A poesia é uma fuga da realidade? Às vezes é preciso praticar a arte da fuga, como nos ensinou Johan Sebastian Bach, o Pelé da música. Mas a fuga através da arte é outra forma de inserção na realidade, uma forma de transfigurar o mundo em uma dimensão estética. Para bem praticar a arte da fuga, vamos visitar hoje, eu, você e Heidegger, o poeta Manuel Bandeira, atravessando o portal do tempo. Ele nos recebe em sua casa, antes de ir embora pra Pasárgada, seu ideal de fuga. E, para uma viagem ao redor de sua mesa, ele nos serve uma maçã.
MAÇÃ
Por um lado te vejo como um seio murcho
Por outro como um ventre
Cujo umbigo pende ainda o cordão placentário
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti
em pequenas pevides
palpita a vida prodigiosa
Infinitamente…
E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel
Nesse texto a maçã aparece como objeto de um olhar, tal como classicamente se dá em sua relação com os pintores. A diferença é que, enquanto ao olhar do pintor ela é uma natureza morta, aqui, ao olhar do poeta, ela é aproximada ao ser vivo, ao ser humano. Ela é comparada a partes do corpo humano (seio, ventre), por sua forma arredondada.
O pequeno caule é comparado ao cordão placentário, elo de ligação entre o ente e o mundo. Junto com o humano ela é aproximada à divindade – ao amor divino: o vermelho, cor do sangue, púrpura dos reis, envolve sua polpa, no interior da qual as pevides (sementes) são fontes milagrosas de vida eterna.
No final, ainda animada, pois ainda interlocutora, destinatária da fala do poeta, ela sofre uma redução: reduzida à condição de objeto pictórico, de natureza morta, ela é aproximada aos objetos, ao mundo inanimado, colocada ao lado do talher, no quarto de um hotel. O quarto de hotel é pobre, a maçã “queda” e se torna simples. Ela que se apresentava numa perspectiva de progressiva complexidade, retorna ao simples, ao estático, ao inerme.
A viagem do poeta através da maçã, a viagem da maçã através do poema, é metáfora da relação dinâmica entre a transcendência e a imanência dos seres, entre a simplicidade e a complexidade da existência: essa dialética é uma marca característica de toda a obra do grande poeta pernambucano, cujo olhar, enfocando as cenas banais, as pessoas no cotidiano, as coisas e os objetos que as cercam, revela sua “capacidade do espanto diante do que é simples” e a “possibilidade de aceitar esse espanto como morada” – Heidegger mete sua colher, enquanto já se fecha o portal do tempo.
Há 53 anos, no 13 de outubro partiu para sua Pasárgada aquele que, no dizer de Guilherme de Almeida, foi “Manuel, bandeira do Brasil”. Quero de volta o Brasil de Bandeira…