A gente não quer só comida…

Tempos atrás uma senhora, beneficiária do Bolsa Família, declarou que o valor era insuficiente para comprar uma calça jeans para sua filha de dezesseis anos; disse, ainda, que um jeans para uma menina desta idade custa mais de trezentos reais.

Tempos atrás uma senhora, beneficiária do Bolsa Família, declarou que o valor era insuficiente para comprar uma calça jeans para sua filha de dezesseis anos; disse, ainda, que um jeans para uma menina desta idade custa mais de trezentos reais.

As reações foram as mais variadas, do choque ao escárnio: como alguém com um padrão tão dispendioso de consumo pode receber o benefício? O programa não se destina a cobrir despesas de sobrevivência?

A ideia de um programa de distribuição de renda é realmente atender, de modo emergencial, necessidades básicas e, em princípio, roupas caras não seriam parte dessas necessidades. Mas vivemos em um tempo de consumo exacerbado, em que se divulga incessantemente o comportamento e a aparência que as pessoas “bem sucedidas” devem ter, e isso é particularmente doloroso para jovens que não conseguem se adequar a esse ideal.

Muitos adolescentes que entram no mundo do crime, o fazem para obter os tênis e celulares “da moda”, para ter as roupas “de marca”, para se sentirem integrados a um mundo mostrado como paradisíaco e que é vedado a eles.

As calças jeans eram vestimentas de trabalhadores braçais, até que na década de 1950 os roqueiros as popularizaram. Práticas, resistentes, baratas, tornaram-se o uniforme de gerações, usadas ao natural, desbotadas ou decoradas segundo gostos pessoais. Foi quando a indústria da moda resolveu “agregar valor ao produto”, criando os jeans de grife, em quase nada diferentes dos demais, mas com enormes logomarcas de estilistas, enfeites dourados e outras firulas, e com preços muito acima de trezentos reais.

O mesmo ocorre com um grande número de produtos, calçados destinados à prática de esportes tem características funcionais, trazem elementos de amortecimento, fixação e outros, que podem mesmo fazer diferença no desempenho e na segurança de atletas; mas são procurados em grande parte apenas por serem caros, símbolos de status e riqueza, ou insensatez.

Em outros tempos sempre havia mãe, tia ou avó, com habilidade na máquina de costura para copiar, de certa forma, as roupas das princesas de cinema, e as meninas de dezesseis anos iam, lindas como todas as adolescentes, para a festa. Hoje se exige um certificado de autenticidade, uma etiqueta que pouco falta para ser mesmo a etiqueta de preço, as meninas querem jeans que custam mais de trezentos reais. E como podem as mães que sobrevivem com menos que isso explicar aos seus filhos que eles não podem ter aquelas chaves para o sucesso?

A produção industrial colocou bens de consumo ao alcance de mais pessoas do que em toda a história da humanidade, porém em algum momento a receita parece ter desandado. Não basta mais a posse de determinado artefato, é necessário que este seja “sancionado” por características que não lhe seriam imanentes, como aquelas que elevam o “status” do possuidor através da admiração e inveja dos demais.

Alguns rappers americanos acharam um atalho irônico entre objeto e significado, quando ganham muito dinheiro penduram no pescoço pesadíssimos cifrões de ouro, pura metalinguística.

Nas escolas, jovens desprezam os uniformes, que em princípio eliminariam distinções sociais e trariam igualdade no enfrentamento do processo educacional, pela absoluta originalidade de sua personalidade, demonstrada, claro, pelas roupas. Professores se desesperam com inadequações gritantes, agressões acontecem por sentimentos de falta (ou de excesso), grupinhos se dividem entre aqueles que podem, e os que não.

Liberdade podia ser uma calça velha, azul e desbotada, mas felicidade parece ter se tornado uma calça nova, azul e muito cara…

 

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É educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil, e assina a Coluna Educação & Cotidiano.

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