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Viver em sociedade é desempenhar um papel político. A dança espelha o social e também é uma maneira de militar politicamente, quebrando paradigmas ou mantendo preconceitos e padrões arraigados. O papel do condutor na dança a dois é supervalorizado porque historicamente é ou era desempenhado por um homem. Alguns atributos e funções assumidos pela masculinidade na sociedade patriarcal foram também depositados no personagem do condutor. Ser racional, líder, agente de uma ação, dotado de voz e opinião, expressão, criatividade e ímpeto, aquele que dá suporte e proteção, eis características cartesianas esperadas de um macho na sociedade patriarcal.
Sobrou para a mulher todo o inconsciente de um mundo que valoriza apenas o pensar… Dar conta do sentir, do intuir, da fragilidade humana, da espera infinita e submissa, do agir na surdina sem ser vista, sem ter seu nome publicado. Foi delegado à ela o silêncio contido de palavras presas e o caos do mundo e do ser humano. Restou à fêmea ideal, responder sim senhor ao seu macho, sem discutir, a loucura, a insanidade, a histeria… Deixaram-lhe ainda de presente a maçã do Éden, afinal de contas quem seria capaz de cometer um ato profano como este, o sexo? Só a mulher poderia não usar a razão e se deleitar em uivos de prazer, sendo assim chamada de puta, lasciva, vaca, luxuriosa. Ele? Não, não é puto, não: é muito macho! Restou à mulher viver e significar o corpo. E quanto ao espírito? Coisa de bruxa! Intuição? Bruxaria! Tudo que a sociedade tem medo e não cabe dentro da razão é… coisa de mulher…
A divisão “cavalheiro conduz” (entende-se por: manda) e “dama fecha os olhos e sente” (traduz-se por obedece exatamente o que o cavalheiro ordenou), advém dos papéis tradicionais de uma sociedade patriarcal, machista e binária que atribui ao homem o pensamento racional e à mulher tudo o que não é cartesiano nem mensurável pela razão. Xs outrxs gênerxs? Nunca existiram, claro, dentro da hipocrisia binária da divisão de papéis sociais. O inconsciente e a sinestesia ficam jogados ao encargo das mulheres, e a dama na dança a dois assumiu estas características sem refletir o simbolismo delas. Aos homens, coube executar passos. Às mulheres, seguir obstinadamente, fazendo muitos charmes, sorrindo, sempre.
Passaram-se os anos e hoje o feminismo já não está mais nos tempos de Beauvoir… porém, a maioria das escolas de dança e bailes ainda trabalham com condutores e conduzidos, e pior que isso, focam suas aulas nos primeiros (quando não usam o termo cavalheiros e damas!), oferecendo mais passos que técnicas corporais para uma melhor comunicação com o par. As aulas novamente focam no que é mais racional, inteligível, identificável, classificável. Ao conduzido ainda é ensinado fechar os olhos e sentir, sem ser minimamente orientado com alguma técnica sobre esse sentir…como alcançar este tal sentir o par? Fica bem subjetiva uma aula desta forma… Com este pensamento, muitas baladeiras replicam o padrão machista e binário dizendo que não precisam de aulas de dança, afinal de contas, se elas tiverem um bom cavalheiro conduzindo, conseguem seguir e dançar bem… Também com este padrão de aula focada no condutor, para que mesmo serviria a aula ao conduzido, se é só fechar os olhos e sentir?
Muitas pessoas só pedem aula para uma professora ou valorizam seu trabalho quando a veem conduzindo bem. Porém, não acontece, por exemplo, questionarem um professor do sexo masculino sobre ele saber ser conduzido, muito menos se ele é bom neste papel, menos ainda se sabe transmitir técnicas precisas para ser um bom conduzido.
Como quebrar estes paradigmas? Estudar qualquer assunto, sempre faz com que se alcance melhores resultados. Portanto, quem diz que não precisa de aula, que aprende absolutamente tudo na raça e na balada, deve ter nascido gênio! E refletir sobre o dançar é fundamental para que se mudem as pistas, para que elas se tornem mais igualitárias e tenham danças de qualidade melhor, para ninguém ir machucado para casa… Primeiramente, portanto, penso que deveríamos dar atenção, numa aula de dança, igualmente ao condutxr e ao conduzidx, (sem gênerx! Qualquer pessoa pode experimentar ambos os lados), dividir o tempo da aula entre os papéis. Além disso, existem técnicas para ser um bom conduzido e até para trabalhar e desenvolver a sensação, o conforto, a conexão com o par. Mas também penso que deixar a razão, a palavra, a criatividade somente para o condutor e a emoção, a resposta, a espera somente ao conduzido empobrece demais a dança.
A dança a dois é uma língua que depende de vocabulário e comunicação. Eu penso no diálogo de uma dança entre condutxr e conduzidx (sem falar em condução compartilhada ainda), como lugar de uma proposta e uma contraproposta o tempo todo. O par, condutxr ou conduzidx, sempre responde com outra proposição e isto torna a dança criativa para ambos os lados e necessita de espera e conexão dos dois. Condutxr e conduzidx dispondo da razão, emoção, intuição, sensação, e todos os artifícios para que a conversa seja divina e possa transcender os corpos, as mentes, ultrapassar a alma, alcançar o êxtase e invadir o universo com sua energia de encontro. A partir daí, podemos começar a imaginar um mundo menos binário e falar em condução compartilhada onde todxs conduzem ou são conduzidxs ao mesmo tempo, mas este assunto fica para o próximo texto…
O fato de se pensar, em sala de aula ou nas pistas de dança e bailes, numa comunicação mais horizontal e num conduzidx mais ativo e pensante e um condutxr mais sensível e ouvinte já é uma forma de militância e uma maneira também de diminuir o machismo, incluir outrxs gênerxs e de mudar os papéis binários homem/mulher dentro da sociedade. Dançar também é fazer revolução.
Um pouco sobre o Mulheres que Conduzem
iris De franco é criadora, junto com Fernanda Squariz, do projeto Mulheres que Conduzem, espaço de fortalecimento da mulher, sediado em São Paulo, que tem por intuito lutar contra os preconceitos dentro da dança a dois e possibilitar a vivência, a pesquisa e sua profissionalização de forma mais igualitária. O foco do projeto é a condução livre de gênero no forró com um minucioso estudo do corpo e sua conexão com o par e com o mundo; e as rodas de conversa sobre gênero na dança. Mulheres que Conduzem não pretende excluir, mas sim possibilitar a boa convivência entre todxs xs gênerxs, de todas as idades, raças e classes sociais.
Nas aulas e bailes do Mulheres que Conduzem, todos os participantes podem aprender o papel de condutxr e conduzidx, independente do gênerx e opção sexual (ninguém é obrigadx a desempenhar os dois papéis, é possível escolher o estudo de um deles).
Usar a dança a dois como forma de militância política é produtivo, pois o espaço de aula e baile é um ambiente social favorável à integração e socialização, principalmente no forró, ritmo democrático. Nas pistas de dança de forró (fala-se aqui do forró sudestino nascido em meados da década de 90) entra gente trajada de chinelo e roupa furada, entra engravatado, negro, branco e estrangeiro. Como há muitos bailes gratuitos e acessíveis, várias classes sociais se misturam e convivem. Além disso, o forró das pistas de dança do sudeste é mais fácil que outros para início do aprendizado – com o tempo adquire enorme complexidade e muitos não sabem disso! Por este motivo, ele inibe menos o iniciante, quem abraça e troca o peso de um lado para outro já se sente dançando. Por todas estas razões, o forró é um local favorável para a inclusão e harmonização social.
Observa-se com a trajetória do Mulheres que Conduzem, que a maioria das pessoas que começa a dançar forró e faz deste meio um estilo de vida fica menos inibida, mais sociável e mais amável. Também chamado de meditação a dois, o forró tem trazido benefícios para a saúde de diversas pessoas no mundo, fazendo com que seus praticantes possam se reconectar ao interior de si mesmos, promovendo a melhora da autoestima, da saúde, do sono e das funções motoras. O abraço da dança a dois é terapêutico, traz aconchego, conforto e paz, podendo curar até doenças graves. Veja os estudos de Alzheimer e tango em hospitais em https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/ciencia/2009/08/31/pacientes-de-varias-doencas-adotam-tango-como-nova-terapia.htm?cmpid=copiaecola
A dança a dois também propicia um descobrimento e consciência da própria psique e corpo, fazendo com que o ser humano se entenda melhor e se coloque de forma saudável e produtiva no mundo, bem como proporciona a vivência da civilidade e harmonização social. Existem estudos acadêmicos sobre o “abraço do forró” e as benesses que este ritmo pode trazer à saúde. Estudos sobre forró e os papéis de gênero e outros temas que envolvem a abrangência e presença desse ritmo na cultura brasileira e no mundo (Conferir NUNES; SOUZA, 2010; COSTA, 2013; SARQUIS, 2013) . E os brasileiros estão exportando o “forró lifestyle”. Veja o vídeo do forró em Sydney, Austrália: https://www.facebook.com/nalivaimedia/videos/218239282082017/?hc_ref=ARRBnjuqojTr2tt-8CcJDmdNv1HLF2LkgsP1q7Pvj-sZiCMskaFRjDsYD9v_X0zHNHo&fref=nf
O Mulheres que Conduzem desenvolve um trabalho dentro da dança a dois, que reúne técnica, entrega e militância política, ligado à desconstrução de paradigmas de gênero, com vistas em desengessar as relações entre mentes, espíritos e corpos. Veja os vídeos com as rodas de conversa, aulas e condução alternada e conheça mais sobre o projeto: www.mulheresqueconduzem.com.br
iris De Franco
Referências:
COSTA, Amanda Abreu.Mulheres no forró: estilizações de gênero, discurso e ideologia. Dissertação (Mestrado em Linguística). Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2013.
NUNES, El-Buainin Vieira Machado; SOUZA, Santinho Ferreira de. O forró e suas configurações: a aliteração, a mulher, o homem, o movimento corporal e o ambiente nas canções forrozísticas. Revista Entrelinhas.V. 8, n. 1 2014.
SARQUIS, Joana. Forró sem fronteiras : o movimento em Portugal. Dissertação de Mestrado. Universidade de Lisboa. Faculdade de Motricidade Humana, 2013.
Sites:
www.mulheresqueconduzem.com.br. Acesso em setembro de 2018.
https://www.facebook.com/nalivaimedia/videos/218239282082017/?hc_ref=ARRBnjuqojTr2tt-8CcJDmdNv1HLF2LkgsP1q7Pvj-sZiCMskaFRjDsYD9v_X0zHNHo&fref=nf. Acesso em agosto de 2018.
https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/ciencia/2009/08/31/pacientes-de-varias-doencas-adotam-tango-como-nova-terapia.htm?cmpid=copiaecola Acesso em agosto de 2018.