Jean-Jacques Rousseau, n’O contrato social – livro publicado, pela primeira vez, em 1762 – salientou que uma diferença deve ser estabelecida “entre a vontade de todos e a vontade geral”. De acordo com o pensador francês,
(…) esta [a vontade geral] só atende ao interesse comum, a outra [a vontade de todos] só escuta o interesse privado, e não é mais do que a soma das vontades particulares: mas retirai destas mesmas vontades os prós e os contras que entre si se anulam e restará a vontade geral, como soma dessas diferenças.[1]
Podemos considerar, então, a “vontade nacional” como sendo a “vontade geral”? Seria ela a expressão de uma possível vontade comum – ou de um conjunto de vontades comuns – a todos os cidadãos? Bom, se utilizarmos, no lugar do adjetivo “nacional”, uma locução adjetiva, passamos a ler “vontade da nação”. O que diabos é a nação?
No seu mais recente livro, 21 lições para o século XXI, Yuval Noah Harari, ao refletir sobre o “nacionalismo”, aponta:
Ao contrário do que diz o senso comum[2], o nacionalismo não é inato à psique humana e não tem raízes biológicas. É verdade que os humanos são animais integralmente sociais, e a lealdade ao grupo está impressa em seus genes. No entanto, por centenas de milhares de anos o Homo sapiens e seus ancestrais hominídeos viveram em comunidades pequenas e íntimas, com não mais que algumas dezenas de pessoas. Humanos desenvolveram facilmente lealdade a grupos pequenos e íntimos como a tribo, um batalhão de infantaria ou um negócio familiar, mas a lealdade a milhões de pessoas totalmente estranhas não é natural para humanos. Essas lealdades em massa só apareceram nos últimos poucos milhares de anos – em termos evolutivos, ontem de manhã – e exigem imensos esforços de construção social.[3]
A nação, vista dessa forma, seria um artifício, uma “construção social” projetada para unificar, de forma mais ou menos consistente, um grande número de pessoas que, ocupando um mesmo território, são geridas por um Estado[4] comum. Em nome desse “dispositivo”, no decorrer da história – e, principalmente, de uma forma mais próxima da atual, desde a Revolução Francesa – guerras foram travadas, revoltas, engendradas, modificou-se mapas políticos, justificou-se genocídios e muito mais. Como todo termo que carrega uma carga político-afetiva acentuada, o conceito de “nação” é instável, de difícil apreensão, passando por terrenos perigosos, como os “laços naturais”, relacionados, com frequência, à ideia de raça – insuficiente no que diz respeito, pelo menos, às “nações modernas” –, pela unidade linguística, facilmente contrariada por países plurilíngues (como a Espanha, a Itália ou mesmo o Canadá e a Bélgica), e os costumes compartilhados, que, em países de grande extensão territorial, como no caso do Brasil, se distinguem muito de um canto ao outro. Podemos falar em “nacionalidades espontâneas”, num certo sentido, como apontou Albertini, se considerarmos que, de fato, uma língua comum veicula uma cultura comum e, nesse processo, fomenta vínculos significativos entre os falantes, e que, além disso, a partilha do ambiente físico cria conexões profundas na experiência diária das pessoas, propiciando lembranças comuns e modos de vida compartilhados. No entanto, estamos ainda pensando, com essas considerações, em grupos menores e não em cerca de 209 milhões de pessoas (segundo a projeção do IBGE) ocupando um território de 8.516.000 km².
Dessa forma, da maneira como geralmente surge no discurso político, a nação é uma entidade ilusória, pois não é possível localizar, sobre o território gerido pela federação, o grupo que, sendo identificável de forma concreta, sirva como referência para as características (costumes, religião, etc) consideradas como “nacionais”. A nação coincide, assim, com o Estado – com a organização, em termos gerais, jurídica coercitiva –, e, ao coincidir, não passa de uma entidade ideológica, ou, se quisermos, em outras palavras, do reflexo de um ideário específico, pertencente, de forma mais ou menos evidente, ao grupo que detém o poder, funcionando como um mecanismo criador e garantidor da fidelidade (do comportamento de fidelidade) do cidadão para com o Estado.
Se a nação é – até o ponto em que podemos dizer que de fato seja, concreta ou abstratamente, algo – a ideologia (enquanto sistema de ideias) do Estado burocrático centralizado, a vontade nacional não é – não pode ser – a mera somatória das vontades individuais, como a “vontade de todos” em Rousseau, nem tão pouco a expressão de uma “vontade geral”, mas passa a ser compreendida como a vontade de um grupo específico encaminhada por uma ideia mais ou menos específica de nação. Cabe a nós, cidadãos, a pergunta: qual é o projeto nacional, ou melhor, qual é a ideia de nação que governa e move, hoje em dia, a tal “vontade”?
[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques.O contrato social. Trad. Mário Franco de Sousa. Queluz de Baixo: Editorial Presença, 2010, p. 42.
[2] Entendemos o “senso comum” como Vico o entendeu em Ciência nova: o “senso comum é um juízo despido de qualquer reflexão, comumente experimentado por toda uma ordem, por todo um povo, por toda uma nação ou por todo o gênero humano”. VICO, Giambattista. Princípio de uma ciência nova. Trad. António Lazaro de Almeida Prado. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 140.
[3] HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 137.
[4] A própria ideia de “Estado” requer mais reflexão do que, de forma geral, pode aparentar. Nem sempre Estado e Nação coincidem, podendo, por exemplo, uma comunidade política, considerada como uma nação, ser pluriestatal. No caso do Brasil, porém, com o Estado burocrático centralizado, as duas ideias tendem a coincidir.