EVA E AS UVAS

Vendo o rubro e rútilo cacho de uvas lá no alto, ela chegou à conclusão de que seu nome deveria ser Eva, porque nas velhas cartilhas estava escrito que Eva viu a uva. Também concluiu que era uma raposa, pois ela se pega num fingido desdém pelas uvas, fora do alcance de seus saltos, dizendo que estão verdes, matreiramente, conforme as narrativas, nas quais a raposa é sempre matreira.

E devo estar numa fábula, ela pensou, pois só nas fábulas as raposas gostam de uvas. E não é que, de acordo com as escrituras, ela está mesmo buscando um meio de alcançar aquelas uvas, enquanto finge dá-las por perdidas, dar-se por vencida, bater em retirada?

Como nas fábulas os animais conversam, Eva encomenda à aranha uma bela teia que, no primeiro teste, não resiste ao peso, e eis nossa raposa de volta ao chão e ao encenado desprezo pelas uvas – arre! – verdes. Pouco depois, Eva pede a um roedor que lhe faça uma espécie de escada ou de pirâmide até o desejado cacho, mas o dentuço lhe passa um sermão sobre desmatamento e sobre o manejo sustentável da floresta preservada.

A matreira não desiste. Sabe, porém, que não pode contar com a ajuda do macaco, que vai comer o cacho todo sozinho se o mostrar a ele; pensa que o urubu vai se vingar dela por causa daquele queijo; tem certeza de que as uvas estariam já perdidas, quando os cupins acabassem de lhe construir um pedestal; quanto ao rei do terreiro, nem pensar, pois a raposa (diz a voz do povo) treme diante do galo.

“Fox and the Grapes” by Redd Walitzki

Ora, pensa Eva, se estou numa fábula, sou fruto da imaginação de alguém que, por ser um artista, me fez assim arteira, que me fez tão fabulosa por que é um fabulista. Quem, senão ele, terá engenho e arte para me ajudar? Mas como encontrar meu criador? Elementar, disse o sabujo, o Sherlock da floresta: onde um autor deixa rastros e impressões digitais, senão nas linhas e entrelinhas de sua narrativa?

Mãos à obra, debaixo de cada palavra ela descobre camadas de línguas vivas e mortas, vê cada letra lançar suas raízes por estratos de formas hieroglíficas. Entre as palavras legíveis, ela topou com uma que a deixou intrigada: palimpsesto. Sua história parecia ser antiga e interminável.

Por fim, foram surgindo nomes de seus possíveis autores, em lugares e tempos diferentes, que ela foi anotando, desanimada: Aftônio, Da Vinci, Esopo, La Fontaine, Lobato… Copiando tudo aqui, isso vira uma lista telefônica. E, se for, haja créditos pra tantas ligações. Então ela percebe que vive num labirinto de nomes, que seu corpo, a floresta com os outros bichos e o inacessível cacho de uvas são figuras de um jogo de signos.

– Ah, diz a matreira, quer dizer que, para preencher o espaço entre mim e as uvas, basta compor uma ponte de significantes, uma esteira de significados, uma rede de sonhos algorítmicos?

-Desde os primeiro poetas, no paraíso, passando pelos arquitetos da Torre de Babel, até os engenheiros das aeronaves, o mundo todo vem buscando isso – fala a coruja, do alto de seu galho e de sua sabedoria.

-Preciso agir rápido, – murmura Eva – a concorrência é grande!

-E pode contar comigo, minha querida, – sibila a cobra – contorcendo-se para formar a letra capitular de uma iluminura.

Colabore você também com Eva, escrevendo a moral da história.

IMAGEM – Substantivo feminino

Segundo o dicionário Michaelis, em https://michaelis.uol.com.br/busca?id=m8pMZ, Imagem pode ser entendida como:

“1 Representação do aspecto ou formato de pessoa ou objeto através de desenho, gravura, escultura.

2 POR EXT Representação escultória de ser santificado para culto e veneração dos fiéis: “Algumas mulheres prosternaram-se diante da imagem da padroeira da nossa cidade” (EV).

3 Estampa que representa assunto religioso.

4 Reprodução invertida de pessoa ou objeto que se transmite em superfície refletora (espelho, água etc.): “Examina no vidro a sua própria imagem de corpo inteiro” (EV).

5 FIG Representação exata ou bem semelhante de algo ou alguém; aquilo que simbólica ou realmente imita, personifica ou representa pessoa ou coisa: A filha é a imagem da mãe.

6 Percepção mental sobre alguém ou algo.

7 Reprodução dinâmica (ou não) de pessoa, coisa, paisagem através de câmeras de máquina fotográfica, de cinema, de televisão, de celular ou de computador.

8 FIG Pessoa extremamente bonita.

9 FIG Opinião (positiva ou negativa) que o público tem de uma pessoa (político, artista etc.), de uma organização ou de um produto; conceito, reputação: “O jornal tem uma imagem de credibilidade que não podemos colocar em risco” (CA).

10 LIT Palavra, frase ou expressão literária que descreve algo ou alguém de maneira poética ou alegórica.

11 PSICOL Reprodução na mente de uma sensação ou percepção anteriormente vivida ou sentida”.

Já dizia Confúcio:

Extraído de: https://www.pensador.com/frase/NTcxMjMz/
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Crédito das fotos: Vanisse Simone

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“Deus, Pátria e Família”: palavras vãs ou Projeto de Sociedade?

Marcia Regina da Silva Ramos Carneiro

Professora Associada, lotada no Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense, atuando no Departamento de História nas Disciplinas História do Brasil Republicano e História Econômica Geral (Curso de Ciências Econômicas). Possui Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Graduação em História, Especialização em História do Brasil, Mestrado em História Social e Doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Atua em pesquisa, principalmente, nos seguintes temas: História e Memória, Cultura e História, militância política, pensamento integralista, estudo das questões de gênero, História Política e da Ciência. Coordenadora do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA) e do Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (LEIT), desenvolvendo estudos de Ética, da Estética e da Dialética. Editora da Coluna; “Práxis, Poiésis & Theoria” da Revista ContemporArtes (UFABC/SP). Membro do Grupo de Trabalho História das Direitas junto à Associação Nacional de História (ANPUH) e líder do Grupo de Pesquisa História das Direitas /CNPq

Divulgada no dia 9 de setembro de 2021, dois dias depois de movimento convocado pelo presidente Jair Bolsonaro como forma de criar um “evento patriótico” substitutivo às comemorações do Dia da Independência do Brasil, alçado a feriado nacional cívico-militar, criado em 1949, pelo presidente General  Eurico Gaspar Dutra,  a  Declaração à Nação reflete, em seu conteúdo, uma  retratação do presidente perante às Instituições republicanas brasileiras, os Poderes Judiciário e Legislativo, que vêm demonstrando alinhamento em relação à defesa da Constituição Promulgada em 1988.

No sentido de “reverter” um discurso que frequentemente divulga a seus apoiadores e por estes é reverberado, o atual presidente defende a “harmonia entre os Três Poderes” e o respeito a estas mais altas representações republicanas. Sua retratação demonstra a característica personalista que caracteriza seu governo: “boa parte dessas divergências decorrem de conflitos de entendimento acerca das decisões adotadas pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do inquérito das fake news.”

 De acordo com esta Carta, o presidente se apresenta como disposto a se alinhar aos princípios e valores do povo brasileiro, concluindo seu texto com a frase: “DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA”. A frase lema da Ação Integralista Brasileira, criada em 1932, se refere às que teriam sido as últimas palavras do presidente Afonso Penna (1847-1909) e que governou o Brasil de 15 de novembro de 1906 a 14 de junho de 1909, data de sua morte.

Porém, o fato de usar este lema significa que o Presidente se alinha ao Projeto Integralista? Não. No caso Integralista está implícito no lema um projeto de Estado corporativista sob a égide divina.

No ideal integralista, a assimilação do “lema” sintetiza a unidade social “definitiva” e “verdadeira” de um Projeto Escatológico Integralista que teria por fundamento a concepção milenarista de um desfecho apocalíptico para a totalidade da humanidade que, na concepção do ideário integralista brasileiro, seria finalizador de uma “evolução” humana na qual a plenitude divina se realizaria sob a intermediação de uma “Revolução Espiritual” como resultante da assimilação catártica da Doutrina do Sigma, juntamente com a intervenção política compulsória da militância. Embora o caráter de força motriz presente num ideário mitológico político, como em Sorel (1992), esteja presente no projeto de formação da militância integralista, esta formação, que se apresenta como forjadora de um espírito revolucionário para a preparação do integralista para a tomada de consciência do que é ser integralista não se relaciona ao voluntarismo e o espontaneísmo da ação política, como em Sorel. O espontaneísmo e o voluntarismo, como caraterística dos apoiadores do atual presidente, não estão presentes na formação do militante/intelectual integralista. Nem mesmo há, no “bolsonarismo”, uma “ideia-força” capaz de compor um projeto de Estado. De acordo com a declaração do Ministro do Supremo Tribunal Federal e Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, em resposta aos ataques públicos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro durante os protestos do 7 de Setembro demonstram “falta de compostura”, a “covardia” “falta de coragem de atacar o Congresso”. Barroso aponta, ainda: “insulto não é argumento, ofensa não é coragem, a incivilidade é uma derrota do espírito” (STF, BARROSO, BBC News Brasil,/ canal da Justiça Eleitoral: https://youtu.be/N6oEEc0SQUM). A leitura desta “resposta” foi feita durante sessão da corte eleitoral, no dia 9 de setembro de 2021 Nesta avaliação do desempenho do atual presidente , com seus apelos à reação popular contra as instituições , os seus “discursos” não significam demonstrações de projetos de Estado, apenas demonstram a vontade de um homem que “preferirá ainda querer o nada a nada querer” que, de acordo com Nietzsche (1887) caracteriza uma forma de ascetismo, pois “o nada representa algo de última importância, um faute de mieux (algo como aquilo que está lá pela falta de algo melhor)” (SIQUEIRA, 2016, s/p)[2]. O presidente, para seus apoiadores, representaria, a última salvação, o último lugar para o “querer” Um “querer ressentido que se utiliza da “vontade de potência movida por forças reativas para valorar” (SIQUEIRA, 2016, s/p).

É o discurso de ódio que retumba toda a carga conservadora, do ódio ao popular, ainda que populista, do racismo estrutural, com sua carga de estigmas atávicos e, principalmente, a intolerância com quaisquer demonstrações de “outras ideologias”, inclusive com a negação, ou distorção de fatos históricos e de produções científicas. Como o atual presidente escreveu em sua “Carta à Nação”: “Por isso quero declarar que minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum.”

O presidente encontra entre seus apoiadores, aqueles que compartilham o mesmo ódio. O que, portanto, congrega o “bolsonarismo” é o discurso de ódio e não qualquer Projeto. Neste sentido, o lema atribuído ao integralismo, como uma herança “legitimadora” é, no discurso do atual presidente, ausente do mesmo sentido que os integralistas imputavam às três palavras. Pela “voz” do atual presidente, o sentido do “Deus, Pátria e Família” é vazio de qualquer referência à sua menção, seja pelo Presidente Penna ou como lema integralista . São palavras vãs que têm sim a pretensão de unir os apoiadores do atual presidente, mas não correspondem a um projeto nacional.

Como argumento imprescindível para demonstrar esta distinção, que não deve ser desprezada, é preciso que se destaque a importante diferença entre o “bolsonarismo” e a formação da militância integralista, ainda que neste projeto também esteja presente o autoritarismo e o exclusivismo ante as “influências perniciosas da Modernidade” e o materialismo que teria gerado tanto o comunismo como o liberalismo (o que não é o caso do bolsonarismo), como consideram os integralistas.

Segundo os documentos doutrinários da Ação Integralista Brasileira (AIB), a militância se forjara sob o controle de regras e ritualísticas, desde instrução inicial do “catecúmeno” ao militante portador “espiritual” da Doutrina do Sigma. O Integralismo Brasileiro, tratado como utopia, promoveu expectativas de um “por vir” retrógrado, no sentido contrário à Modernidade. Características ideológicas e hierárquicas da tipologia fascista, assim como a inspiração pelo propósito leigo/político da Doutrina Social da Igreja Católica, estavam presentes a formação do militante integralista. Também se percebe indícios do ideário milenarista do Quinto Império Português ao qual se imputava ao retorno de D. Sebastião de Avis, morto em 1578, a “salvação” de Portugal. Esta relação salvacionista contida no ideário do Quinto Império português também influencia a adesão de muitos integralistas atuais a um ideal de restauração monárquica brasileira. Um tema complexo pois, embora o integralismo, em seus primórdios, tenha se constituído como Republicano, a nomenclatura dada às unidades federativas pelo Movimento, manteve os nomes de “Províncias”, como no Império.

Outra discordância do “bolsonarismo” em relação ao Integralismo brasileiro diz respeito à concepção que considera a elevação da humanidade, sob a liderança brasileira, ao patamar de consolidação do Estado Integral, que seria alçado a um projeto planetário dirigido por uma vontade ética e moral, impingida em cada indivíduo, elevados ao maior degrau evolutivo no desenvolvimento humano já que conformados, por consciência catártica, via Revolução Espiritual, no intuito para sua preparação para compor a Quarta Humanidade. Esta seria constituída a partir da superação das etapas: da “humanidade politeísta” (da Antiguidade) à “monoteísta” (da Idade Média) e desta à “ateísta” (dos séculos XVI ao XX, quando se forjam as influências consolidadas na “era das revoluções”, levando ao liberalismo e ao comunismo). A humanidade, depois de ultrapassar estas etapas com a revolução interior, porque espiritual, atingiria seu mais alto patamar com a “humanidade integral”, na qual ocorreria a tão sonhada síntese, o homem e a natureza, em sua totalidade. Gustavo Barroso, intelectual cearense e Chefe das Milícias integralistas (1934-1936), descreveu estas etapas procurando definir os seus contextos históricos com base em critérios de caracterização social de “raças”: o “Império do Carneiro” corresponderia à Antiguidade, com o aporte civilizatório dos europeus, brancos sobre outros povos. Um “estágio” superior seria representando por um período de “estado de guerra” hobbesiano, o “Império de Loba”, no qual predominariam os aspectos religiosos, morais, de poder militar e civil, força e individualismo, representando o domínio cultural romano. No “Império de Capricórnio” venceriam os aspectos materiais decorrentes da confusão gerada pela Reforma Protestante, pela Revolução Francesa e pelo liberalismo. A salvação e finalidade última desta evolução estariam no “Império do Cordeiro”: o tempo da síntese econômica-política-espiritual, da totalidade absoluta[1]. Para isso, seria preciso remover os obstáculos do avanço do espiritualismo, da síntese sonhada pelos integralistas. Segundo Barroso, os promotores da discórdia materialista seriam os judeus e comunistas, como “artífices do materialismo”.

Com vistas à produção de propostas para a discussão da questão social no Brasil.[4] para o Chefe integralista, o “Jeca Tatu é o espírito nacional. É a incerteza do Povo Criança. É o homem perdido no imenso meio físico (…) O Jeca Tatu exigia e continua a exigir decifradores. Ele não é a face ridícula da Nação, mas a própria Nação.”[5] Este Jeca Tatu era o Zé Candinho, do romance do modernista Salgado, O Estrangeiro no qual relata o “tipo brasileiro”: o caboclo legítimo que “prosseguia a sua faina, rumo às brenhas, afastando-se da onda absorvente dos estrangeiros”.[6]

Como foco da resolução da questão social brasileira, representante do pobre desassistido pelos governos, o integralismo propunha sua inserção no âmbito do Estado Integral. A questão social, tratada no Manifesto de Outubro, capítulo 7º era vista como um problema a ser resolvido a partir da sustentabilidade do direito à propriedade, vista como trabalho acumulado projeção física da personalidade humana. Neste item, são defendidas as “justas reivindicações dos trabalhadores, encarando-se o problema de modo integral, sob o aspecto moral-cristão, sob o ângulo da organização econômica do país e pela conjugação dos direitos naturais com os deveres que lhes são correlatos.” Apoiam-se, nessas definições, em Pandiá Calógeras e Rui Barbosa, que segundo Salgado, teriam se inspirado por sua vez, na obra do Cardeal Mercier e nas Encíclicas Papais.[7]

Essas propostas de elevação humana, segundo Plínio Salgado, o Chefe Nacional, eram dirigidas ao “homem comum”, que deveria ser a antítese do homem-massa, representado pelo Calibã, o selvagem de “A tempestade” de Shakespeare[2] Inspirava-se no personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, para descrever o homem real brasileiro. Aliás, embora criado por Lobato, o Jeca Tatu representaria para a geração de intelectuais do[3] início do século XX, o parâmetro para a constatação do grau de pobreza do povo brasileiro, nas quais estão presentes uma concepção eugenista de melhoramento da raça brasileira. Um debate que percorre décadas, desde fins do século XIX e que perdura até a atualidade, sobre características descritivas estigmatizadas de um “povo inferior devido à miscigenação”, contrapondo esta “condição” às dos imigrantes europeus que se instalaram no Brasil, principalmente desde fins do século XIX. Esta “condição” que caracteriza um “fenóptico” brasileiro mantem-se no racismo estrutural (cuja contribuição analítica de Silvio Almeida (2018) é fundamental). Confrontando a construção de uma identidade nacional integralista à que se constitui a identidade nacional bolsonarista, esta se constitui como identidade alinhada à conceção de Umberto Eco de “cópia”. e como a concepção de como a “cópia” se constrói resultante de valores, estéticos e morais formados socialmente. Considera-se que a formação de uma concepção de identidade bolsonarista, forjada essencialmente pelo processo interativo, mediado por difusão de fake news, contruções de referências míticas brasileiras: do militar salvador, honesto, confiável e capaz de controlar a ordem e da promoção de uma oposição radical entre proprietários e não proprietários. Em defesa da “propriedade ameaçada”, que o bolsonarismo se constituiu como oposição à questão social.

Cabe ressaltar que a formação de ambos os movimentos, diferenciados quanto às formas de organização e ideologias, em comum, congregam setores da classe média e pequena burguesia em suas bases. A defesa da propriedade, porém, em sua concepção, é diferenciada, pelo ideal do “bem comum”. que o atual presidente também diz defender. O “bem comum” tomista ao qual se refere o pensamento integralista, diz respeito à ideia de redistribuição do excedente, por meio de uma concepção de caridade cristã. O integralismo é anti-plutocrata e, neste sentido, acompanha a concepção antiliberal católica, que se opõe à modernidade.

No bolsonarismo, a concepção de “bem comum” se refere à defesa de quaisquer formas de propriedade. Congrega , inclusive, a defesa da propriedade por aqueles que não as possuem. Neste sentido, a violência está presente como reação ao temor de perda da propriedade. Esta reação se dá pelo temor à igualdade de direitos, de acesso à educação, às defesa das questões de gênero, às lutas sociais e mesmo de acesso ao consumo. A construção da “cópia” se relaciona ao ideal de vida glamourosa, ao american way of life e da intensiva necessidade de se forjar a distinção: “quem pode e quem não pode ter”. O ideal bolsonarista, identificado nas ruas pelo uso do uniforme da seleção brasileira de futebol, se traduz em repetições de frases de ódio contra adversários políticos, identificados, por sua vez, ao “comunismo”, aos ideais das esquerdas críticos ao status quo.

A utopia construída pelo imaginário político do movimento integralista seria alcançada a partir da constituição da 4ª humanidade, que seria consequência da organização do Estado Integral. A doutrina do movimento serviria como diretriz na formação do homem integral, capaz de tomar parte desse último estágio da humanidade, no qual a espiritualidade sobressairia sobre a materialidade.

Seguindo com convicção esses parâmetros ideológicos, a militância de base integralista que nem sempre absorveu a essência doutrinária, a interpretou como diretriz para as suas vidas. As promessas de síntese contidas na doutrina deveriam garantir a ordem moral cristã. Através desta, a possibilidade de construção do Estado Integral, mas, antes deste, a formação do homem integral: aquele capaz de ser fiel e obediente, acima de tudo, cristão. No entanto, somente o conhecimento da doutrina não representa o apelo à adesão, sendo necessário o processo “catártico”: a conscientização doutrinária para a praxis integralista.

As condições culturais e a conjuntura, num Brasil predominantemente católico, propiciaram o “encantamento” da militância em relação ao movimento. No início do século XX, a ascensão dos fascismos na Europa que pareciam demonstrar êxito quanto à aparente superação das crises geradas pela Guerra, também empolgou parte da sociedade brasileira, principalmente aquela que, advinda do continente parcialmente destruído, esperava reconstruir no Brasil a sua participação interventora na política, desejando também construir aqui a sua nova nação. Assim sendo,  o desejo de participação na AIB  seria estimulado pelo da construção de uma nacionalidade brasileira integralista.

Para Salgado, cumpriria ao integralismo criar aqui a Nação[8]. No livro Palavras Novas aos Tempos Novos, o Chefe chegara à conclusão de que o que faltava ao Brasil seria a uniformidade de cultura e de ética. Assim sendo, haveria a necessidade de se criar uma homogeneidade de consciência que deveria encaminhar o povo brasileiro para contornos definidos pelos parâmetros que considerava ideais. Daí, a necessidade do padrão da identidade integralista que, como se verá adiante nas entrevistas, mantém-se pela postura que assume a militância, tanto na absorção doutrinária como nos aspectos da aparência externa, ao assumirem publicamente o uso do uniforme e a saudação “Anauê!”. A nação brasileira deveria, portanto, ser despertada. Por isso a anulação da segunda parte do Hino Nacional: o Brasil não poderia estar “Deitado em berço esplêndido”. O Brasil deveria estar desperto para a nova era, a do Estado Integral. Para a construção deste Estado seria preciso convocar a vanguarda do movimento e, sob sua direção, organizar a militância.  Para Salgado, em Psicologia da Revolução, a crise orgânica que se abatera sobre a sociedade brasileira resultara da impossibilidade de se encontrar a identidade nacional.

Neste sentido, considera-se, aqui, a constatação do grande fosso entre os projetos do atual Presidente, com características liberais, antinacionalistas, já que vem promovendo privatizações e usos destrutivos das riquezas nacionais brasileiras, e o ideal integralista de nacionalismo. Ainda, do ponto de vista integralista, a substituição das comemorações cívico-militares por um movimento convocado para se contrapor às instituições republicanas, não condiz ao ideal do Movimento.

O bolsonarismo, como diria  Eco sobre o fascismo  ” é fuzzy “, no sentido da confusão.  Embora o lema “Deus, Pátria e Família ” esteja sendo “evocados” como aproximação com o integralismo, os projetos conservadores, sejam econômicos ou morais, são muito diferentes e distantes até mesmo ideologicamente.  Porém, em comum, o projeto de Estado autoritário, controlável, sob uma “ordem divina” que o mesmo Eco relaciona à ideologias e práticas ur-fascistas. A ideia de uma Ur como referência de cidade original pode ser tanto a Ur de Abraão como o mito  da Atlântida.  As novas direitas de todo o planeta têm em comum a luta  antiglobalista: antidiversidades étnicas,  em defesa pelas referências nativistas (“racialistas”), e não nacionais, dos ” povos”, no sentido de identidade étnica exclusivista e contrária às migrações e mesmo antissemita e, principalmente, anticomunista.

Noutra perspectiva, o “vazio” das palavras contidas no lema integralista pelo atual presidente demonstra outra questão conflitante: o projeto dos apoiadores conservadores cristãos não é o mesmo projeto do atual presidente. O projeto com o qual foi eleito diz respeito ao “compromisso” religioso de elevar o Brasil à salvação, a partir de um ideal messiânico ao “reino de Deus”, controlável por um moralismo conservador cristão. O projeto do atual presidente, pelo contrário, é bem terreno, secular: implantar uma ditadura personalista.


Notas:

[1] MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky – o pensamento antissemita de Gustavo Barroso. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

[2] SALGADO, Plínio. Palavra Nova aos Tempos Novos. IN Obras Completas, vol. 7. São Paulo: Editora das Américas, 1955.

[3]SHAKESPEARE. A Tempestade. São Paulo: Scipione, 1997.

[4] Para a análise da questão social brasileira, intelectuais de diversas vertentes apoiavam-se na tipificação construída em início do século XX por Monteiro Lobato. Até mesmo o liberal Rui Barbosa apoiou-se no Jeca Tatu para compor sua análise sobre a origem e permanência da miséria do povo brasileiro.  BARBOSA, Rui. A Questão Social e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Simões, 1951.

[5] SALGADO, Plínio. Rumos à ditadura (IX). Em A Razão, 16 de fevereiro de 1932.

[6] SALGADO, Plínio O estrangeiro .In Obras Completas, vol 11.  São Paulo: Editora das Américas, 1926.

[7] SALGADO, Plínio. O Integralismo na vida brasileira. In Enciclopédia Integralista, vol. I, 1958, p. 27.

[8]SALGADO, A Doutrina do Sigma. São Paulo: Verde-Amarelo, 1935.

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Shrek (2001)

Maikely Teixeira Colombini

Shrek (2001) é um filme/animação que pode ser vivenciado esteticamente. Por meio dele, é possível refletir sobre algumas questões da sociedade contemporânea, tais como a intolerância ao diferente. Nele, “a beleza não é imprescindível, uma vez que seus parâmetros são relativos”, conforme nos revela Renata Degani de Souza Bastos, em artigo que se intitula “Shrek – O Filme, análise fundamentada na estética da recepção”. Sob muitos aspectos, o filme é subversivo.

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Queremos o que desejamos?

Nós queremos, realmente, o que desejamos? Se recorrermos à etimologia, buscando a origem e a evolução das palavras, encontraremos que o verbo “querer” advém do latim QUÆRERE, que significava “buscar, procurar; perguntar; inquirir”. “Desejar” é oriundo, por sua vez, do vocábulo DESIDERARE, composto por DE-, prefixo intensificador, mais SIDERARE, de SIDUS, “astro, estrela”, ou seja, significava algo como “fixar atentamente as estrelas”. Quantas vezes, pelas redes, nos campos de comentários ou numa conversa de bar, entre amigos, familiares ou estranhos,  visualizamos, de maneira fixa, as “estrelas norteadoras”, desejando um planeta mais verde, saudável e harmônico; menos violência nas ruas, nas casas e nas relações; mais amor para com o próximo, menos julgamento e mais acolhida, e sonhamos, apaixonados, com o desenvolvimento da empatia nas crianças, do respeito e da autonomia baseada na interdependência, com o direito à liberdade de ir e vir, de amar e ser amado, à equidade, à expressão livre, à fala, à escuta, com o direito de ser visto, tocado e sentido, o direito de ter direitos, o direito de desobedecer… e almejamos o fim dos preconceitos, da corrupção, da fome, do abandono… quantas vezes?

No entanto, quando saímos do bar, quando viramos a esquina – ou antes disso, muito antes -, quando trocamos de conversa, quando saímos para buscar o pão, no caminho para casa ou para o trabalho, conversando com alguém ou com a nossa consciência – em voz baixa, em voz alta, em voz nenhuma –, na manhã de todo dia, com os filhos ou netos, afilhados, vizinhos ou colegas de classe, buscamos, verdadeiramente, o caminho que conduz às estrelas? Ou será que caminhamos com os olhos voltados para cima pisoteando todos e tudo sem dar por isso? Deslumbrados com o brilho distante das esferas, com o luzir ofuscante das ideias, seguimos a trote, de maneira imprudente, arrebentando a realidade no peito e fazendo da prática um eterno conflito? Desejamos que a violência termine, mas queremos que os violentos morram da maneira mais violenta possível. Desejamos justiça, mas queremos vingança. Desejamos que todos tenham o direito de se pronunciar sobre os assuntos mais variados, mas não queremos ouvir quando um ponto de vista nos contraria. Criamos mil artifícios para não ver em nós o que vemos em outrem e para não admitir que somos produtos de uma sociedade que, mesmo ao criticar, mesmo nas revoluções, continuamos reproduzindo de maneira inconsequente. Inventamos mitos modernos, estruturas complexas, narrativas bem elaboradas e histórias complementares para não admitir que mudamos a maneira de cultivar e a forma de tratar o terreno cultivado, mas que ainda semeamos os mesmos grãos.

Um homem, certa vez,

escreveu que um homem, certa vez,

havia dito: “tira primeiro o espinho dos seus olhos e será capaz, então, de retirar o cisco dos olhos do seu irmão”. Muitos aplaudiram e aplaudem o homem que disse o dito através do homem que deixou escrito aquelas palavras. Muitos adotaram esses dizeres como estrelas, olhando para o céu a fim de apagar ou esquecer onde pisam os pés, tentando ignorar a sebe melindrosa que acompanha o caminho. Mais de dois mil anos depois, a maioria de nós segue apontando, com as vistas mareadas de sangue, as farpas nos olhos alheios. Nós queremos, realmente, o que desejamos?