Educação em Direitos Humanos e História da Biologia: Um diálogo através da eugenia brasileira

Ao se avaliar nosso quadro contemporâneo, agravado pela atual crise econômica nacional e internacional, podemos enumerar uma série de aspectos inquietantes no que se refere às violações dos Direitos Humanos (DH), tanto no campo dos direitos civis e políticos, quanto na esfera dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Analogamente ao que ocorreu mundialmente na década de 1930, períodos de turbulência social e econômica, como o que vivemos hoje, estão associados ao uso público de discursos que desrespeitam os DH, como o racismo (STEPAN, 1991, p.157).

Educação em Direitos Humanos e História da Biologia: Um diálogo através da eugenia brasileira

Anderson Ricardo Carlos

Bacharel e licenciado em Biologia pela UNESP e pesquisador do programa de pós-graduação em Ensino e História das Ciências e Matemática/ UFABC

Ana Maria Dietrich

Docente da UFABC

Ao se avaliar nosso quadro contemporâneo, agravado pela atual crise econômica nacional e internacional, podemos enumerar uma série de aspectos inquietantes no que se refere às violações dos Direitos Humanos (DH), tanto no campo dos direitos civis e políticos, quanto na esfera dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Analogamente ao que ocorreu mundialmente na década de 1930, períodos de turbulência social e econômica, como o que vivemos hoje, estão associados ao uso público de discursos que desrespeitam os DH, como o racismo (STEPAN, 1991, p.157). Também se tem observado o crescimento da intolerância religiosa, de nacionalidade, de gênero, entre muitas outras, incluindo até mesmo o surgimento de recentes movimentos neonazistas nos EUA. Em tempos difíceis e conturbados por inúmeros conflitos, nada mais urgente e necessário que educar em Direitos Humanos, tarefa indispensável para a defesa, o respeito, a promoção e a valorização desses direitos. Segundo a Constituição Federal Brasileira e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei Federal n° 9.394/1996), o exercício da cidadania é considerado como uma das finalidades da educação, ao estabelecer uma prática educativa “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, com a finalidade do pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Assim, a Educação em Direitos Humanos (EDH) deve abarcar questões concernentes aos campos da educação formal, focando também na educação básica (BRASIL, 2007).

Segundo as Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos, publicadas em 2012, a inserção de conhecimentos relativos à EDH na educação básica deve ser articulada: “1. pela transversalidade, por meio de temas relacionados aos Direitos Humanos e tratados interdisciplinarmente; 2 – como um conteúdo específico de uma das disciplinas já existentes no currículo escolar; 3 – de maneira mista, ou seja, combinando transversalidade e disciplinaridade” (BRASIL, 2013, p.52).

Levando em conta essa proposta de discutir os Direitos Humanos na educação básica articulada aos conteúdos específicos das disciplinas já existentes, propomos trazer a abordagem para o Ensino de Ciências e, mais especificamente, para o de Biologia. Uma disciplina de Biologia que não discute a ciência na sociedade e a história de seu fazer científico é uma Biologia compartimentalizada, que não há espaço para a EDH. Promovendo um diálogo com Diamantino Trindade (2008), ousamos dizer que, majoritariamente,  ainda nos baseamos em um tipo de ensino de Ciências que foi cristalizado ao longo do período helenístico, na Antiguidade Clássica. Segundo o autor, o modelo alexandrino de escolarização, criado nesse período e caracterizado pela ênfase no ensino da escrita, era transmitido a partir de métodos de memorização, leitura de textos e exaustivos ditados. Nessas circunstâncias o melhor aluno seria o bom repetidor e a boa aprendizagem, aquela que se alcança pela disciplina rígida (TRINDADE, 2008). Portanto, por mais que a literatura acadêmica critique abertamente tal método educativo atualmente, ele ainda está enraizado na prática da base educacional e necessita de um contínuo e incansável questionamento.

Em contraste com esse modelo alexandrino, acreditamos que o Ensino de Biologia deve discutir a ciência na sociedade e a história de seu fazer científico, não ficando apenas na memorização dos conceitos e nem mesmo na pura discussão do caráter epistêmico de seus conteúdos específicos. Consequentemente, uma abordagem oportuna para a discussão da Educação em Direitos Humanos (EDH) na Biologia seria justamente a utilização da História da Biologia (HB), indicando episódios que gerem reflexões e expressem muito dos conflitos do passado que, no entanto, são relevantes para entender o presente, envolvendo paralelamente a questão dos Direitos Humanos.

Assim, trazemos um tema baseado no conceito biológico de hereditariedade: a eugenia. A partir do termo cunhado pelo cientista britânico Francis Galton, no final do século XIX, a eugenia pode ser visto como um movimento social, preocupando-se em promover casamentos entre determinados grupos e – talvez o mais importante – desencorajar ou mesmo proibir uniões ou nascimentos de “tipos humanos” considerados nocivos à sociedade (STEPAN, 1991, p.137; SCHWARCZ, 1993, p.79). Vista como ciência e como um movimento da biologia, a eugenia suponha uma nova compreensão das leis da hereditariedade humana, cuja implicação visava à produção de “nascimentos desejáveis e controlados”. Nesse ponto, é importante mencionar que os movimentos eugênicos também foram organizados na América Latina, inclusive no Brasil – nesse último caso predominantemente dentro do período de 1918 até a década de 1940. Em suma, analisando cientificamente suas ideias, poderíamos definir a eugenia no Brasil entre dois grupos de linhas científicas diferentes: o grupo dos neolamarckistas e o grupo dos mendelianos. Os primeiros se baseavam em ideias como a herança de caracteres adquiridos, assumindo que fatores adquiridos ao longo da vida poderiam ser transmitidos hereditariamente, como alcoolismo, imoralidade ou fadiga no trabalho, vistas como causas de doenças hereditárias. Para mendelianos, havia a negação da herança de caracteres adquiridos, teoria que se baseava nas leis de heranças de Mendel, redescoberta em 1900, nas quais se estabeleciam proporções no aparecimento de caracteres hereditários, a partir de fatores que seriam dominantes ou dominados (chamados de recessivos) (STEPAN, 1991, p.197).

Figura 1: Ilustração para a explicação das Leis de Mendel, feita pelo médico André Dreyfus no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929)

Todas essas vertentes da eugenia vieram juntas em julho de 1929 em uma das mais importantes manifestações públicas da eugenia no Brasil: o Primeiro Congresso de Eugenia Brasileira. Segundo a historiadora da ciência Nancy Stepan, os temas do congresso foram amplos, incluindo:

“(…) casamento e eugenia, educação eugênica, a proteção da nacionalidade, tipos raciais e eugenia, a importância de arquivos genealógicos, imigração japonesa, campanhas antivenéreas, intoxicantes e eugenia, o tratamento de doenças mentais, educação sexual, a proteção da infância e das mães. Os participantes (do congresso) passaram por várias resoluções, a mais controversa sendo uma chamada para uma lei de imigração nacional para restringir entrada no Brasil daqueles indivíduos considerados eugenicamente inapropriados com base em algum tipo de teste médico (STEPAN, 1991, p.54, tradução do autor)”

Considerando o movimento eugênico brasileiro e, sobretudo, o conteúdo desse congresso, muito pode ser discutido na educação em Direitos Humanos. Eugenia tratava os resultados sociais altamente complexos da miséria e da pobreza como metáforas biológicas da melhora da raça e hereditariedade. O desejo de purificar a reprodução de populações através de normas da hereditariedade e regular as fronteiras nacionais definiram em termos quem poderia pertencer à nação e quem não poderia, violando completamente os DH. Todos esses aspectos da eugenia se basearam em questões de raça e gênero, estando ambas as questões intrinsecamente relacionadas à política de identidade nacional (STEPAN, 1991, p.104). Por adotar uma doutrina de neutralidade

Figura 2: Prof. Dr. Miguel Couto: um dos mais importantes eugenistas brasileiros e fundador do Primeiro Congresso de Eugenia no Brasil

científica, baseada numa ciência positivista, os defensores da eugenia dificultaram que críticos atacassem, sobretudo, o racismo endêmico na ciência brasileira do tempo, desencorajando o reconhecimento da natureza política e social das ciências. Assim, denota-se a importância de se estudar a eugenia no Brasil, que, todavia, não deve se limitar a apenas ver aqui a reflexão da eugenia europeia ou uma má interpretação dela e, sim, estudá-la como algo enraizado na própria cultura e história do Brasil. Vista dessa maneira, a eugenia no Brasil pode trazer considerável esclarecimento dos princípios científicos do pensamento social atual e construção social da ciência (STEPAN, 1991).

Além da eugenia oferecer um subsídio rico para discussão dos Direitos Humanos, tal discussão beneficiaria o Ensino de Ciências, uma vez que traz a História da Ciência para o Ensino, como vem sendo muito discutido no ensino por vários autores, como o americano Douglas Allchin. O autor traz um mapeamento, com os componentes da Natureza da Ciência que devem ser tratados no ensino, em seu trabalho Teaching the nature of Science: Perspectives and resources, incluindo o viés de raça, gênero, classe e crenças culturais no fazer científico. Isso contribuiria para legitimar a discussão que as ideias subjetivas e culturais estão de fato entrelaçadas ao fazer científico, se afastando de uma ideia positivista de ciência.  Ademais, para Trindade, o objetivo do ensino da História da Ciência não é apenas descrever a história ou acumular conhecimento sobre ela, mas propiciar uma análise crítica das condições da criação e apropriação do conhecimento científico pelas diversas culturas. Assim, há a possibilidade de elucidação de como as teorias eugênicas foram apropriadas em outros países comparadas ao Brasil, que traria sua intrínseca conjuntura social e política. Além disso, atestamos como tal conhecimento está sujeito a transformações, discutindo como o conceito de hereditariedade, enraizada no conceito de eugenia, era tratado nas diferentes linhas: mendelianas e neolamarckistas (TRINDADE, 2008).

No entanto, problematizar as questões dos Direitos Humanos na História da Eugenia Brasileira no Ensino de Biologia exige uma série de cuidados. Focando especificamente nas discussões da História da Ciência e Ensino, oferecemos um diálogo com Martins (2005). Só a partir de um bom estudo historiográfico da área de História das Ciências é que teríamos base sólida para sua aplicação no Ensino. A análise de uma fonte primária, como o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia de 1929, e seu confronto com fontes secundárias poderiam trazer contribuições oportunas para essa análise, fornecendo subsídio para a posterior produção de uma sequência didática para o Ensino. A fonte primária enriquece trabalhos na área de História da Ciência, reduzindo o “apudismo” de uma leitura exclusiva de fontes secundárias, favorecendo a

Figura 3: Trecho da fonte primária do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia sobre as ideias da educação física para a eugenia, representando ideias de hereditariedade neolamarckistas

problematização e entendimento do tema, denunciando distorções e inferências das fontes secundárias. A partir da concepção de Martins, não se deve deixar de lado os grandes desafios de uma pesquisa em história da ciência: aliar conhecimento científico (hereditariedade e teorias eugênicas) ao conhecimento histórico do período (que abarcaria as questões de Direitos Humanos). Justamente por esse último, deve-se tomar cuidado de não sermos anacrônicos ao analisar os vieses de raça, gênero, classe e crenças culturais nas teorias eugênicas, uma vez que tais vieses se referem ao período histórico referente, não sendo correto julgá-los diretamente aos olhos de hoje (MARTINS, 2005).

Em suma, problematizar os Direitos Humanos através da discussão da história da eugenia brasileira pode trazer contribuições pertinentes para o Ensino de Biologia. Assim, denunciaríamos o perigo do determinismo biológico, pelo fato da eugenia sustentar suas teorias no desejo de imaginar a nação em termos biológicos, num modelo determinista e reducionista justificado apenas por conteúdo específico epistemológico. Dentro do movimento eugênico, também deve se alertar para a inerente influência de ideias subjetivas no fazer científico, afastando-se de ideias positivistas de ciência. Incluídas nessas ideias subjetivas estão questões de raça, levando em conta que parcelas do movimento eugênico brasileiro condenavam à miscigenação e propuseram a proibição do fluxo migratório de negros para o Brasil. Discutir tal conjuntura no passado poderia auxiliar reflexões sobre o racismo na escola, denunciando discursos racistas velados e entendendo a necessidade de ações afirmativas devido às implicações históricas que se refletem e se manifestam ainda hoje. Por outro lado, ideias de gênero também poderiam ser levantadas, uma vez que a mulher era vista como o centro do controle reprodutivo nos movimentos eugênicos, como se fossem “úteros a serviço da nação”. Desse modo, as propostas eugênicas envolveram ideias de redução do papel da mulher exclusivamente à função materna, como a promoção de concursos eugênicos para eleger meninas mais aptas para se reproduzir e a educação feminina para formar “jovens mães”. As questões de gênero também envolveram propostas mais extremas na eugenia, como a exigência de atestado médico de sanidade física e mental para casamentos, que poderia levar ao impedimento do matrimônio, além de propostas para esterilização de parcelas da população, sobretudo centradas – no caso do Brasil – em mulheres com deficiências e transtornos mentais (ACTAS, 1929)

Por fim, há também a possibilidade de construção de pontes paralelas com a contemporaneidade, a partir da reflexão sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), criada em 1948 no pós-guerra e após o auge dos movimentos eugênicos no mundo. Artigos da DUDH poderiam ser analisados, verificando quais ainda vêm sendo infringidos e buscando marcas culturais relacionadas às ideias eugênicas que ainda permeiam a atualidade. Contudo, ao se comparar presente e passado, é fundamental o cuidado em não se cair num anacronismo histórico, o que nos faz ressaltar a importância de discutir a conjuntura social e política da época e não só citar medidas, intervenções ou teorias propostas por esse controverso movimento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALLCHIN, D. Teaching the nature of Science: Perspectives and resources. 1. ed. Saint Paul: SHiPS Education Press, 2013.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Nacionais para Educação em Direitos Humanos. 2012. Disponível em:  http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10889-rcp001-12&category_slug=maio-2012-pdf&Itemid=30192 Acesso em 10 de nov. 2017.

BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais. Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Brasília, 2013. 76p.

MARTINS, L. A. P. História da ciências: objetos, métodos e problemas. Ciência & Educação , Vol.11, 2, pp. 305-317. 2005.

ACTAS E TRABALHOS DO PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA, Academia Nacional de Medicina. Rio de Janeiro: 1929. v.1, 342 p.

SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. 14.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

STEPAN, N. The Hour of Eugenics: Race, Gender and Nation in Latin America. 1.ed. Ithaca: Cornell University Press, 1991.

TRINDADE, D. F. A interface ciência e educação e o papel da história da ciência para a compreensão do significado dos saberes escolares. Revista Iberoamericana de Educación. n. 47. p.1-7. 2008.

Tags:
É editora-chefe da Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades e coordenadora do ContemporARTES. Coordena o grupo de pesquisa do CNPQ Educação em Direitos Humanos/ certificado pela UFABC em parceria com a UFV, UFJF, UFF, UFPA, USS e UFBA. É professora adjunta da UFABC. Pós-doutora em Sociologia pela UNICAMP, doutora em História pela USP com doutorado sanduíche pelo Centro de Estudos de Anti-Semitismo (Universidade Técnica de Berlim). Integrante Permanente da Pós Graduação de Ensino, História e Filosofia da Ciências e da Matemática (UFABC) Autora de Nazismo Tropical (Todas as Musas, 2012), Caça às Suásticas - O partido Nazista em São Paulo (Imprensa Oficial / Humanitas 2007) e outros.

Deixe um comentário