A crise da Companhia de Jesus no século XVIII: a emergência do Iluminismo e a nova mentalidade europeia no ensino

Esse texto procura recuperar a historiografia que aborda a supressão da Companhia de Jesus no século XVIII, importante para entendermos as transformações no processo de ensino da Europa, influenciado pelo Iluminismo, e que teria forte repercussão nas colônias ibéricas na América. Esse contexto foi marcado por profundas transformações no pensamento europeu que assistiu a formação de um discurso intelectual que passou a questionar os dogmas religiosos. Nesse processo, será analisado como a historiografia abordou os projetos de educação que emergiram na primeira metade do século XVIII, conjuntura que assinalou a polarização entre Jesuítas e Iluministas.

O trabalho de Henrique Rosa (1954) faz um balanço do processo de supressão da Companhia de Jesus iniciado no século XVIII com a ascensão dos chamados “déspotas esclarecidos” nos governos da Europa. Para o autor, Portugal foi o primeiro país a expulsar a ordem jesuítica em 1759, sob a autorização do Ministro Marques de Pombal, que ordenou a saída de todos os integrantes na metrópole e nas colônias. A França, local de formação da Companhia de Jesus, em 1762, sob reinado de Luiz XV, também determinou que os inacianos fossem expulsos. A Espanha, que durante dois séculos apresentou uma intensa influência católica tendo a Santa Inquisição como elemento unificador do império, expulsou todos os jesuítas em 1768, no reinado de José III. Diante da pressão internacional, caracterizada pelo crescimento da hegemonia iluminista, o Papa Clemente XIV extinguiu a ordem em 1773, provocando uma profunda mudança no ensino da Europa.

Para Rosa (1954) a crise da doutrina inaciana foi decorrente da articulação do Iluminismo que ascendeu justamente quando os dogmas religiosos no continente passaram a perder força por conta das guerras do século XVII. Ao abordarmos a historiografia que pesquisa a trajetória da Companhia de Jesus, percebemos a importância da França, considerada o berço do iluminismo, país que formou os primeiros jesuítas. Foi justamente em seus centros universitários que emergiram correntes intelectuais contrárias a influencia da Igreja Católica na sociedade, em especial na área de ensino.

Para Sérgio Paulo Rouanet (1987), os iluministas promoviam uma ideia de concepção anti-clerical a partir dos conflitos ocasionados por motivações religiosas que emergiram na Reforma Protestante e na Reforma Católica dos séculos XV-XVI. Exemplo desse processo foram os massacres ocorridos na França após a Reforma de Lutero, as crises políticas na Inglaterra, que levou a perseguições religiosas e as sangrentas guerras envolvendo católicos e protestantes. A Guerra dos 30 anos, que iniciou como uma disputa entre as duas igrejas na Alemanha e conduziu a Europa continental ao conflito mais devastador da História Moderna.

Para além desses conflitos, o pensamento renascentista da época expôs as contradições do mundo moderno, como demonstrou Jean Delumeau (1994), pois mesmo a Europa vivendo num contexto de acelerado desenvolvimento científico e tecnológico, encontramos uma série de fatos que reforçariam a crítica dos Iluministas. A intolerância do Papa que condenou Copérnico e ameaçou Galileu Galilei por conta de suas descobertas sobre a Astronomia. Brian Levack (1988) demonstrou na sua análise a violência institucionalizada da Caça as Bruxas na História Moderna que foram articuladas tanto por intelectuais católicos quanto por intelectuais protestantes, que levou milhares de mulheres para a fogueira. Essa repressão foi articulada principalmente pela Santa Inquisição, instituição que será o baluarte do catolicismo contra a heresia luterana num primeiro momento e, posteriormente, contra as possessões demoníacas.

Embora a Companhia de Jesus não tivesse participado diretamente de toda essa repressão, não restam dúvidas que os inacianos tiveram apoio das coroas portuguesa, espanhola e francesa para atuarem na formação educacional e catequética em seus territórios e nas colônias. O’Malley (2004) reforça a tese de que a ordem conseguiu se fortalecer a ponto de ser uma das maiores congregações do catolicismo surgidas após o processo de reformas religiosas que eclodiram na Europa do século XV. Os colégios e universidades dirigidas por jesuítas cresceram ao longo de dois séculos, apoiados pelos Estados Nacionais e tiveram influência na formação da elite católica europeia.

O pensamento Iluminista estabeleceu a contradição a esse pensamento religioso e foi o fator que contribuiu para a crise entre os Estados Absolutistas e a Igreja Católica no século XVIII. Cézar de Toledo e Vanessa Ruckstadter (2011) abordam a emergência de um pensamento que se posicionasse criticamente em relação aos jesuítas. Esse trabalho utiliza o verbete jésuit, da Enciclopédia Iluminista descritas por Denis Diderot e Jean Le Rond d’Alembert que acusavam os integrantes da Companhia de falsos e imorais. Segundo os autores, a crítica aos jesuítas iniciou em meados do século XVI, quando o polonês Hieronim Zahorowski publicou a obra Monita Secreta, datado de 1614, reforçando a crítica que os protestantes alemães faziam aos jesuítas.

Para Toledo e Ruckstadter (2011) o pensamento Iluminista aderiu à tese da separação do Estado e Igreja, fatores que emergiram numa sociedade europeia cada vez mais burguesa e defensora de instituições laicas. Nesse processo, ocorreu a formação do discurso anti-clerical na primeira metade do século XVIII que foi marcado pela polarização entre dois sistemas de ensino: o hegemônico jesuítico que possuiu ampla influência na Europa Católica contra o emergente sistema Iluminista. Os autores também destacam que embora Companhia de Jesus tivesse alcançado um número considerável de simpatizantes e uma enorme burocracia, enfrentou diversos obstáculos dentro e fora da Igreja Católica.

Toledo e Ruckstadter (2011) afirmam que a oposição aos jesuítas ocorria desde o século XV, no qual a Santa Inquisição, instituição com finalidade de reprimir as heresias, chegou a perseguir o próprio Inácio de Loyola e seus integrantes acusando-os de cometer atos hereges. Mas não apenas no interior da Igreja ocorriam ataques, pois seus adversários externos, em especial os protestantes, acusavam os jesuítas de interesseiros, laxistas e professores imorais, tese difundida pela obra do polonês Zahorowski. A decadência dos jesuítas se acentuou com a ascensão do discurso iluminista inseridos nos governos católicos da Europa na primeira metade do século XVIII.

A oposição ao poder da Igreja católica aumentou com a derrota dos Habsburgos na Guerra dos 30 anos, provocando a decadência gradual do Império Espanhol e a ascensão de países protestantes como Inglaterra e Holanda. A França, mesmo constituindo-se um país de maioria católica, apoiou a aliança contra os Habsburgos, uma vez que já estava adotando politica de separação entre Estado e Igreja desde o massacre dos Huguenotes e a adoção do Édito de Nantes, que permitiu o respeito aos protestantes no território francês. Essa postura passou a ser seguida pelos Estados Nacionais a partir do século XVIII, pois tinham ciência de que a interferência do catolicismo em assuntos políticos causaria graves danos ao seu desenvolvimento econômico.

Teresa da Fonseca Rosa (2014) faz uma abordagem sobre o processo de expulsão dos jesuítas do Império Português a partir dos projetos de reforma postos em prática pelo Marquês de Pombal. A autora destaca que havia uma corrente contrária aos jesuítas na sociedade lusitana, formada por intelectuais que entraram em contato com o Iluminismo francês e que apontaram as causas da decadência portuguesa em sua formação educacional dirigida secularmente pelos jesuítas. “Portugal foi o primeiro reino da Cristandade a solicitar os serviços da Companhia de Jesus, pois que tal solicitação data do ano anterior à sua instituição oficial” (ROSA, 2014, p. 362). E também foi o primeiro a iniciar o processo de expulsão entre os países católicos num movimento que passou a ser seguido por outros Estados.

Serafim Leite (1993) aborda que a ordem estava vinculada ao poder público e não possuía capacidade de formular um padrão de autonomia que lhes garantisse arquitetar uma barganha política maior em escala local. A instituição nunca foi isolada, pois fazia parte do projeto de expansão da Igreja Católica e essa fornecia a justificativa e a base estrutural para empreender o desenvolvimento das colônias. O autor destaca que no panorama geral se torna plausível supor que havia problemas com padres que dificultavam o processo de consolidação das missões e as cartas edificantes (documentos produzidos pelos jesuítas em suas missões com a finalidade de divulgar seus avanços nas missões espalhadas pelo mundo) jamais traria a tona essas questões. Porém, excluída as questões problemáticas, podemos afirmar que a Companhia de Jesus cresceu ao longo de dois séculos graças ao apoio de Roma e dos Estados Absolutistas, em especial os católicos que empreenderam expedições ultramarinas e necessitavam de uma base de apoio nas regiões que se estabeleciam.

Portugal, Espanha e França mobilizaram a ordem jesuítica para consolidar seus domínios na América, fator que mudaria drasticamente a partir do século XVIII quando as críticas dos intelectuais iluministas os colocaram como um obstáculo ao processo de modernização de seus Estados. Nesse período as propriedades dos jesuítas concentravam extraordinárias riquezas enquanto que os tesouros nacionais acumulavam déficits por conta da crise global que a economia passava. Os ministros ilustrados como Marques de Pombal, constatavam que os bens e ativos financeiros da empresa jesuítica seriam a saída para a crise nas contas portuguesas, repetindo assim o mesmo modelo de confisco adotado Henrique VIII na Inglaterra quando rompeu com os católicos no século XVI.

A mentalidade europeia modificou profundamente ao longo dos dois séculos, e as teses religiosas passaram a ser questionadas por doutrinas laicas dando lugar aos elementos jurídicos que constituem os Estados burgueses do final do século XVIII. Serafim Leite avalia que entre o exílio dos jesuítas das missões de 1760 e a supressão pontifícia da Ordem em 1773 há um espaço temporal de 13 anos, após isso teremos o início das Revoluções Americana, 3 anos depois, em 1776, e a Francesa, em 1789. Vale destaca que a ordem não foi dissolvida por completo na Europa, tendo em vista que em 1814 foi restabelecida e, a partir de 1841, retornou ao Brasil, em especial com a imigração de italianos e alemães promovidos pelo reinado de Dom Pedro II. Esses padres fizeram renascer os colégios, universidades, missões, obras sociais e ainda mantiveram a memória do prestígio antigo da Companhia de Jesus evocando os padres Nóbrega, Anchieta e Vieira.

 

Referências bibliográficas

ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1995.

BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.

BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Globalização: o que tem isso a ver com os jesuítas? In: _______, NEUTZLING, Inácio; DOWELL, João A. Mac. (orgs.). A globalização e os jesuítas: origens, história e impactos. São Paulo: Edições Loyola, [p. 9-11], 2007.

DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da reforma.Tradução João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989.

LEITE, Serafim. Breve História da Companhia de Jesus no Brasil: 1549-1760. Braga: Apostolado da Imprensa, 1993.

LEVACK, Brian. A Caça ás Bruxas na Europa Moderna. São Paulo: Campus, 1988.

O´MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas.Tradução: Domingos Armando Donida. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS; Bauru, SP: Ed. EDUSC, 2004.

ROSA, Henrique. Os jesuítas: de sua origem aos nossos dias. Petrópolis, RJ: Vozes Limitada, 1954.

ROSA, Tereza da Fonseca. O iluminismo e a expulsão dos jesuítas do Império Português; as reformas pombalinas e o plano dos estudos menores. Revista de História Regional 19 (2:361-383,2014). Disponível em  http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr.

ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

TOLEDO, Cézar e RUCKSTADTER, Vanessa. O ANTIJESUITISMO NO SÉCULO XVIII: UMA ANÁLISE DO VERBETE JÉSUITE DA ENCYCLOPÉDIE ILUMINISTA. Revista Contrapontos – Eletrônica, Vol. 11 – n. 2 – p. 228-235 / mai-ago 2011

Graduado em Estudos Sociais Habilitação Em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2003), mestrado em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2006) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2012). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Amapá. Tem experiência na área de História, com ênfase em História, atuando principalmente nos seguintes temas: santa cruz do sul, elite local, ditadura militar, rio grande do sul e prosopografia.

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