Tzvetan Todorov (1970) afirma ser a narrativa constituída na tensão entre duas forças. A primeira força é o inexorável curso dos acontecimentos ou a interminável narrativa da vida. Para lembrarmos Machado de Assis, esta primeira força é alegorizada em Memórias Póstumas de Brás Cubas na personagem Natureza ou Pandora, mãe e inimiga. Nesta força, conforme Todorov, o instante se apresenta pela primeira e última vez. A segunda força é o esforço da consciência e da linguagem que tenta organizar esse caos, dando-lhe um sentido e introduzindo uma ordem. Retomando o exemplo machadiano, Pandora como primeira força é dominada pela enunciação de Brás Cubas que a faz repetir seu instante em um looping infinito a cada leitura. Em outras palavras, a narrativa se constitui na guerra entre memória e esquecimento travada no campo de batalha da repetição.
Nesse sentido, Gerard Genette (1972), partindo das discussões enunciativas feitas por Benveniste, afirma que a narrativa em sua forma estrita, ou pura, é marcada pelo emprego exclusivo da terceira pessoa e pelos modos verbais no pretérito perfeito e no mais-que-perfeito. Com base nessa diferença das marcas linguísticas no texto, Genette evidencia a diferença entre narrativa e discurso como sendo próprio da narrativa a objetividade e do discurso, a subjetividade. Ao evidenciar, a partir dessa diferenciação, o quanto as narrativas modernas foram contaminadas pela subjetividade do discurso, faz evidenciar o desequilíbrio entre elas a ponto de a literatura ter esgotado sua capacidade narrativa e apenas refletisse o murmúrio indefinido de seu próprio discurso.
Este incômodo que Genette manifesta ao final de seu texto já havia sido tratado por Walter Benjamin (1987). Ao buscar analisar as narrativas do escritor russo Nikolai Leskov, Benjamin parte da afirmativa de que na modernidade a arte de narrar está em vias de extinção. Para o crítico alemão a capacidade de narrar está intrinsecamente ligada à experiência. A modernidade, para ele, se caracteriza pela perda da experiência. Esta perda deu-se desde a primeira guerra mundial, quando os combatentes voltavam mudos do campo de batalha por não terem qualquer experiência a ser comunicada. Este cenário, para o autor, evidencia o caráter inalterável da realidade moderna.
Conforme pontua Silviano Santiago (2002), Benjamin caracteriza três estágios evolutivos porque passa a história do narrador. São eles: o primeiro estágio é a do narrador clássico que possibilita ao ouvinte o contato com sua experiência. Essa experiência pode resultar de um acúmulo temporal pelo homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país, mas que guarda consigo suas experiências e a de seus antepassados preservando suas tradições. Este é o que Bejamin chama de camponês sedentário; há também aquele que deixa seu lugar de origem, por qualquer motivo, e viaja pelo mundo; quando volta, traz consigo uma larga experiência a ser compartilhada com os seus – este é o marinheiro comerciante. Ambos, articulando suas experiências por meio do deslocamento temporal ou espacial, constitui o que Santiago chama de narrador clássico.
O segundo estágio é o narrador do romance que, para Benjamin, culmina na morte da narrativa. Diferentemente do narrador clássico que comunica e, portanto, compartilha suas experiências, o romancista segrega-se e, no seu isolamento, não pode mais falar de forma exemplar. Sua voz é mediada pelo livro e, por esta razão, não sabe dar conselhos nem os receber. Já o terceiro estágio é o do jornalista, cuja função é unicamente a de informar e não a de compartilhar experiências.
Benjamin busca compreender esta mudança evolutiva na narrativa com o modo da relação que o indivíduo moderno, fruto da sociedade burguesa, estabelece com a morte. A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar e, por isso, recebe dela sua autoridade. Com as novas tecnologias, as instituições higiênicas e sociais fizeram com que o ser humano se afastasse do espetáculo da morte. Se a morte é a instância de legitimação da narrativa, o afastamento dela faz com que este narrador perca a sabedoria que ela transmite e, mais que isso, perde a sanção que torna a experiência em uma forma transmissível.
A relação com a morte, que é retomada por Santiago, tem importância fundamental para compreender outras formas de narrador não tratadas por Benjamin. A primeira delas é o narrador pós-moderno do qual trata o crítico brasileiro. Para Santiago, a primeira característica deste narrador é o esforço de extrair a si mesmo da ação narrada, colocando-se apenas na condição de expectador. A segunda característica é a transmissão de uma sabedoria resultada não das experiências, mas da observação de uma vivência alheia. Percebe-se nessas duas características apontadas pelo crítico dois aspectos importantes: o primeiro é que para o escritor pós-moderno o real e a experiência são construções de linguagem. À medida que a narrativa é mediada pela observação e escrita, a linguagem deixa de ter uma função meramente referencial e volta-se a si mesma. O segundo aspecto é o papel do olhar. Este olhar pós-moderno ao buscar no outro a experiência, assume para si e para o leitor a sua pobreza. Deste modo, se para o narrador clássico, a morte se torna a sanção da narrativa pelo olhar, para o narrador pós-moderno, é o outro que se torna a instância de legitimação.
Partindo dos contos de Edilberto Coutinho, Santiago busca positivar este novo tipo de narrador que, apesar da consciência de sua pobreza e, portanto, da incomunicabilidade das próprias experiências, rompe o mutismo do outro pelo olhar que empresta para intermediar a experiência entre personagem e leitor. O jovem observado não pode contar, mas traz consigo a experiência que o narrador não tem. A observação se torna ponto fundamental para a constituição da narrativa pós-moderna. Nesse sentido, o narrador pós-moderno se distingue do narrador clássico por aquilo que olha e que sanciona sua voz. No clássico, como já dito, a morte é a instância de legitimação da narrativa, isto é, ela sanciona o narrador a partir do olhar que este lança a ela. O olhar do narrador pós-moderno já não se volta para a morte, mas para a vida do outro e se coloca como voz intermediária entre a experiência daquele que não pode narrar e o leitor.
A segunda forma de narrador não tratada por Benjamin é apresentada por Isaias Francisco de Carvalho em seu artigo O Narrador Pós-Colonial, ao tratar da obra Omeros do autor caribenho Derek Walkott. Para ele, enquanto o narrador pós-moderno se depara com sua pobreza de experiência diante da experiência do outro, o narrador pós-colonial se define pelo seu caráter relacional e coletivo a partir da experiência vivida. Em outras palavras, ele compartilha com o narrador pós-moderno a criação de um ambiente que transmite ao leitor a experiência do outro, mas diferente deste, o narrador pós-colonial não se subtrai da ação narrada. Desse modo, a experiência compartilhada pela narrativa é sempre uma experiência coletiva e de resistência.
Na Literatura Brasileira, podemos encontrar esta experiência do narrador pós-colonial na obra Becos da Memória de Conceição Evaristo. A experiência compartilhada neste romance é predominantemente negativa. Trata-se da vivência marginalizada de moradores da favela de Belo Horizonte. O narrador desta obra difere-se do narrador clássico, à medida que aquilo que é compartilhado é menos uma lição de vida e mais uma denúncia das condições de miséria que vive aquela comunidade. É também uma narrativa de resistência e, com isso, seu aspecto positivo dá-se justamente nas estratégias de resistência que criam diante da miséria. Embora manifeste momentos de felicidade e comunhão, estas narrativas são sempre marcadas pela dor.
Na apresentação da obra, Evaristo, ao explicar os modos de composição, do livro, retoma este jogo entre memória e esquecimento que fala Todorov. O romance foi escrito para marcar o centenário da abolição da escravatura no Brasil. Contudo, sua publicação deu-se apenas vinte anos depois. Esta primeira experiência de escrita é identificada pela autora como uma fusão entre escrita e vivência. Ela fala de si e de suas memórias, mas reconhece o quanto estas memórias são coletivas. Marcadas pela dor, tais experiências estão esfaceladas, pois o trauma dessas memórias recorre ao esquecimento para aliviar a dor. A memória, escravizada pelo esquecimento, apresenta-se em pedaços. Para lidar com esse esfacelamento da memória, a autora recorre à invenção como ferramenta que permite colar cada um desses pedaços.
A escrevivência, conforme identificado pela narradora em seu prefácio, é o perfil deste narrador pós-colonial. O narrador escrevivente faz fundir escrita e vivência por meio do jogo entre lembrar e inventar. Conforme podemos ler em um determinado trecho do romance, Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo. Mas quem diz isso? Este é o jogo que Conceição Evaristo estabelece em seu narrador escrevivente: o romance começa em primeira pessoa na voz de Maria-Nova; logo depois, a voz é de Ela, a amiga de Vó Rita que ninguém nunca vê; mais a frente, o leitor se depara com a narrativa na voz de Ditinha em seu retorno da prisão; por fim, a voz é de um narrador observador que não se identifica.
Esta mudança de narradores no processo da narrativa, evidencia no plano da forma este narrador escrevivente de Conceição Evaristo: é um narrador coletivo que faz de cada uma dessas vozes personagens a sua própria voz para narrar memórias e esquecimentos intercalados no jogo pós-colonial de dores, resistências, invenções e reinvenções.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, W. O narrador. In: ________________. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 197 – 221. v. 1.
CARVALHO, I. F. O narrador pós-colonial. In: I Congresso Nacional de Linguagens e Representações: Linguagens e Leituras. UESC, Ilhéus – Bahia – 14 a 17 de outubro de 2009.
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
GENETTE, Gerard. “As Fronteiras da Narrativa”. In: BARTHES, Roland et al (org.). Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1971, pp. 255-274
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970.
SANTIAGO, S. “O Narrador Pós-Moderno”. In: _________________. Nas Malhas da Letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 44-60.
Parabéns, Dario!
Adoro sua coluna e seus artigos.
Abraço.
Oi Izabel,
Fico feliz por saber que o que escrevo tem contribuído. Se quiser, me siga no Facebook, lá costuma publicar outros textos também.
Abraço.
https://www.facebook.com/dario.neto.585
… oi Professor Dário, parabéns ? pela pesquisa, teu artigo ficou claro e objetivo. Belo trabalho. Saúde, paz e prosperidade para que teu trabalho se espalhe… ?