A Revista Contemporartes homenageia a todos os professores e professoras no dia de hoje, com uma reflexão da Prof.ª Raquel Almeida sobre o trabalho docente.

Sentidos do Trabalho Docente

A Educação na Idade Média - A busca da Sabedoria como caminho para a  Felicidade: al-Farabi e Ramon Llull | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da  Costa
Fonte: História da Educação: Antiguidade, Idade Média e Modernidade

Percorrendo-se na linha do tempo da história da educação no Brasil, no dia 15  de outubro do ano de 1827, Dom Pedro I, o então Imperador do Brasil, baixava um decreto que criaria as Escolas de Primeiras Letras, equivalente ao ensino fundamental nos dias de hoje, o qual simboliza e marca o Dia do Professor. Nesse documento, também estavam estabelecidas as condições de trabalho do professor, dentre as quais, a sua contratação e o seu salário.

A reflexão que ora proponho trata-se do ofício da docência e parte de uma tríade de questionamentos de sentidos que, frequentemente, buscamos dar ou atribuir ao nosso “ofício” e à sua ação histórica e social, isto é, ao trabalho docente conduzido, muitas vezes, em uma larga trajetória de nossas vidas: Que professores nós somos? Que professores nós gostaríamos de ser? Que professores nós realmente podemos ser?

O ensino variou de acordo com as práticas culturais e figurações socioeconômicas de uma época
Fonte: https://www.historiadomundo.com.br/curiosidades/o-professor-ao-longo-do-tempo.htm

Na obra O Capital (1984), Marx define o “ofício” do homem como o  conhecimento essencialmente articulado à sua natureza, produção e desenvolvimento de uma ação. Nas sociedades primitivas, cada indivíduo realizava a sua especialidade com um sentido próprio e pessoal da ação empregada socialmente. Historicamente, os diferentes ofícios ou conhecimentos eram concentrados em um mesmo local e, por meio da cooperação, cada um realizava sua atividade especializada. O trabalho feito em conjunto obtinha o seu produto final, ou seja, a sua totalidade era executada pela união desses especialistas e seus ofícios.

Ao se transpor a relação entre sentido e significado de uma ação para o trabalho docente vamos entender que, a simbiose existente entre o significado das ações do professor e os seus sentidos para o mesmo, se descaracterizou a partir da divisão social do trabalho e da exploração deste quando na adoção e implantação de uma sociedade capitalista em quase todo o mundo. Houve a ruptura da integração entre o significado e o sentido da ação na execução do trabalho humano. O sentido pessoal da ação não corresponde mais ao seu significado. O processo do sistema fabril, sobretudo o trabalho mecânico ou técnico (racional/instrumental), foi transferido para todas as instâncias do setor produtivo e, porque não, para o sistema produtivo educacional.

O professor torna-se, então, um executor de tarefas prescritas a serem cumpridas no seu trabalho de docência, quais sejam, preenchimento de relatórios, planejamento de aulas e cumprimento de conteúdos e cargas horárias.  Analisando-se por esta perspectiva, verificamos que o trabalho da docência sofre uma forte ruptura entre o significado socialmente construído de ser professor e de qual é o seu verdadeiro papel na (forma)ação do indivíduo e o(s) sentido(s) que este especialista da educação atribui à sua atividade como formador hoje. Em síntese, as condições subjetivas da formação humana e  profissional do ofício de professor perdem seus sentidos em meio às condições objetivas que se lhes apresentam (tarefas e metas a serem ligeiramente cumpridas, salas de aula abarrotadas de alunos com uma grande heterogeneidade  cultural, social e econômica, dentre tantos outros) no sistema educacional brasileiro.

Doria prevê aumentos na forma de subsídios em reestruturação da carreira de  professor - 13/11/2019 - Educação - Folha
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/11/doria-preve-subsidio-em-reestruturacao-da-carreira-de-professor.shtml

Para finalizar essa breve reflexão,  retomo o pensamento histórico de Karl Marx de que “o homem é o seu trabalho” e, considerando os atuais impactos ideologicamente políticos, econômicos e socioculturais sobre o trabalho da docência,  respondo ao questionamento  “Que professores nós realmente podemos ser?” atribuindo um novo sentido para os versos de uma canção popularmente brasileira, e digo: “somos o que podemos ser, somos o que podemos crer” mediante às atuais condições subjetivas e objetivas, sob as quais, exercemos nossa docência.

NOTA: Artigo de autoria publicado no Jornal Folha de Londrina, seção Opinião, em 07/02/2019.

Disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/opiniao/sentidos-do-trabalho-docente-1026142.html

Imagens:

Disponível em: https://www.historiadomundo.com.br/curiosidades/o-professor-ao-longo-do-tempo.htm

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=k4qFN1O93oc

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/11/doria-preve-subsidio-em-reestruturacao-da-carreira-de-professor.shtml

Palmas… melhor não aplaudir. Importunação ou Estupro?

Por Célio Pinheiro*

Em setembro deste ano na cidade Palmas, no Paraná, um caso absurdo ocorreu. Uma moça anda de bicicleta. Um carro com quatro jovens se aproxima, um deles passa a mão no corpo da moça. Ela cai, sofre vários ferimentos. Tudo filmado pelas câmeras. Nos dias seguintes o caso se torna público causando grande comoção nacional. As manchetes em quase todos os jornais usam as mesmas palavras para se referir ao caso. Destaco uma a titulo de exemplo: Manchete: “Jovem ficou ferida após cair de bicicleta ao ser vítima importunação sexual em Palmas; câmera registrou carro se aproximando e passageiro tocando a ciclista enquanto pedalava.” (Fonte: Por g1 PR e RPC Foz do Iguaçu — Foz do Iguaçu 28/09/2021 11h09)

Há várias questões condensadas nesta cena e na forma que a cena é relatada. Há subtextos que precisam ser discutidos, nos âmbitos sociológicos, antropológicos, jurídicos, psicanalíticos e semânticos. O carro era ocupado por jovens na faixa dos 19 a 21 anos. E um deles era menor de 18 anos. E esse é um dos fatos que mais chama atenção. É grave para além da violência praticada que essa violência seja praticada por um menor. Isso indica uma falência geral. Falência da família que não fez seu papel de criar um sujeito que respeitasse qualquer outro semelhante seu, que não respeitasse a mulher nesse contexto. Falência da escola que não transmitiu valores éticos a seu aluno.

Falência da Cultura em reprimir atos de crueldade e desumanidade. Falência da religião em seu papel moralizador. Falência do Estado, falência das instituições, falência de todos nós. Ou estariam eles seguindo um exemplo que lhes conferia liberdade para cometer tal ato? Se assim o for, é urgente determinar que exemplo é esse. Que modelos esses rapazes estão seguindo? Que modelo de construção do masculino esses jovens estão exercitando? Quem lhes deu o direito de uso do corpo alheio para extrair um prazer baseado na violência? A cultura do estupro escancara seus dentes nessa cena.

A herança do colonizador violento de outrora que dominou e estuprou as mulheres por essas terras criou uma cultura criminosa que mostra estar viva. Sem saber esses jovens estão desempenhando um modus conhecido nas paragens em que o colonizador praticou tais violências. A perversão, conceito complexo, denuncia o quanto a prática perversa coloca o outro na condição de objeto de prazer e gozo. Gozo na submissão e rebaixamento do outro à condição de objeto de sevícias. O outro é dessubjetivado. Diante de tudo isso, o uso da palavra “importunação”, conforme destaca a manchete e conforme foi tratado juridicamente este caso, causa algumas estranhezas.

ANDRÉ KERTÉSZ- Distortion #126 – (1931-1933)

Dizer que é importunação é uma forma negatória para minimizar uma prática que deixa marcas profundas na vítima. Valho-me aqui da semântica, da grafia e da sonoridade da palavra importunação. Diz o dicionário que o significado de Importunação é: ação ou efeito de importunar. Ação de insistir de maneira inconveniente. Coisa ou circunstância inconveniente… É essa a aceitação social, coloquial e mesmo vulgar da palavra importunação, ou seja, uma coisa inconveniente. Ser inconveniente não é tão mal assim. Passar a mão no corpo de uma mulher com fins de prazer próprio, sem o consentimento, quase causando sua morte, equivale a ser inconveniente?

Pois esse é o efeito semântico e não nos esqueçamos que o texto da Lei diz muito (ou tudo!) de uma sociedade e em especial das pessoas que a confeccionam, a aprovam, a proferem. Por que essa cena deve ser qualificada como estupro? É simples. Se nos ativermos ao estupro apenas como ato de penetração genital sem consentimento, estamos desprezando a vida psíquica das vítimas. O dano causado pela invasão na esfera das emoções não pode ser desprezado. A vítima sofreu invasão em sua dimensão humana, afetiva, de direitos, à liberdade de ir e vir. Estes casos são sim uma forma de penetração tão – e por vezes mais – causadoras de danos do que a penetração do que se convencionou chamar de estupro.

Os danos em ternos de efeitos psíquicos são extensos, todos eles relacionados ao efeito do trauma gerado por essas ocorrências. Não nos esqueçamos que a palavra trauma quer dizer: perfuração! Trauma é perfuração. É a invasão na vida psíquica de uma carga tamanha de violência e de significados. Chamar a isso de importunação é uma forma de ratificar aquilo que se está querendo combater. É “passar o pano” como se diz em linguagem dos dias de hoje. Chamar de importunação é como dizer: “Ah, esses moleques aprontando das suas de novo. Merecem puxãozinho de orelha da titia.”

Ou seja, é minimizar tudo o que vem junto com essa prática. E, mais. Chamar de importunação é operar a mais nefasta de todas as reações diante de uma violência que é o “desmentido”. Desmentir é negar que o fato tenha acontecido. Desmentir é diminuir a gravidade do ocorrido. Desmentir é usar palavras atenuantes que diminuem a gravidade social do ocorrido. Desmentir é culpabilizar a vítima. A vítima assim se expressou: “O problema que aconteceu comigo acho que é só um de tantos outros que estão acontecendo. Então o fato de prenderem o rapaz não vai diminuir o problema que está na nossa sociedade. Eu acho que tudo isso aconteceu só porque eu fui filmada.

Tem muitas mulheres que não conseguem fazer denúncia por medo e porque não têm uma prova. Tudo isso que aconteceu eu consegui por causa da uma câmera de segurança.” Sim, só ganhou repercussão porque foi filmado e as imagens são repugnantes. Mas os agressores ainda tentam dizer que não queriam fazer aquilo… Quem escutou um dos rapazes presos informou que ele contou que estavam alcoolizados e que chegou a pedir para que os amigos não fizessem aquilo. O carro, um veículo Gol branco chegou a ser apreendido, mas foi devolvido ao pai do condutor, que alegou que ele teria pego o carro sem permissão.

É urgente pensar a palavra transmissão. Afinal, o que estamos transmitindo? O que a Cultura está transmitindo para essas gerações que estão chegando à idade adulta? Se esse for o exemplo do que virá, o que será do mundo? É preciso indignar-se, agora, não depois, não amanhã, deixar claro que para esses atos não queremos mais Palmas.

*Célio Pinheiro – Psicanalista e Antropólogo

75 Anos do Dia da Vitória – O Significado Judaico (Por Israel Blajberg)

O Dia da Vitória Aliada na Europa, 8 de maio de 1945, representou um marco relevante na longa e milenar historia do Povo de Israel. Ao comemorar os 75 anos desta data, nossos sentimentos são relativamente conflitantes. Se por um lado o triunfo sobre a Alemanha nazista representou realmente um marco relevante, por outro, o custo para os judeus foi altíssimo, 6 milhões de mártires inocentes foram sacrificados Al Kiddush HaShem* (pelo Santificado Nome), até que esse dia chegasse. Vitória para a qual lutaram bravamente 1,5 milhão de soldados judeus das 19 Nações Aliadas, inclusive brasileiros.

No dia 8 de maio de 1945, os Aliados ocidentais da Segunda Guerra Mundial celebraram o ‘’Dia da Vitória na Europa’’.  Fonte: https://forum.warthunder.com/index.php?/topic/239018-dia-da-vitoria.

O fim da 2ª. Guerra Mundial impediu que se consumasse a terrível resolução da Conferência de Wansee, aos 20 de janeiro de 1942 em Berlim, onde mentes doentias definiram um macabro protocolo para deportar e assassinar 11 milhões de judeus na Europa. Lamentavelmente perderam-se 6 milhões de vidas preciosas, inocentes, mas culpados de serem judeus.

Crime hediondo que hoje encontra negacionistas nos anti-semitas universais. Pereceram no Holocausto 1,5 milhão de crianças. Quantas poderiam ter dado ao mundo mais beleza, mais ciência, mais saúde?

O Brasil, único país latino-americano que participou da 2ª Guerra Mundial, como uma das 19 Nações Aliadas enviou tropas para a Europa. Centenas de nossos bravos soldados, marinheiros e aviadores fizeram o sacrifício supremo da própria vida na luta para ajudar a libertar o mundo do nazi-fascismo.

Jornal O Comércio, do dia 09/05/1945, Rio Grande do Sul. Fonte: https://farolblumenau.com/08-de-maio-de-1945-dia-da-vitoria/

Hitler pretendeu se vingar de uma nação pacífica e ainda rural, lançando uma blitz submarina no litoral brasileiro, com o torpedeamento de mais de 30 navios mercantes, e o sacrifício de 1 milhar de preciosas vidas de brasileiros inocentes. Quando o Brasil se viu envolvido na guerra, desde a primeira hora a comunidade judaica se uniu para defender o país da agressão, com a doação de um avião, e a participação dos israelitas na defesa nacional, amplamente documentada no livro “Soldados que Vieram de Longe” – Os 42 heróis brasileiros judeus da Segunda Guerra Mundial.

Até então a participação de combatentes brasileiros judeus durante a guerra fora pouco conhecida, muitos dos quais agraciados com medalhas de valor militar. Os mil anos do Reich não passaram de 11 dolorosos anos para a Humanidade, até ser destruído, em Stalingrado, Bir Hakim,Tobruk, no Levante do Gueto de Varsóvia, nas praias do Dia D, e na Itália onde lutou a FEB, de Montese a Monte Castello, de La Serra a Fornovo.

“O mundo quase inteiro uniu-se e combateu esses malfeitores, que agora se curvam diante de nós.” (Winston Churchill) Fonte: http://www.portalfeb.com.br/8-de-maio-dia-da-vitoria/

Hoje o mundo parece sofrer de uma amnésia coletiva e seletiva no que diz respeito a acontecimentos não tão distantes, como os aqui tratados. Faz-se mister combater toda e qualquer manifestação de intolerância, como o neonazismo, o terrorismo fundamentalista, e falácias como a negação do Holocausto.

Transcorridos 75 anos da Vitória, esta data tão significativa deve estar sempre na lembrança dos povos, como um farol da luta pela liberdade e democracia.

*Kidush Hashem (do hebraico קידוש השם Santificação do Nome [de Deus]) é um preceito do Judaísmo que deve ser cumprido por todo judeu como expresso na Torá : “Para santificar o Seu Nome” (Levítico 22:32). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/

Por Israel BLAJBERG  < iblajberg@poli.ufrj.br>

                                                                                                         ***

A FAMÍLIA E O ESTADO NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO: OLIVEIRA VIANNA, GILBERTO FREYRE E SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Leia a contribuição da leitora Iara Andrade na coluna Espaço do Leitor.

 Iara Andrade

Diversas questões e problemas que hoje permeiam o âmbito das ciências sociais foram objetos de reflexões dos intelectuais brasileiros. Estes, ao longo de nossa história e de diversas maneiras buscaram explicar e entender a nossa sociedade.

Nos anos de 1930, a questão da nacionalidade e dos nacionalismos estava em plena ebulição. Intensificava-se a produção de um emaranhado de mitos, teorias e discursos que tentavam explicar a identidade brasileira e modernizar a nação.

Tanto Vianna quanto Freyre e Holanda tinham como objetivo desenvolver um projeto identitário, cujo fim seria o brasileiro ideal, capaz de práticas sociais grandiosas, atuante e maduro. Para tanto, cada um diagnosticou os nossos “males de origem” e apontou estratégias para saná-los.

Em Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Vianna analisa a ação do patriarcalismo, que funciona como força centrípeta, impedindo a consolidação de qualquer forma de solidariedade. O regime de clã seria inevitável e a extrema miserabilidade e vulnerabilidade da “plebe rural”, frente às forças que os oprimiam, os levariam a agregar-se em torno do senhor em busca de proteção. Surge aí, uma solidariedade apenas parental, restrita ao vínculo familiar.  O chefe do clã amparava sua clientela contra anarquia branca, representada pelos magistrados, e em troca recebia de seus agregados humildes diversas formas de auxilio, inclusive o voto.

Imagem 1: Storni. Careta, 19/02/1927. Apud Renato Lemos. Uma História do Brasil através da caricatura. 1840-2006. Rio de Janeiro: Bom texto, 2006, p.35.

Citando Rousseau, Vianna argumenta que o homem é o animal menos apto a viver em rebanho, só se associa, quando se vê em perigo, na Europa, essa necessidade de defesa teria gerado as hordas, comunas, estados e nações, e subjetivamente os sentimentos a eles relacionados: sentimento comunal, patriótico, comunitário e nacional.

No Brasil, para o autor, a “insolidariedade é completa” (VIANNA, 1982, p. 164), e devido à insuficiência de instituições sociais tutelares, essa falta de sociabilidade persistiria, fragmentando a nação e impedindo que o povo e o sentimento nacional se consolidassem. O Estado autoritário exerceria, transitoriamente, a função tutelar sobre essa grande massa desvanecida[1], desmantelando o patriarcalismo, os separatismos e criando sentimentos de pertencimento na população brasileira.  Para esse conjunto doutrinário, Wanderley Guilherme dos Santos, encontraria a feliz denominação de autoritarismo instrumental.

Para Gilberto Freyre, por sua vez, o Estado será encarado de forma diferente. O Estado, para o autor pernambucano, é uma extensão da família.

Ricardo Benzaquen em Guerra e Paz – Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 afirma que mais do que sobre brancos e negros, Casa Grande e Senzala foi um livro sobre as relações no ambiente da casa grande e nas vizinhanças da senzala, nas quais ocuparia lugar especial a figura do mestiço[2].

Em Freyre, a casa grande tornou-se a guardiã de um volumoso poder, mantinha em torno dela toda a vida social do engenho. Bancos, santa casa de misericórdia, escola, cemitério, hospedaria …

Imagem 2: FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49 ed. São Paulo: Global, 2004.

A casa grande juntamente com a senzala, representava todo um sistema econômico (monocultura latifundiária e escravidão), social/cultural (religião, poligamia, comida) e político (compadrismo) que absorvia e agregava todos ao redor do senhor. A influência deste patriarca sobre sua esposa, filhos e “massa livre” não se limitaria apenas à esfera familiar, mas se desdobraria para o âmbito político.  O “gosto de mando” exercido por eles na relação privada estender-se-ia ao domínio público, com os mesmos tons de sadismos impostos aos escravos e às mulheres, contribuindo para a ampliação do mandonismo.

Segundo José Carlos Reis em Identidades do Brasil: De Varnhagem a FHC, vol I, Gilberto Freyre não problematiza a reprodução das relações domésticas na esfera política. Provavelmente por não conceber a esfera pública como essencialmente distinta da esfera privada, mas antes como um prolongamento dela.

Imagem 3: Debret, Jean Baptiste. O Jantar no Brasil, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia. 1989.

Freyre percebe a família como um fator empreendedor sobre o qual a instituição política se apoia e se forma, contrastando consequentemente com a visão de Sérgio Buarque de Holanda, que a vê como um empecilho à organização política moderna.

Em entrevista referente à atualidade de Raízes do Brasil, Pedro Monteiro afirma que umas das questões que torna a obra de Sérgio Buarque de Holanda premente é a relação do indivíduo com o Estado, configurado pela ausência de demarcação entre a esfera publica e privada. Para Holanda, no Brasil só excepcionalmente tivemos uma administração burocrática, o que sempre existiu foi a predominância de um corpo de funcionários patrimoniais, incapazes e escolhidos segundo confianças pessoais.

Em Raízes do Brasil, Holanda observa que o vínculo familiar e os valores dele derivado, personalismo, afetividade desmedida, parcialidade seriam herança dos nossos pais colonizadores. Enquadrando o luso na categoria de aventureiro, o autor afirma que  ideal português “será colher o fruto, sem plantar a árvore” (HOLANDA, 1995, p.44).

 

 

Imagem 4: Debret, Jean Baptiste. Retorno à cidade, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia. 1989.

 

Eram sempre mais atraídos pelas aventuras marítimas e pelas glórias da reconquista do que pelo labor agrícola.[3]

Além da preferência lusa pela aventura, Holanda afirma que o que faltou para o bom êxito do labor produtivo foi ausência de capacidade para livre e duradoura associação. Alega que não somos adeptos à cooperação, nem à competição e sim temos preferência pela prestância e rivalidade, ou seja, não buscamos objetivos comuns, e sim benefícios ou danos que poderíamos causar ao outro.

É perceptível que tais atitudes personalistas herdadas dos portugueses gerariam, em nossa sociedade, agregações precárias tendentes à obediência cega, à parcialidade de atitudes, à afetividade desmedida, à luta entre facções, ao predomínio de funcionários patrimoniais e à relacionamentos restritos à esfera familiar. Características que por sua vez, se desdobraria no homem cordial, e seriam incompatíveis com uma população que visa a se organizar politicamente. Para Sérgio Buarque de Holanda era somente pela transgressão desta ordem doméstica que nasceria o Estado e que o simples indivíduo se faria cidadão.

Por fim, dado a impossibilidade de detalhar aqui um pouco mais o pensamento social dos autores supracitados, ressalto que os estudos de Vianna, Freyre e Holanda oferecem de maneiras distintas, referências para compreensão da relação entre a família e as instituições políticas, revelando a presença fundamental do mundo privado nas tradições do pensamento político brasileiro.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

BENZAQUEN, Ricardo. Guerra e Paz – Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49 ed. São Paulo: Global, 2004.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: De Varnhagem a FHC, vol I, Rio de Janeiro: FGV, 2007.

VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Câmara dos Deputados, 1982, V.1.

[1] A ideia de “multidão criança” e a função tutelar de uma elite estatal são questões recorrentes no pensamento social brasileiro.

[2] Em Freyre, o mestiço se tornaria o representante nacional, e nele estariam todas as qualidades provenientes da mistura das três etnias que povoavam o Brasil. Se existia algum aspecto negativo no negro ou no indígena, isso, na concepção do autor, não se dava por fatores biológicos e sim devido a fatores cultuais e sociais. E por isso, faz duras críticas àqueles que sentenciam a morte os brasileiros, por não serem puros de raça ou o Brasil, por ser de clima tropical, sem considerar a alimentação paupérrima que a população estava submetida e que ocasionava sua degeneração. A mestiçagem foi tão valorizada em Casa Grande e Senzala que teria contribuído para a democratização social do Brasil, convicção esta que posteriormente sofrerá diversas críticas, por escamotear o racismo presente na sociedade.

 

[3] Ressalta-se, portanto que a inadaptabilidade do português ao trabalho, em Holanda, se dava por fatores histórico-culturais e não biológicos.

 

Iara Andrade Senra é historiadora e professora de história pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Doutoranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em História Social pela Universidade Severino Sombra (USS) e especialista em História do Brasil pelo Centro Universitário Gerald Di Biase (UGB). Dedica-se à História Política, pesquisando especificamente a Identidade Nacional Brasileira.

 

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iaravr@hotmail.com