada” abordada por Massey (2002) que apresenta o desafio e a importância de considerar o imaginário e a consciência ativa dos indivíduos. Assim, o movimento Rap da Ponte se insere nesse contexto, à medida que, sua forma de representação possibilita visibilidade ao imaginário do grupo.

Um diálogo também é possível de ser realizado com Souza (1997), ao indicar que espaços como o que o movimento do Hip-hop podem gerar são possíveis de serem entendidos como processos de convivialidade, ao instituírem territórios e redes de resistência contra a falta de liberdade e a desigualdade que a organização da cidade moderna coloca para seus habitantes.

A área delimitada para esta pesquisa é a cidade de Macaé no Norte do estado do Rio de Janeiro, onde se buscará entender, o coletivo Rap da Ponte (SOUZA, 2018) como um movimento de expressão urbano cultural, tendo como uma de suas características a luta pela cultura e pelos direitos político-sociais da juventude macaense.

Indo de uma vila de pescadores à capital do petróleo, o município de Macaé/RJ passou por um processo de desenvolvimento urbano desordenado. Para Souza (2018, p. 157), esse período “abriu brechas para a emergência da ideologia proposta pelo movimento Hip-hop porque se tratava de resistência territorial juvenil, onde os jovens periféricos reivindicam o direito à cidade e denunciam os casos de exclusão social existentes”

Sendo assim, a cidade de Macaé, pode ser usada como um claro exemplo do cenário de abandono de políticas públicas por parte do Estado. Portanto, pretende-se compreender de que forma a ausência de uma política cultural inclusiva impossibilita diversas ações do coletivo Rap da Ponte e como esse movimento supera as adversidades ressignificando os espaços, entendendo que desde seu início se propõe a um debate focado na cidadania, utilizando o Hip-hop como uma expressão artística, além de ferramenta de empoderamento, fazendo com que muitos jovens se percebam como sujeitos culturais e políticos, escritores da sua própria história.

O coletivo, segundo entrevistas prévias com os idealizadores, surgiu no ano de 2014. De acordo com a descrição do evento, presente em redes sociais, o coletivo o Rap da Ponte, já realizou 70 edições de ações culturais dessa magnitude, sendo 15 na Ponte da Barra e as demais no Parque da Cidade. O principal objetivo do coletivo, segundo diálogos  estabelecidos com os próprios integrantes é “promover inclusão social por meio de ações artísticas e culturais e discutir políticas públicas de arte e cultura, também como formas de ocupação e uso do espaço público, como as praças, parques, jardins, escolas, espaços universitários, orlas e de equipamentos públicos de cultura, como os teatros, museus, bibliotecas, em especial espaços e equipamentos inseridos em áreas de periferias urbanas de cidades pequenas e médias”.

Segundo Rodrigues (2015), o movimento Hip-hop atua como instrumento de cidadania cultural. Entende-se o mesmo como ferramenta de ativismo político-cultural urbano, o que caracteriza o movimento como forma de representação integrando política, cultura e cidadania.

Assim, questiona-se como o coletivo Rap da Ponte possui um caráter político social, sendo permeado por denúncias e protestos em relação às condições culturais e socioeconômicas de seus atores. Entendendo o Hip-hop como uma ferramenta política que vai de contraponto às ideias conservadoras. Nesse contexto, inicialmente, apresenta-se o questionamento central: como o movimento Rap da Ponte se mostra uma ferramenta de resistência, vetor de cidadania e ressignificação do território da cidade de Macaé/RJ, sendo um instrumento primordial na ocupação dos lugares, criando um ambiente passível à sociabilidade? Dessa maneira, é fundamental entender a importância de se pesquisar assuntos que influenciam diretamente a realidade cotidiana, destacando a viabilidade de acesso às fontes de vivência com os entrevistados.

Dessa maneira, um dos fatores que motivaram o desenvolvimento desta pesquisa é perceber a importância de entender a história do lugar a partir da memória coletiva, sendo portanto um patrimônio da sociedade, também levando em consideração que mesmo ignorados pelo setor público, o coletivo Rap da Ponte através da sua contribuição na cultura regional, faz com que a juventude se sinta mais inserida como sujeitos culturais pertencentes e passíveis de narrar a própria história.

Contudo, objetiva-se contribuir para estudos sobre a relação da memória coletiva da cidade de Macaé/RJ e do coletivo Rap da Ponte, com a perspectiva de que esse movimento faz parte do patrimônio da cidade, além de entender sua importância na formação de um pensamento crítico para juventude Macaense.

 

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