Em crônica de 22 de junho de 1968, com o título Ser Cronista, Clarice Lispector, buscando compreender o que seja uma crônica, questiona-se se esta se trata de um relato, uma conversa ou o resumo de um estado de espírito. Antonio Candido, em A vida ao rés-do-chão, ao tratar da crônica como gênero, a define como o ato de quebrar o monumental e a ênfase da vida para restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas, isto é, ao tratar das coisas miúdas e cotidianas, este gênero mostra nelas a sua grandeza, beleza e singularidade até então não percebidas (CANDIDO, 1992, p. 14). Embora insista em seu questionamento sobre se o que escreve poderia ser classificado como crônica, Lispector evidencia com sua habilidade singular de traduzir o momento em palavras o domínio do gênero nas crônicas compostas de 1967 a 1973 no Jornal do Brasil.
Desde a década de 1980, quando seus textos foram compelidos no livro A Descoberta do Mundo, diferentes estudos como a de Teresa Montero, Marta Milene Gomes de Araújo, Viviane Resende Jatobá, Thaís Torres de Souza, entre outras, têm se debruçado na análise dessas crônicas para evidenciar: seja o tema do cotidiano como o estudo de Jatobá, seja a presença de assuntos nas crônicas que posteriormente se tornarão temas de contos e romances como o estudo de Souza, ou ainda, a epifania manifesta conforme se lê no estudo feito por Gomes de Araújo. O que é recorrente nesses estudos é a constatação da habilidade de Clarice Lispector se apropriar de assuntos os mais banais e corriqueiros e transformá-los em imagens densamente literárias. Dos diferentes assuntos que percorrem suas crônicas como a lembrança da infância, filhos, amor, relacionamentos com as empregadas, viagens, ou ainda sobre o ato de escrever, o que nos chama a atenção é a presença do táxi nestes escritos.
Na crônica Conversinha sobre o chofer de táxi, de 7 de abril de 1973, a cronista questiona seu leitor sobre o que leva alguém a se tornar chofer de táxi – se por vocação ou se por falta de outra coisa a fazer; a pergunta enseja o assunto principal, suas inúmeras conversas com choferes de táxi: alguns falam dos filhos, outros lhe oferecem cigarros ou ainda assuntos relacionados a incêndio. Com isso, a cronista deixa evidente ao leitor o prazer que ela tem por essas conversas a preencherem este momento de circulação entre um lugar e outro e pela variedade e riqueza das conversas, ou, como ela mesma diz, o mais engraçado é que, com chofer, não sai conversa pateta.
Na crônica Lição de Moral, de 23 de junho de 1973, Clarice é surpreendida ao ser questionada pelo chofer de táxi se ela se sentia mulher como todas as mulheres e, diante da estranheza da pergunta e da vacuidão de sua resposta, ele lhe conta já ter sido várias coisas na vida, inclusive mendigo, para espanto da cronista que, até o momento, acreditava ser a mendicância o último ponto de parada de uma pessoa e de onde jamais poderia sair. A lição de moral aceita a contragosto amplia o horizonte da escritora para realidades até então desconhecida.
Em crônica de 9 de setembro de 1967, com o título Amor Imorredouro, Clarice conversa com um chofer espanhol que lhe conta sua história de amor com uma jovem espanhola chamada Clarita e que o infortúnio do destino lha tirou por uma doença grave. Passados anos e tornado intolerante continuar na cidade que vivia, resolve vir para o Brasil, onde fundou uma fábrica de sapatos, um bar-restaurante, até que resolveu transformar seu carro em um táxi. A história, que poderia tomar ares de ficção, dissolve-se em relato fiel da narrativa dada pelo taxista para a frustração do leitor. O amor imorredouro não lhe atrasara a vida como suporia o leitor, mas possibilitou-lhe uma boa história a ser contada aos ouvidos distraídos da cronista.
Em várias crônicas, a autora faz referência a essas conversas informais com os choferes de táxi que lhe oferecem cotidianamente matéria para suas crônicas. Conforme lemos na crônica Teosofia, de 13 de dezembro de 1969, a autora afirma que O que eu já aprendi com os choferes de táxi daria para um livro. Eles sabem muita coisa: literalmente circulam. A imagem da circulação associada ao conhecimento também está presente na crônica O grupo de 17 de fevereiro de 1973, na qual, ao tratar de um encontro com seus antigos colegas de faculdade e, depois, enfastiada, pegar um táxi para casa, a cronista associa a inutilidade de certas coisas da vida ao táxi que a transporta de um ponto útil a outro.
A circulação inútil como matéria literária destaca o táxi a partir de duas perspectivas nas crônicas de Clarice Lispector: a primeira é a do compartilhamento das coisas cotidianas da vida. Nesta perspectiva, o chofer de táxi não é um apenas um acumulador de conhecimento, mas um constante saber em circulação a enriquecer o cotidiano das pessoas. Desse modo, o chofer torna-se uma alegoria da crônica para Lispector, pois, em ambos os assuntos mais ocasionais, ao circularem por olhos e ouvidos distraídos, produzem sentidos e significados milagrosos para as pessoas. Em outras palavras, Clarice como cronista faz-se de taxista das palavras ao fazer circular em suas colunas os assuntos que recebe de diferentes fontes.
A segunda perspectiva é a associação do táxi aos momentos inúteis da vida que nos transporta de um ponto útil a outro. Em vários momentos, Clarice manifesta seu tédio pelas coisas consideradas úteis e necessárias na sociedade e evidencia seu constante prazer pelos momentos mais banais e inúteis. Na crônica, ela sai de uma reunião que a deixa enfastiada e volta para a casa. Seu momento de prazer encontra-se nesta inutilidade do trajeto que a alivia das tensões da vida. Mais que crônica, o táxi torna-se alegoria da literatura, pois como ele, a literatura é este momento inútil que nos liga de um ponto a outro e que, tal como as conversas cotidianas que a cronista mantém com os choferes de táxi, amplia nossa visão de mundos, levando-nos a lugares inesperados.