“DEUS NASCEU PROS RICOS” OU O PERCURSO NARRATIVO DE CHICO BENTO EM “O QUINZE” DE RACHEL DE QUEIROZ

Chico Bento e Vicente, duas personagens do romance O Quinze de Rachel de Queiróz, acostumados com o trato do gado nas fazendas de Quixadá. Além da experiência com o gado, ambos compartilham da grande seca de 1915 e ambos fazem o percurso de Quixadá à Fortaleza. Esses elementos compartilhados entre as duas personagens, bem como outras que aparecem no romance, faz com que os leitores comuns e principalmente a crítica literária defina o romance como uma narrativa da seca nordestina que inaugura o movimento regionalista do período entre 1930 a 1945.

O primeiro crítico responsável por chamar atenção ao romance foi o poeta Augusto Frederico Schmidt que o definiu como mais um livro sobre a seca (SCHMIDT, 1972, p. 6). Nelson Werneck Sodré, em sua História da Literatura Brasileira, ao tratar deste romance, determina sua significação ao fato de inaugurar uma série de romances que retratam a seca e descrevem-na como flagelo repetido feita por alguém que só apresenta o caráter exterior das coisas (SODRÉ, 1982, pp. 550). Apenas citando estes dois, percebemos ter já se tornado lugar comum encaixotar o primeiro romance da escritora cearense no conjunto de narrativas sobre a seca.

Não há dúvidas de que a ficcionalidade deste romance se desenvolve no contexto da seca de 1915, mas fazer dela seu tema central é perder suas características literárias e transformar a obra em um mero texto documental. Infelizmente, foi o que boa parte da crítica acabou fazendo. Do que trata o romance então? Ou melhor: qual o seu tema central? Para melhor identificarmos, proponho que primeiro entendamos a narrativa como percurso geográfico de Quixadá a Fortaleza. Nesse percurso, dois grupos se destacam: a família de Chico Bento e a família de Vicente. Após ser dispensado por Dona Marocas, parente de Vicente, Chico Bento o procura para fazer negócio com alguns gados que tinha, pois seu objetivo era ir para a Capital do Ceará e de lá migrar para o Amazonas com intuito de buscar uma vida melhor para ele e sua família. Ao pedir-lhe um determinado valor, o fazendeiro regateia e consegue por bem menos. Em conversa com seu pai, este elogia a boa negociata que o filho havia feito comprando do vaqueiro o gado de raça.

Além do péssimo negócio, Chico Bento também não consegue as passagens de trem para a Fortaleza. O preposto, responsável pela venda das passagens, afirma não tê-las mais e que o vaqueiro deveria esperar por um mês ou ir por terra, mas Chico Bento descobre outra motivação para a negativa:

Na loja do Zacarias, enquanto matava o bicho, o vaqueiro desabafou a raiva:

– Desgraçado! Quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres… Não ajuda nem a morrer!

O Zacarias segredou:

– Ajudar, o governo ajuda. O preposto é que é um ratuíno… Anda vendendo as passagens a quem der mais… (QUEIROZ, 2010, p. 35)

Esses dois episódios que se desdobram da seca, ou melhor, que têm a seca como motivador, traçam a sina da família de Chico Bento. Atentos a esses dois episódios, vemos que outro é o percurso da família de Vicente. Sua tia Inácia, indo com Conceição para Fortaleza, o faz pelo trem e mesmo Vicente quando vai visita-las por conta de seu namorico com a prima, vai e volta de trem. O narrador evidencia dois percursos desiguais trilhados pelas personagens no contexto da seca: o primeiro que se dá na transação comercial entre Chico Bento e Vicente, isto é, o vaqueiro, para sobreviver, vê-se obrigado a vender seu pequeno gado a preço de custo, já Vicente, para lucrar, aproveita-se da necessidade do outro para regatear ainda mais o preço; o segundo refere-se ao episódio do trem, por não contar com muito dinheiro, Chico Bento não consegue as passagens, diferentemente da família de Vicente que as consegue com facilidade.

As diferentes formas de vivenciar a seca, obviamente, resultam em diferentes efeitos que marcam as personagens. Desse modo, quando Vicente visita Dona Inácia e Conceição em Fortaleza, a prima ao observá-lo permite que o leitor saiba qual seja a condição de saúde do primo:

Conceição, calada, olhava o primo. Estava mais bonito. Ficava-lhe bem, a roupa cáqui; muito vermelho, queimado do sol, os traços afinados pela labuta desesperada, as pernas fortes cruzadas, as mãos pousadas no joelho, falava lentamente com seu modo calmo de gigante manso. (p. 81)

Evidencia-se nessa descrição que a seca é experienciada por Vicente e sua família de forma externa, causando nenhum flagelo em seu corpo. Outra é a realidade da família do vaqueiro quando Conceição os encontra no Campo de Concentração em Fortaleza:

Afinal ali estavam. Foi realmente com dificuldade que os identificou, apesar de seus olhos já se terem habituado a reconhecer as criaturas através da máscara costumeira com que as disfarçava a miséria (…) E a criança que outro tempo trazia Cordulina tão gorda, era decerto aquela que lhe pendia do colo, e que agora a trazia tão magra, tão magra que nem uma visagem, que nem a morte, que só talvez um esqueleto fosse tão magro… (pp. 94-95)

A seca, portanto, como elemento comum entre as personagens não é vivenciada da mesma forma. O corpo torna-se o lugar que demarca a desigualdade de vivências da seca e, como já vimos, essa desigualdade não é da ordem natural, mas política e econômica. A família de Chico Bento desempenha a função de serviço para a família de Vicente e, mesmo quando se colocam em papel de negociação, as condições socioeconômicas evidenciam a desigualdade dessa negociação. Até porque ela parte de motivações economicamente desiguais como já vimos. O percurso, portanto, estabelecido na narrativa mostra qual o tema central do romance: a desigualdade econômica revelada pela seca. Trata-se de uma desigualdade revelada e não produzida pela seca, pois os tempos de bonança não produzem um nivelamento entre esses diferentes sujeitos. Pelo contrário, ele mascara o sistema perverso da cordialidade que se estabelece entre os donos da terra e seus trabalhadores desde o período de colonização no Brasil. Como afirma o delegado e compadre de Chico Bento, Luiz Bezerra, a ganância da riqueza de Dona Maroca não surge com a seca, mas já está presente mesmo em tempos de bonança (p. 90).

Desse modo – e para encerrar – a beleza do romance está não por tratar da seca em si, mas, ao partir dela, evidenciar a desigualdade, o abuso, a exploração do trabalho que resulta em quadro de miséria e violência no modelo colonial-capitalista que define o sistema político e econômico do Brasil. Como bem define Chico Bento no momento de raiva, toda essa situação que ainda iria vivenciar só mostra que Deus só nasceu pros ricos. Este tratamento possibilita quadros ficcionais belíssimos como o do capítulo dez que narra a morte de Josias – um dos filhos de Chico Bento e Cordulina com o qual encerro este texto: Chico Bento se encostara à vara da prensa, sem chapéu, a cabeça pendida, fitando dolorosamente a agonia do filho. E a criança, com o cirro mais forte e mais rouco, ia-se acabando devagar, com a dureza e o tinido dum balão que vai espocar porque encheu demais. (p. 60)

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

SCHMIDT, Augusto Frederico. “Fortuna Crítica”. In: QUEIRÓZ, Rachel. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. 7. Ed. Atualizada. São Paulo DIFEL, 1982

Professor de Teoria Literária, autor do livro de contos "Candelabro" e apaixonado por Literatura.

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