POESIA NA RUA: O CANTO FÚNEBRE POR MARIELLE FRANCO.

Tudo que está morto como fato, continua vivo como ensino.

Victor Hugo

Foto gentilmente concedido por Cristiano Valério

Sou um apaixonado pela Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. A Parada é o meu Natal. Ver in locus tanta diversidade movimentando uma celebração da vida, do amor, dos corpos, dos afetos me deixa em puro êxtase. Esta é a razão porque amo tanto a Parada. Mas a deste ano foi especial para mim. Cheguei e logo vi um camelô vendendo uma bandeira do arco-íris com uma estampa de Marielle Franco. Quem conhece a dinâmica dos camelôs sabe muito bem que eles procuram produtos com saída rápida. Ver, não um, mas vários camelôs vendendo a imagem da Marielle estampada na bandeira LGBT mostrou qual era a tônica dessa grande manifestação. Na abertura, a drag queen Tchaka​ contou a trajetória de Marielle e apresentou sua esposa viúva que, logo em seguida, fez uma fala emocionante. E a cada grito de MARIELLE, a multidão respondia PRESENTE. A homenagem iniciou-se na caminhada lésbica realizada no dia anterior e estendeu-se à Parada.

É raro ver uma multidão cultuar tão fortemente a memória de alguém de forma tão apaixonada. Lembrei-me inevitavelmente de Victor Hugo, o grande poeta e escritor francês do século XIX, autor de “Os Miseráveis”, que morreu em 22 de maio de 1885. Seus restos mortais foram expostos sob o Arco do Triunfo, em Paris, e, após trinta dias, levados ao Panthéon por um cortejo de dois milhões de pessoas. Esta honraria não se deveu apenas a sua produção literária, mas ao fato de ter feito da poesia uma vida e da vida uma poesia. Participou ativamente contra o Golpe de Estado perpetrado por Luís Napoleão em 1851, defende a anistia dos “communards” da Comuna de Paris, lutou contra a pena de morte, pelo direito político das mulheres e fez da sua vida e da sua arte um meio de esperança e transformação.

Tal qual a morte de Victor Hugo, Marielle foi cortejada por quase 4 milhões de pessoas na Avenida Paulista. Assim como a grande multidão de franceses viu naquele homem a expressão máxima de suas vozes em momento de crise e grandes mudanças no cenário político francês do século XIX e pós Revolução, nós, a multidão de LGBT em São Paulo, mostramos que aquela mulher negra da favela da Maré foi morta por ser uma de nós. E se morremos com ela no fatídico 14 de março deste ano, três meses depois, na maior festa LGBT do mundo, fizemo-la viver em nós: eis a poesia na rua. Morremos a sua morte para torna-la símbolo do que acreditamos e daquilo que queremos.

Foi o funeral mais lindo que assisti em toda a minha vida. O mais lindo funeral, porque festivo e, dessa festa, carnavalizamos com os nossos corpos e nossas vozes o significado histórico do símbolo: não um homem branco heterossexual da principal cidade do continente europeu no século XIX, mas uma mulher negra lésbica da favela da Maré em um país na América Latina que foi elevada à posição de símbolo na maior festa política do século XXI. Foi o funeral mais lindo porque traduziu em festa a luta de Marielle, potencializando-a na esperança e na crença de que um mundo com maior igualdade e justiça, sobretudo para mulheres, LGBT, negras, favelas, este mundo que tanto defendeu Marielle continua valendo a pena lutar. Por fim, o mais lindo funeral, porque a Parada é colorida pelas contradições, tais quais vemos e vivenciamos nas favelas e nas periferias do Brasil – pessoas de diferentes cores religiosas, ideológicas, de preferências estéticas e culturais juntaram-se para fazer deste domingo o grande funeral de Marielle Franco, mas não para chorar a sua morte, mais que isso, torna-la símbolo do que acreditamos e daquilo que defendemos. Tudo isso feito por meio de uma junção caótica das contradições individuais: o berço privilegiado da poesia.

A grandeza de Marielle tomou conta da Avenida Paulista de tal forma que me fez lembrar também o poema de Brecht que coloco aqui adaptado:

“Há mulheres que lutam um dia e são boas, há outras que lutam um ano e são melhores, há as que lutam muitos anos e são muito boas. Mas há as que lutam toda a vida e estas são imprescindíveis.”

 

MARIELLE PRESENTE, PORQUE IMPRESCINDÍVEL!!!!!

 

Professor de Teoria Literária, autor do livro de contos "Candelabro" e apaixonado por Literatura.

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