Registros de violação à dignidade humana: algumas considerações.

No dia 14 de abril de 2018, recebi o convite do professor Airton Pereira para participar das homenagens que seriam prestadas ao Frei Henri Burin Des Roziers (18/2/1930 –26/11/2017) no município de Xinguara-PA, distante de Marabá cerca de 245 km. Falou-me que seria um momento importante, por dois motivos. O primeiro seria o lançamento do livro Apaixonado por Justiça (2018) sobre Frei Henri, o qual é composto de entrevistas do frei acerca de sua trajetória e sua luta pelos direitos humanos no tocante ao uso e à ocupação da terra no Sul e Sudeste do Pará.

Geovanni Cabral

O fotógrafo

No dia 14 de abril de 2018, recebi o convite do professor Airton Pereira para participar das homenagens que seriam prestadas ao Frei Henri Burin Des Roziers (18/2/1930 –26/11/2017) no município de Xinguara-PA, distante de Marabá cerca de 245 km. Falou-me que seria um momento importante, por dois motivos. O primeiro seria o lançamento do livro Apaixonado por Justiça (2018) sobre Frei Henri, o qual é composto de entrevistas do frei acerca de sua trajetória e sua luta pelos direitos humanos no tocante ao uso e à ocupação da terra no Sul e Sudeste do Pará. O segundo a cerimônia para o depósito das cinzas do frei Henri, trazidas da França, que ficariam no memorial construído dentro do assentamento que leva seu nome, no município de Curionópolis, no sul do Pará. Havia comentado com o Airton, anteriormente, sobre minhas leituras e meus interesses pelas fotografias dos movimentos sociais. A partir dessa conversa, ele disse que um amigo, o fotógrafo João Laet, iria registrar o evento, o que seria uma oportunidade interessante para dialogar sobre seu trabalho. Eu não poderia perder esse momento. Além do João, estava também uma outra amiga da Comissão Pastoral da Terra de Mato Grosso. No dia seguinte, entre apresentações e apertos de mãos, seguíamos viagem.

A estrada não estava muito boa, vários buracos devidos às fortes chuvas que vinham caindo na região. Havia, inclusive, trechos da estrada que tinham cedido devido à força das chuvas. Podia-se ver, ao longe, barulho de máquinas e tratores tentado montar contenções de pedras para os carros passarem. Foi nesse cenário da viagem que os diálogos foram tecidos. Falávamos da luta pela terra, da violência impetrada por fazendeiros na região, do trabalho escravo e das várias fazendas ao longo do percurso até Xinguara, palco de investigações e conflitos.

João estava sempre atento à paisagem, aos movimentos das pessoas na estrada e dos animais que cruzavam o pasto a perder de vista na imensidão das fazendas. Áreas de florestas devastadas para a criação do gado bovino ou para a plantação do milho. Mas, também podiam ser visualizados, nesse cenário, acampamentos, assentamentos, bandeiras do MST ao vento, sinalizando que a luta pela Reforma Agrária permanece firme e forte. Mulheres, homens e crianças surgiam nos acostamentos, alguns vendendo bananas e outros olhando os carros e caminhões carregados de soja passarem, fruto do agronegócio que se estabelece nas terras e fronteiras da Amazônia.

O debate fluía. A viagem seguia. No almoço, já em Xinguara, foi que o tema da fotografia começou a convergir para minhas inquietações. João Laet, diante de sua simplicidade, contava histórias de alguns registros e dos desafios dessa captura, tão comum em sua trajetória. Lembro que, em uma dessas descrições, falava que a fotografia tem seu “tempo”, ela pode ocorrer naquela fração de segundo, pode levar dias para acontecer, pode estar dentro de alguma programação etc. Vários são os fatores que podem corroborar para o “olhar fotográfico”. Ele observava atentamente suas câmeras, os ângulos escolhidos, as trocas de lentes em um frenético registro do tempo e de memória. Fez toda a cobertura do evento, selecionou imagens, amigos, gestos, movimentos que julgou importante para a ocasião. Essas fotografias serão disponibilizadas no arquivo da Comissão Pastoral da Terra de Xinguara-PA. Na volta, trocamos contatos e ele sugeriu que eu acessasse sua página na internet “joaolaet.com”. Foi quando passei a entender melhor o trabalho desse fotógrafo.

Joao Laet, que atualmente reside no Rio de Janeiro, vem atuando no ramo da fotografia desde 2000; já trabalhou no Jornal O Dia, com fotojornalismo, entre 2005 e 2016, e atuou na Comissão Pastoral da Terra entre os anos de 2004 e 2005, ponto que me chamou a atenção, principalmente pelas fotografias documentais de trabalhadores vítimas do trabalho escravo no sul do Pará. Sua página contém fotografias de uma estética única, de um olhar que capta o humano em sua dimensão histórica e cultural.

A Fotografia

Como mencionei, o “olhar fotográfico” de Laet acerca do trabalho escravo — captado durante o período que trabalhou como agente da CPT — despertou não apenas meu interesse, mas leituras diante dessas imagens que registram olhares, feições, dinâmicas de um tempo de homens “escravizados” (Figura 1). Sua estética visual está presente na construção dessa realidade que enquadrada pelas lentes de sua câmera; permite-nos caminhar por essa trama fotográfica. Kossoy (2014) chama a atenção para esse processo de construção de realidades que, ao mesmo, documenta, tece narrativas e representações visuais.

Figura1. Trabalhador resgatado, 2004/2005. Marabá. Fonte: Acervo João Laet ( Joaolaet.com)

Essas fotografias registradas de homens resgatados do trabalho escravo nos permitem refletir acerca dos dados alarmantes contabilizados no Brasil entre os anos de 1995 a 2017; por exemplo, onde foram resgatados mais de 50 mil trabalhadores em condições análogas ao trabalho escravo, segundo dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Os números são impactantes, assim como as fotografias de João Laet ou de João Ripper, que traz esse “humano” silenciado por um contexto de exploração, mas vivo em sua força e dignidade. Ambos fotógrafos buscam, nas feições humanas, nos momentos de registro, o natural, o belo, a denúncia, o desejo de “gritar” que, mesmo congelado, ultrapassa as retinas.

Quando nos deparamos com as fotografias de João Laet, encontramos o olhar da angústia, do desespero, da revolta diante da violação dos direitos. Trabalhadores que são levados por aliciadores ou “gatos”, como são conhecidos. Fazem promessas, deixam dinheiro com a família, criam um cenário cheio de ilusões e fantasias. Seguram suas carteiras de trabalho na eminência de podê-las registrar, coisa que não acontece, além de não serem devolvidas. Chegando ao local, passam a trabalhar em condições degradantes, com jornadas de trabalho excessiva, isolados de outras pessoas e, muitas vezes, até prisioneiros em fazendas e carvoaria. Isso sem mencionar os maus tratos e a violência, inclusive por executarem seu trabalho sob a mira de armas e pistoleiros.

Em uma das fotografias do acervo de Laet, o trabalhador faz questão de exibir uma página da caderneta do controle “alimentício” dos trabalhadores (Figura 2). Um homem resgatado mostra a caderneta onde era registrada a compra dos produtos na fazenda. Ou seja, eles chegavam ao local de trabalho sem dinheiro e tudo que consumiam era anotado nesse caderno. No final do mês, ao receberem o dito “salário” pagavam o que deviam e voltavam a comprar tudo de novo. Isso quando recebiam alguma coisa. Caso contrário, a dívida aumentava, não conseguiam pagar o alimento e voltavam para o trabalho. Nessa prática abusiva, eles não tinham como visitar sua família e estavam presos a uma situação criminosa. Na caderneta, podemos visualizar a nota de feijão, manteiga, arroz, café, óleo, produto de limpeza, cartela de ovos, farinha etc.; itens que integram o que muitos chamam de cesta básica e que esses trabalhadores chamavam de “bóia”. As compras eram registradas e controladas. Podemos perceber que nada fugia ao controle e, dessa forma, estabelecia-se um ciclo de dependência entre o comprar e o pagar.

Figura 2. Trabalhador resgatado mostrando caderneta. Fonte: Acervo de João Laet ( Joaolaet.com).

As fotografias desses trabalhadores foram captadas logo que eles chegaram à cidade de Marabá-PA, resgatados pelo exército e por agentes da polícia, na chamada Terra do Meio, segundo o João Laet. O relato do fotógrafo nos possibilita problematizar os desafios do registro, principalmente por envolver vários órgãos de combate ao trabalho escravo, uma tarefa que demanda toda uma logística de apreensão e execução (Figura 3).

Figura 3. Trabalhadores resgatados mostrando caderneta de compras, 2004/2005, Marabá. Fonte: Acervo João Laet (Joaolaet.com).

As fotografias desse momento pós-resgate trazem, em seu campo visual, o alívio diante da situação. Uma vez libertos, podiam encontrar sua família, tirar os documentos e trabalhar de forma digna com os direitos trabalhistas e humanos garantidos. É interessante observar que o fotógrafo se vê inserido nessas questões, passa a vivenciar esse contato humano, esses olhares que chegam até ele. Não tem como não se sensibilizar diante dessas ações. Podemos perceber que, para o resultado dessas fotografias, além da produção do João Laet existiu toda uma confiança dos trabalhadores no trabalho executado. Outro elemento também se faz presente nessas negociações. Não é apenas chegar, fotografar e postar na página. O respeito pelo próximo é algo fundamental nesse tipo de atividade fotográfica.

Sobre essa relação entre o fotógrafo e o fotografado, Laet, explica que: Os trabalhadores que passaram pela escravidão moderna e que vêm de uma realidade tão diferente da minha, estabeleceram uma confiança em mim. Eu vou carregar esta responsabilidade pelo resto da vida”. Esse tipo de ação é essencial para trabalhos que envolvem pessoas, imagens humanas e espaços privados, porque são registros que estão além das câmeras.

Nesse sentido, podemos pensar que o registro fotográfico tem seu próprio tempo, sua trajetória, o que nos possibilita entender as urdiduras de sua produção. Ela parte de intenções, ações e relações estabelecidas. Ao descrever as imagens dos “escravos” resgatados da fazenda, por meio das lentes do Laet, estamos diante de indícios de caminhos que podemos percorrer para entender a violação aos direitos humanos diante dos abusos cometidos por fazendeiros, gatos e pistoleiros que atuam nesse cenário sombrio do trabalho escravo.

Referências

KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.

______. Fotografia e História. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.

Endereços eletrônicos:

https://cptnacional.org.br/

http://portal.mpt.mp.br

https://observatorioescravo.mpt.mp.br/

 

 

 

 

 

 

 

Possui Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco- UFRPE, Especialização no Ensino de História -UFRPE, Mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco- UFPE, Doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco- UFPE - área de concentração História do Norte e Nordeste do Brasil. Tem experiência na área de História Cultural, Brasil Republicano, História da Educação, Ensino de História, Cultura Popular e Patrimônio e Educação à Distância. É Professor Adjunto da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e membro do grupo de pesquisa Interpretação do tempo: ensino, memória, narrativa e politica (iTempo - CNPq/Unifesspa). Atualmente vem desenvolvendo pesquisas na área do Ensino de História tendo como eixo investigativo o uso da fotografia em sala de aula e novas linguagens. Autor e coordenador dos livros A história e suas práticas de escrita, editados pela Editora da Universidade Federal de Pernambuco.

Deixe um comentário