A POESIA INTERDITADA DE TATI QUEBRA-BARRACO

Em 2004, a funkeira carioca Tati Quebra-Barraco lançou seu CD Boladona no qual inclui a música “Dako é Bom”. Sendo o maior sucesso da cantora, a música agradou muitos e escandalizou muitos outros, levando-os a estigmatizarem mais ainda o funk. Hoje, quinze anos depois desse sucesso, resolvi nesta coluna tratar sob a perspectiva poética – e, portanto, como poesia – esta composição da funkeira. Para tanto – e por saber o quanto fazer isto choca a moral intelectual – quero tratar esta poesia sob a perspectiva da interdição.

Em A ordem do discurso, Michel Foucault apresenta o jogo de três tipos de interdições que, ao se cruzarem, reforçarem e equilibrarem, formam uma grade complexa que não cessa de se modificar (FOUCAULT, 2010, p. 9). São elas: o tabu do objeto, isto é, a determinação daquilo que pode ser dito; o ritual de circunstâncias – na ordem discursiva ocidental, a ritualística determina quando e onde pode ser dito certas coisas e não outras; por fim, o privilégio ou exclusividade  do sujeito que fala, isto é, a determinação política de quem pode ou não falar.

O poema “Dako é bom!” trata de um tema cotidiano e por meio de uma narrativa simples. Resumidamente, trata-se de uma mulher negra periférica[1] que entra em uma loja de eletrodomésticos e vê a liquidação de fogões em queima de estoque. Entre as diferentes marcas do produto, ela resolve escolher a marca Dako e justifica sua escolha pela qualidade que tal marca tem para ela. A cena é extremamente cotidiana e seria corriqueira, não fosse pelo acidente enunciativo: ao sintetizar sua justificativa, ela acaba cometendo um trocadilho: Escolhi da marca Dako, porque Dako é bom. Este trocadilho cria um ruído pela ambiguidade sonora. A escrita de Dako é bom! desfaz a ambiguidade e o poema morre. Se, ao ler a escrita, o leitor sente o verso pulsar em sua ambiguidade, é porque a leitura da escrita invoca a oralidade, pois o poema foi cantado pela funkeira. Este trocadilho, portanto, arranca a narrativa em verso de sua trivialidade e o faz perturbar a moral sexual.

A interdição nesta poesia de Tati Quebra-Barraco dá-se de duas formas: como alvo e como tema e, por isso, é aqui tratada como poesia interditada. Como alvo, Tati entra na grade complexa definida por Foucault pois o acidente enunciativo, em seu ruído ambíguo, expressa um objeto interditado: o sexo anal. Além disso, a expressividade do acidente é feita em dois lugares impróprios: ficcionalmente, em uma loja que é lugar frequentado por família pobre e predominantemente cristã, e, como ato enunciativo, na poesia, música, funk – o que, segundo a moral vigente, como um efeito dominó, esta enunciação contribui para deslegitimar a música como poesia, o funk como música e Tati como funkeira e artista respeitável. Não à toa, é uma das funkeiras mais criticadas no cenário artístico brasileiro. A terceira interdição é o sujeito que fala: Tati é uma mulher negra, moradora da Cidade de Deus, mãe e avó. Com esta poesia, ela é classificada pela hipocrisia brasileira como uma mulher que não se dá ao respeito.

Este conjunto de interdições que se cruzam, se reforçam e se equilibram, faz deste poema e de todo a produção poética de Tati um alvo de interdição crítica e moral. Segundo a interdição moral, ela não pode falar por ser mulher, negra, periférica – privilégio do enunciador que se manifesta nela como interdição; também, ela nunca poderia falar de uma sexualidade libertina e, portanto, imoral – Tabu do objeto. Mas vivemos em uma sociedade democraticamente capitalista e, portanto, esta obra poética faz dinheiro, movimento o capital, porque mobiliza público. Com isso, o ritual de circunstância faz do discurso intelectual, acadêmico e poético o terceiro tipo de interdição, isto é, determina o lugar de enunciação que esta obra pode ser produzida de forma a não “poluir” e comprometer a Torre de Marfim da Poesia. Ela tem sua legitimidade garantida se for cantada apenas pra gente definida institucionalmente como inculta, periférica, alienada, sem noção do que seja beleza estética, gente perigosa, enfim, pra essa gente que costuma ser alvo constante de interdição religiosa, pedagógica e militar. Em outras palavras, jamais pode ser chamada de poesia ou de música. Quando muito, a chamem de funk pornô.

Com isso, entramos na segunda forma de interdição do poema, isto é, a interdição como tema. Para tanto, cabe recuperar aqui o conceito de sugestionabilidade apresentada por Hugo Friedrich. Ao tratar da lírica moderna, o crítico afirma que a sugestão não oferece a um possível leitor nada mais que uma possibilidade de experimentar juntos uma vibração qualquer (FRIEDRICH, 1978, p. 122). Ao invés da poesia impor um sentido, exigindo do leitor uma compreensão passiva, as propostas líricas desenvolvidas desde o século XIX com Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud buscam explorar cada vez mais as potências sonoras da linguagem e a relação entre a melodia – melopeia – as imagens invocadas – fanopeia – e as possiblidades múltiplas de associações intelectuais e emocionais que som e imagem podem despertar no leitor  – logopeia (POUND, 2006, p. 63).

Tati Quebra-Barraco é antes de tudo uma mulher consciente de si, de seu lugar de pertencimento, da sua negritude, da sua condição de favelada e de mulher, como evidencia tanto em seus poemas quanto nas entrevistas dadas em diversos canais midiáticos. Consciente disso, ela sabe muito bem das interdições que a torna alvo preferencial. Por esta razão, Tati faz funk e não poesia, isto é, ela não produz com a intenção de alcançar o reconhecimento dos mecanismos intelectuais. Ela não negocia com a academia e com as instituições culturais do Brasil, porque tem consciência de que sua existência como mulher, negra, favelada a torna um sujeito interditado. O que Tati parece mostrar com sua obra é o querer brincar com essas interdições. Diante deste poema “Dako é bom!”, sou levado como leitor e como crítico literário, não a legitimar – porque a poeta não precisa de ser legitimada por ninguém -, mas sugerir a temática e, portanto, as brincadeiras de interdição que este poema parece aludir.

A primeira sugestão é a contradição que se evidencia entre o plano da forma e do conteúdo. Como já mostrado acima, o tema central do poema se insere de forma acidental no texto. Para tanto, o trocadilho só se legitima na fala e não na escrita. No plano do conteúdo, como já mostrado, o poema evidencia o acidente por meio do contexto da narrativa e insere a correção logo após sua enunciação, isto é, em sequência, o eu-lírico corrige o acidente enunciativo: Calma minha gente! É só a marca de um fogão! Pode ser um movimento da mão à boca acompanhado de um ops! que se corrige ou pode ser uma crítica à reação de seus ouvintes. Independentemente, evidencia-se que o acidente enunciativo não passa incólume aos ouvintes do acidente enunciados pelo pronome “gente”.

No plano da forma, dois elementos evidenciam a contradição com o plano do conteúdo: o primeiro é o título do poema que evidencia este acidente enunciativo como central e o segundo é a repetição do acidente feito duas vezes antes da correção e ambos formarem o refrão do poema. Além disso, o acidente enunciativo e a correção se repetem ao final, mas agora distanciados pela batida do funk como dois tempos e duas enunciações distintas. Nesse jogo contraditório, a correção, que tira do acidente seu sentido pornográfico, parece ser feita unicamente para escapar à punição. Contudo, a repetição devolve o sentido pornográfico e potencializa a contradição. Dá-se o jogo entre afirmar e negar que resulta em deboche da interdição.

A segunda sugestão é o deslocamento perceptível no acidente enunciativo. A constituição imagética da narrativa nos apresenta a loja e a queima de estoque dos fogões. Embora esteja no espaço público, invoca o espaço privado e, mais especificamente, o espaço da cozinha. Na cultura escravocrata brasileira, o lugar da cozinha é o lugar imposto à mulher negra. Além disso, no modelo democrático republicano de trabalhadores hipoteticamente livres, as preocupações do lar e da economia doméstica são peremptoriamente atribuídas às mulheres. Portanto, a narrativa invoca um universo imposto ao feminino. Deste modo, o acidente enunciativo cria um ruído político no rito circunstancial imposto historicamente como interdição sobre o corpo das mulheres e, principalmente, das mulheres negras. Dako é bom! invoca a cozinha, mas dá o cu é bom invoca o quarto que é o lugar preferencial e de pertencimento das relações sexuais domésticas. Portanto, o acidente enunciativo produz o deslocamento geográfico no ambiente doméstico.

A terceira sugestão é justamente o modo de ressignificação do ato sexual. O deboche do acidente enunciativo não se limita apenas à contradição e ao deslocamento, mas ao tabu do objeto. Como aponta Foucault (2001), a norma sexual burguesa define o sexo como lugar de procriação:

 

Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as noites monótonas da burguesia vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. (FOUCAULT, 2001, pp. 9-10)

 

O sexo burguês no poema pertence ao espaço doméstico, daí porque a narrativa se constitui em um ambiente que invoca o lar. O sexo burguês é confiscado pela família conjugal, por isso quem o invoca é uma mãe e não uma jovem solteira. O sexo burguês deve ter como função séria a reprodução. É aqui que o acidente se transforma em explosão e redefine todo o sentido do poema. O sexo anal é antirreprodutivo e, por esta razão, está associado ao puro prazer da troca sexual. Além disso, o sexo anal não limita ao ato sexual heteronormativo, isto é, em uma relação entre homem e mulher no qual a mulher é penetrada. O cu é universal e, por isto, refere-se a todas as formas de prazer.

Além disso, essa explosão causada pelo acidente enunciativo desloca os pressupostos dos valores burgueses e, com isso, os ressignifica. Se o sexo burguês pertence ao espaço doméstico, a narrativa ambientada no espaço público, ao retorna ao espaço doméstico pelo acidente, o profana: a casa é pública, o sexo também. Se o sexo burguês tem na estrutura familiar a sua base de legitimação, o eu-lírico que se enuncia é o de uma mãe solteira, negra e, portanto, que ressignifica e dá outro sentido ao conceito de família. O verso Dako é bom! coloca sob questionamento o conceito unilateral e dominante de família e de ambiente doméstico, bem como o papel da mulher nessa trama sobretudo quando o assunto intersecciona sexo e prazer.

Os lugares em que a interdição, em sua grade complexa, mais se torna cerrada são as regiões da sexualidade e da política (FOUCAULT, 2010, p. 10). O sexo anal é estéril e ao insistir em aparecer ou se mostrar demasiadamente, torna-se um anormal e, por isto, deve ser punido. No poema, a correção é o modo pelo qual o eu-lírico quer escapar da punição, mas, como já dito, a repetição que contradiz a correção e pontecializa a contradição resulta em deboche. Para brincar com as interdições, o eu-lírico mergulha em sua subjetividade e traz à luz do dia seus desejos historicamente reprimidos. O eu-lírico feminino, ao enunciar pelo trocadilho seu prazer no sexo anal, faz desse tema interditado o assunto do poema que ressoa em outras subjetividades. Com isso, como afirma Adorno (2003), essa composição lírica extrai, da mais irrestrita individualidade, o universal, evidenciando, em sua subjetividade, elementos sociais aqui sugeridos. O leitor, à medida que se atenta àquilo ao que o poema diz, escuta, em sua solidão, a voz da humanidade (ADORNO, 2003, p. 67).

A sugestionabilidade e não compreensibilidade deste poema se evidencia pela não necessidade que ele tem de ser explicado. A explicação e análise aqui feita só faz sentido para quem, no abraço com as interdições de classe, gênero e raça, se faz de surdo ao toque da música poética. Para quem ouviu, dançou, riu e rebolou até o chão ao som de Dako é bom!, a mensagem poética os alcançou sem necessidade de texto que pudesse explicar. Quantas mulheres negras periféricas de 2004 até 2019 ressignificaram seus corpos, prazeres, identidades, pertencimentos e vivências políticas ao som de Tati Quebra-Barraco sem a necessidade de qualquer teoria intermediando seu entendimento. A teoria, como esta aqui apresentada, serve apenas para ouvidos surdos. Já a poesia, se não liberta, não é poesia. Se a poesia não vibra, não é poesia. Se a poesia não incomoda, não é poesia. Se a poesia não zomba e com seu riso, produz deslocamentos, ressignificações e acolhimentos, pode ser qualquer coisa, menos poesia. Como morador de um dos bairros com o IDH mais baixo em São Paulo – Guaianases – posso repetir tranquilamente Tati Quebra-Barraco: Dako é bom!

[1] A identificação do eu-lírico como sendo uma mulher negra periférica se baseia mais no contexto de produção, isto é, Tati é uma mulher negra e de favela, do que propriamente com base apenas no texto. Em um primeiro momento até pode se sugerir que este seja o perfil desta mulher de periferia. Mas, quem conhece a periferia, sabe bem que esta realidade estetizada no poema é também vivenciada por mulheres não-negras.

Professor de Teoria Literária, autor do livro de contos "Candelabro" e apaixonado por Literatura.

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