Aline Moerbeck Costa; Isla Gomes Neves; Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti.
(Universidade Católica do Salvador – Núcleo de Estudos em Direitos Humanos)As abordagens emergentes do ponto de vista humanitário tornaram-se pauta para as questões jurídicas e sociais perante o mundo Ocidental, com o fim da II Guerra Mundial. Em seus primeiros anos, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, exerciam as suas atividades com uma atuação retraída que funcionou como um “reconhecimento territorial” para a elaboração de normas gerais e a promoção de valores através de cursos, seminários e publicações fase denominada como abstencionista. Indicado por Alves (1994) como um processo de evolução da atuação perante os direitos humanos, divididas em fase “abstencionista” e fase “intervencionista” não devem ser vistos como uma superação de um período sobre o outro. Os problemas postos para debate são tão complexos que exigem soluções multissetoriais e interdisciplinares, pois se trata de questões que antes de tudo possuem viés político. Assim, em que pese às iniciativas para a proteção dos direitos humanos tivessem sido concretizadas na fase classificada por como período “intervencionista” com a adoção de medidas capazes de interferir positivamente na realidade destes indivíduos.
Partindo desta análise os estudos que envolvem as questões de gênero, também devem pautar-se em uma estruturação trifásica de atuação, sendo a mais utilizada em campo acadêmico à promoção de valores e a intervenção na realidade fática. Inserindo tais análises ao contexto soteropolitano, mas, especificamente na dinâmica de adolescentes e jovens em idade escolar e em período político de retrocessos, estas discussões mostram-se ainda mais emergentes.
Sobre as questões que envolvem gênero e suas possíveis conceituações trazidas pelo campo acadêmico-científico, têm-se ao longo da sua evolução epistemológica, diversas correntes que tentam analisar e traçar as possíveis formas de superação, deste que é um problema humanitário. Para Saffioti (2004) o gênero designa a construção social daquilo que é definido como masculino e feminino, no entanto, as construções fechadas, restritas e predeterminadas que designam o gênero, fazem com que a própria sociedade funcione como modeladora de personalidades e da autodeterminação, tendo a família e as instituições de ensino papel importante no fomento destas distorções conceituais.Imagem 1 – Capa do livro de Heleieth Safiotti
Fonte: https://www.geledes.org.br/o-conceito-de-genero-por-heleieth-saffioti-dos-limites-da-categoria-genero/Os aspectos subjetivos em um contexto social não eram vistos como objetos dignos de serem analisados cientificamente. Como a sociedade passa a exigir explicação para os fenômenos de dominação que tem por vítima, em sua grande maioria, as mulheres, começam a existir teorias que tentam conferir um sentido para tais circunstâncias e a partir desta análise alcançar possíveis soluções em diversos campos científicos. (CONDE; MACHADO, 2006).
Como objetivo geral, a pesquisa visa analisar a ocorrência de eventos violentos nas relações de intimidade de/entre jovens, na perspectiva das principais manifestações, consequências e fatores associados às relações parentais e precedentes. Quanto aos objetivos específicos a pesquisa busca: I. Analisar a ocorrência de eventos violentos na relação de intimidade de jovens na faixa de 16 a 24 anos identificando as principais consequências destas relações e os sentidos e percepções sobre os atos violentos que estes jovens possuem, dentro de uma perspectiva relacional. II. Caracterizar os antecedentes de exposição (fatores de risco) a esses eventos na família e nas experiências amorosas. Como retorno para a sociedade dos estudos realizados, faz parte dos objetivos desta pesquisa, III. Desenvolver interlocução com a escola, no sentido de propor estratégias, visando prevenir a ocorrência de eventos violentos e contribuir para a informação desses jovens para que possam perceber quando estão diante de uma situação de violência.
Com forte presença no cotidiano e nas relações entre jovens, as manifestações de afeto, mas também de abusos/violências são temas emergentes e requerem olhares atentos, inclusive do ponto de vista social, comportamental, saúde e promoção de educação e direitos. Deste modo, essa pesquisa propõe aprofundar conhecimentos da violência na intimidade entre jovens, impactos, consequências e fatores associados, apresentando os principais meios sociais e jurídicos que podem se acionados na defesa e combate da violência na intimidade na juventude sob a lente dos Direitos Humanos, na perspectiva de gênero. Como contribuição social, o estudo visa possibilitar a interlocução entre diferentes áreas do conhecimento, estimulando a interdisciplinaridade (ou pelo menos aproximações transversais), fundamental à implementação de medidas de prevenção e em diversos contextos sociais.
Vale salientar que o ambiente educacional formal é reconhecidamente lócus de convívio e formação de jovens, preparando-os para a convivência social pacífica, no exercício pleno da cidadania, com direitos, deveres e respeito à liberdade pessoal do outro (Gomes, 2013). Nesse sentido, e tomando como contextos sociais de formação/aprendizagem, a finalidade de escolas pode estar delimitada pelo fato de refletirem sobre a importância de institucionalizar estratégias e práticas sobre temáticas que afligem as relações humanas, destacando-se a violência entre jovens na intimidade e suas consequências para o desenvolvimento individual e coletivo das novas gerações, promovendo educação para e pelos Direitos Humanos e sendo espaço de difusão de conhecimento e justiça social e não o contrário.
Para investigar o fenômeno da violência entre jovens, com olhares mais acurados no que se refere à intimidade, o ambiente escolar/acadêmico foi escolhido como privilegiado para captação de dados. Vale ressaltar que a escola, reconhecida como importante lócus de convívio e formação de jovens é instituição de preparação/fomento para a convivência social e pacífica no exercício pleno da cidadania, pautada em direitos, deveres e respeito à liberdade pessoal do outro.
Quanto à pesquisa de campo, estruturado em um viés empírico-descritivo, os instrumentos foram selecionados para captação das categorias, sendo realizadas entrevistas com estudantes, nas faixas de 16 aos 21 anos, matriculados na escola pública de médio porte, situada na região metropolitana de Salvador e Feira de Santana. Para realizar a coleta dos dados procedeu com o uso de instrumento transcultural, apoiado no eixo PAJ – Percurso Amoroso de Jovens (Instrumento de Origem do Canadá que através do NNEPA/UEFS, passou pelo processo de validação e adaptação transcultural.Imagem 2 – Website do PAJ, Canadá.
Fonte: https://paj.uqam.ca/A fase formativa-acadêmica em que estão os estudantes sobre os quais recaem essa pesquisa são os jovens que cursam o ensino médio, revelando já terem introdução e compreensão das categorias trabalhadas como referencial. Os resultados serão analisados e interpretados tendo como suporte abordagem teórica sobre Educação, Direitos Humanos, Juventudes e questões de violências sobrepostas (CAVALCANTI, 2018).
Imagem 3 – Capa do livro onde está integrado capítulo sobre “Violências sobrepostas”
Fonte: www.pactor.pt/pt/catalogo/ciencias-sociais-ciencias-forenses/ciencias-forenses-criminologia/violencia-domestica-e-de-genero/No Brasil, as epistemologias sociais que fundamentam os estudos sobre as violências sofridas por mulheres, em um primeiro momento, mais especificamente na década de 80, estavam voltadas para a concepção de que a violência feminina possuía bases na dominação masculina. Esta teoria engendrada por Marilena Chauí, para quem a violência contra a mulher seria perpetrada não só por homens, mas também por mulheres, foi responsável por convencionar atribuição do papel de cúmplice nos atos de violência a mulher. No entanto, a contribuição feminina não seria autônoma, mas, funcionaria apenas como mero instrumento destituído de subjetividade autônoma. (IZUMINO; SANTOS, 2005).
A segunda corrente identificada diz respeito à dominação patriarcal, que analisa a perpetração do que é denominado de patriarcado para alguns estudiosos ou violência de gênero para outros. Esta teoria defendida por Saffioti (2004) concebe que a designação correta a ser utilizada para conceituar a subjugação feminina pela masculina seria a definição de patriarcado, pois, gênero é um conceito amplo que serve tanto para tratar sobre violência contra mulheres quanto às violências sofridas por homens. O patriarcado define de forma mais adequada o contexto feminino atual tanto na vida pública quanto nas relações privadas.
Deste modo, a violência imposta à mulher possui caráter histórico no patriarcado e na exploração econômica demonstrando um viés marxista, tendo em vista que o homem na estrutura de poder a qual criou e se criou, estabelecem as regras do jogo do qual, posteriormente, são beneficiados fazendo com que a mulher esteja subjugada em diversas formas psicológica, física e patrimonial. A mulher não configuraria como cúmplice nos atos de violência devido à ausência de poder no âmbito social.
A terceira corrente inaugurada por Maria Filomena Gregori tende a relativizar dois polos que estão fixos quando o assunto é violência contra mulher, e que funcionam como facilitadores no mundo jurídico, mas, são empecilhos para entender o contexto da violência em sua realidade. Esses polos dizem respeito aos fatores que permeiam a dominação (associada ao homem) e a vitimização (associada à mulher). A violência para esta teoria funcionaria como uma negociação de interesses pelas partes envolvidas, negando a existência de uma relação de poder. (IZUMINO; SANTOS, 2005).
Reformulando, de certa forma, a teoria relacional de violência Cecília Macdowell Santos e Wânia Pasinato Izumino (2005) entendem que a dominação patriarcal não consegue conceituar com a devida precisão a permanência de situações de violência, ainda que fatores antes tidos como determinantes tenham sido superados, a exemplos de mulheres financeiramente independentes que permanecem em situações violentas. Sendo assim, adotam a teoria relacional, mas com algumas ressalvas.
A primeira delas é a afirmação de que as situações de violência não estão destituídas de poder. No entanto, o poder não está apenas em mãos masculinas, mas desigualmente também são experimentadas por mulheres. Outro fator negado, é quanto à incapacidade e ausência de poderio da mulher, atribuído por algumas teorias, que reforçam o estigma de passividade da mulher para a modificação da sua realidade e como pessoas com a devida competência para redefinir os papéis sociais que lhes foram impostos historicamente.
Enveredando pela vertente da justiça e da promoção social, a condição de agente das mulheres tem ganhado cada vez mais notoriedade, deixando de serem percebidas como receptoras passivas de medidas de bem-estar para aturem na condição de agente. As questões como respeito e o bem-estar das mulheres estão condicionados a questões, tais como, a independência financeira, a escolaridade, os direitos patrimoniais o que em certa medida interferem nas decisões tomadas no lar ou fora dele, ganhando o direito de serem ouvidas nestes espaços, ainda que mediante a concessão de escuta.
No que se refere às violências na intimidade pode ser caracterizada pela propagação de atos violadores tanto do corpo quanto do estado psicológico das suas vítimas. Tais violências, segundo Caridade e Machado (2006), podem tanto ser perpetradas por homens como por mulheres, estas últimas passam a ter maior representatividade na atuação de atos violentos em relacionamentos como o namoro, fora dos casos de coabitação, quando ausentes fatores que comumente as tornam vulneráveis como filhos e dependência financeira do parceiro.
Dos variados indicadores sociais e epistemologias contemporâneas, a violência de gênero nas relações íntimas configura-se como um fator que afeta as mais variadas classes sociais enquadradas nos diferentes padrões socioeconômicos. A violência ocorre no âmbito das relações íntimas de jovens (Neves, 2008). Nas últimas décadas a nível nacional tem se dado um enfoque grande nos estudos e pesquisas sobre a violência na juventude e se percebeu que esses dois fatores (violência e juventude) se cruzam nas mais diversas formas de casais nas relações íntimas.
O número de casos de violência na intimidade (em relações que não estão restritos ao ambiente doméstico/ familiar), culminando em morte, tem aumentado nos últimos anos, pelo menos o que revela a percepção inicial de relatos nas mais diversas mídias (televisão, redes sociais). Tal fato não pode ser pormenorizado em análises estatísticas específicas, pois os levantamentos de dados estão debruçados sobre as violências domésticas e familiares ou mesmo na análise da incidência dos casos que se subsomem a qualificadora de feminicídio, não relatando os casos de violência em relações de namoro e nas relações transitórias especificamente.
Em tempos de crise política e democrática temáticas como gênero e as relações político-sociais que emanam destas relações, estão cada vez mais cerceadas e silenciadas. Caso sejam aprovadas as proibições aventadas pelo projeto “escola sem partido” os professores ficarão impedidos de tratar em sala de aula sobre temáticas que envolvam o gênero e questões denominadas pelos relatores do projeto de lei como: “ideologia de gênero” dentre outras temáticas, sob pena de responsabilização por doutrinação, no exercício de suas atividades de formar cidadãos.
Os necessários debates que existem na atualidade sobre tais questões serão total e imediatamente impedidos de ser realizados em salas de aulas. Mas, nada impedirá que estas crianças/ adolescentes possam ter contato, erroneamente, em outras instituições e espaços culturais. Por isso, os movimentos que seguem na contramão e que conferem espaço para estas discussões deverão continuar a dar voz aos discursos de uma minoria invisibilizada, aprofundando os debates em torno destas temáticas.
Neste contexto de retrocessos os debates devem ficar cada vez mais intensos contra as temáticas que assolam a sociedade, mas, que não possuem um tratamento social ou mesmo jurídico compatível. Neste rol de temáticas político-sociais que, estão sob ameaças, também, se encontram neste rol os direitos humanos que passaram a ser inferiorizados quando, por exemplo, são confrontados com o princípio s fundamental da liberdade de expressão.
Para validar a supremacia da liberdade de expressão busca-se consagrar o “direito” a ser politicamente incorreto. Desta forma, defendem que nas redações do Exame Nacional do Ensino Médio- ENEM aqueles que posicionarem-se contra os direitos humanos e disseminarem ódio não poderão ser atingidos pela penalidade de ter as suas notas zeradas.Tais bandeiras impedem a discussão sobre a violência de gênero em cenários políticos áridos em que a família não consegue dialogar com as escolas e o Estado. Este que deveria assumir uma postura imparcial, conferindo apenas meios materiais e subsídios para que a sociedade civil possa organizar-se e estruturar-se de forma autônoma, afirmando um estado laico é que, ou deveria ser. Logo, as intervenções realizadas nas escolas com palestra e rodas de conversas devem ser o principal foco destas instituições, quando possível devem ser realizadas e os jovens alcançados de forma positiva para que não reproduzam mais discursos de ódio e pensamentos enrijecidos sobre a estrutura social e familiar, além de que questões como gênero que implicam questões como: a própria violência de gênero devem ser pauta.
É fundamental e urgente realizar nas escolas – espaço de socialização e aprendizados múltiplos e socializadores – projetos e debates de conscientização e prevenção acerca do fenômeno da violência e de riscos e perigos, perpassando por uma educação crítica e de acesso à cidadania, condição fundamental para o equilíbrio pessoal e social, onde a cultura da paz e do respeito recíproco, interpessoal e coletivo, representa a base fundamental para estabelecer elos de convivência pacíficos, saudáveis e que possam também impactar em ambiente doméstico-familiar e social estendido (grifos nossos). Ou seja, entre as experiências vividas de maneira individual e relacional (familiar e escolar), podem potencializar uma abordagem que promova dimensões de direitos, acesso à cidadania e à dignidade, considerando aspectos éticos e não violentos da vida em partilha.
REFERÊNCIAS
ALVES, J. A. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 1994.
CARIDADE, Sônia; MACHADO, Carla. Violência na intimidade juvenil: Da vitimização à perpetração. Análise Psicológica, v. 24, n. 4, p. 485-493, 2006.
CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Violência(s) sobreposta(s): Contextos, tendências e abordagens num cenário de mudanças. In: DIAS, Isabel (Org.). Violência doméstica e de gênero: Uma abordagem multidisciplinar. Lisboa: Pactor, 2018, pp. 97-122.
CONDE, Ana Rita Dias; MACHADO, Carla. Amor e violência na intimidade: da essência à construção social. Psicologia & Sociedade, vol. 23, núm. 3, 2011, p. 496-505
GOMES, C. B. Violência nas Escolas: Uma realidade a ser Transformada. Curitiba: Juruá, 2013.
IZUMINO, Wânia Pasinato; SANTOS, Cecília MacDowell. Violências contra as mulheres e Violência de gênero: Notas sobre estudos feministas no Brasil. E.I.A.L., vol. 16- nº1, 2005.
NEVES, A. S. A. Amor, poder e violências na intimidade: os caminhos entrecruzados do pessoal e do político. Coimbra: Quarteto, 2008.
SAFFIOTI, H.I.B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.