Em seu livro Um teto todo seu publicado em outubro de 1929, Virgínia Wolf comenta que as mulheres sempre servem de espelho para os homens e, não um espelho comum, mas espelho com poderes mágicos por ter a capacidade de refleti-los o dobro de seu tamanho normal. Esta alegoria do espelho, conforme apresenta a autora, serve para evidenciar como a mulher é usada para a vitalidade do homem e de estímulo para o seu sistema nervoso. Basta que se exclua este uso da mulher e o homem, como um viciado em cocaína e privado de seu vício, certamente morrerá. A citação a essa alegoria do espelho é feita na dissertação de Ana Paula Costa Oliveira sobre o desejo erótico na poesia de Gilka Machado para evidenciar tanto o modo de produção da lírica gilkiana, como também os modos de recepção, sobretudo negativos, da crítica contemporânea à poetisa carioca.
É sabido o papel que a mulher ocupa na poesia ocidental como objeto do desejo masculino. Se, nos tempos atuais, ainda não se vê tantas produções femininas que rompam com esse papel, no início do século XX, esse rompimento fez de Gilka Machado pioneira na poesia brasileira, ao se permitir poetizar o desejo erótico sob o prisma do feminino. Obviamente, tal produção agitou a capital brasileira, com várias críticas negativas, adjetivando-a inclusive de “matrona imoral” ou, supostamente positiva, mascarando o fetiche masculino como observa Maria Lúcia Dal Farra na apresentação da autora em sua Poesia Completa (2017). Independentemente de como tenha sido a recepção de suas poesias, o fato é que Gilka marcou a sua época e foi marcada por essa crítica, se reinventando a cada obra produzida. Como ela mesma afirma em suas Notas Autobiográficas, a crítica a machucou e manchou seu destino, mas também a imunizou contra as malícias dos adjetivos.
Data de 1915 a sua estreia na Literatura Brasileira com a obra Cristais partidos. Marcada pela estética do Simbolismo, a poetisa evidencia o subjetivismo, a plasticidade da linguagem e as sinestesias que compõem um conjunto de imagens a invocar tanto seu estado de alma, quanto seus desejos corpóreos em relação com a natureza e com a noite. É o que se vê nos poemas como “Beijo”, “Sensual”, “Olhos verdes”, “Olhos pérfidos”, “Noturnos”, só para citar alguns. Neste último, composto de oito poemas enumerados por algarismos romanos, mais especificamente, o VIII, o eu lírico, instala-se na noite e não apenas contempla, mas sente a magia noturna da Lua a fiar véus noturnos para o universal noivado. Nesse instante de sensações, supõe a treva como uma alcova sombria e que tudo está ali acasalado. E aos poucos vai sentindo a brisa noturna a arrepiar seus pelos até identificar-se com a Volúpia (em maiúsculo) que se roça nela como uma gata errante em um eterno cio.
A consciência do desejo desse eu-lírico feminino, como mostra Dal Farra, vem justamente do envolvimento de Gilka com a luta pela emancipação da mulher que se inicia no Brasil no século XIX e ganha força no século XX. A poetisa carioca evidencia essa consciência no poema “Ser Mulher” no qual, operando o jogo de antíteses, estabelece o contraste entre o querer e o ter, isto é, querer os gozos da vida, a liberdade e o amor, mas ter a vida triste, insípida e isolada; querer um companheiro, mas ter um Senhor e, por isso, presa nos pesados grilhões dos preceitos sociais, o eu-lírico se vê como uma águia inerte que não pode alçar voos. Se evidencia, desse modo, o constante uso das metáforas noite e águia como lugares de desejo, uma vez que o voo da águia alegoriza a mulher em plena liberdade de espírito e a noite como proteção do julgo da moralidade social, além de, obviamente, o ambiente noturno estar permeado de desejos.
Diante do alvoroço causado e das críticas recebidas, Gilka Machado lança, em 1917, a obra Estados de Alma que, conforme observa Dal Farra, busca instruir a crítica qual o modo mais adequado de leitura para seus poemas publicados, isto é, ultrapassar a moral arraigada e o preconceito para perceber que o erótico, manifesto de diferentes formas, é um dos muitos estados da alma e que se materializa como amor. A resistência moralista da crítica em nada recua e, em 1922, Gilka publica a obra Mulher Nua. Neles também, ela convoca a noite como o tempo do amor e soma-se a isso a presença do inverno como tempo de encontro das almas, como se vê em Analogia e Pelo Inverno. Contudo, diferentemente dos poemas anteriores, nesta obra, a presença de poemas sem título e o uso da reticência parecem evidenciar a mudança de tom e certos recuos na conclusão do pensamento como se vê no poema Impressões do Gesto.
Os ataques sofridos por Machado, fê-la calar-se por seis anos e, somente, em 1928 é que voltou a público, de forma majestosa, com a obra Meu Glorioso pecado. Nesta, evidencia-se que o tempo de tentativa de conciliação com a crítica havia se acabado e a poetisa retoma seu projeto de forma mais ousada, cujos versos, conforme observa Oliveira, manifestam metáforas que lembram toques, carícias, beijos e corpos unidos pelo desejo (OLIVEIRA, 2002, p. 53).
É com Sublimação, publicado dez anos depois da obra anterior, que Gilka Machado basicamente encerra sua carreira na poesia que, como observa Dal Farra, parece soar como uma rendição final a uma sociedade que não a acolheu e mais a censurou pelo vanguardismo de seu trabalho. Nesta obra, manifesta-se um melancólico ambiente familiar que louva os filhos e trata de temas que até então não apareciam em seus poemas, como o carnaval e o futebol. Apesar disto, o poema “Carne e Diabo” muito próximo de seu projeto inicial, faz um ótimo aceno para a mulher como sujeito do desejo e, de forma irônica, um agradecimento ao diabo por ser o criador do pecado e o responsável pela sedução da mulher. Como observa Nádia Batella Gotlib, a inovação poética de Gilka Machado traduz uma sensibilidade feminina livre que aposta no desejo o lugar e a ação de pertencimento para fazer mostrar o direito à expressão e a liberdade, tornando-se uma precursora na luta pelo direito ao corpo e ao prazer erótico da mulher.