Teatro de Colonização: aculturação e religião

Bruno Rocha é palhaço, professor e constrói o coletivo Casa Comum. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF/Campos/RJ). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

Teatro de Colonização: aculturação e religião

O teatro sempre esteve presente entre os agrupamentos sociais. Fez e continua fazendo parte da vida e do dia-a-dia da formação política, estética e religiosa dos povos mais antigos, aos mais recentes. O ato de encenar, representar, narrar uma história, ou mesmo participar de um rito religioso/social, se constitui como elemento fundante das civilizações ocidentais e orientais[1]. E diferente do que se pensa o teatro não tem sua origem na Grécia-Europa, antes, é patrimônio natural, primário/primitivo[2], inerente ao ser humano “que necessita apenas de seu corpo para evocar mundos inteiros”[3].

As formas e estéticas desses “teatros” primários estão alicerçadas nos impulsos vitais, mágicos, inerentes, subjetivos e nas construções sociais advindos da diversidade de povos que produzem sentidos e significados, estimulando assim comportamentos espetaculares como danças, rituais, folclores, músicas e enredos locais que carregam em seu âmago “as sementes do teatro”[4] como se conhece hoje.

Sendo assim, se faz necessário, primeiramente, uma atenta revisão epistemológica e conceitual, muitas vezes invisibilizada pelos teóricos da história do teatro que acreditam em um “único teatro possível”[5], aquele praticado e estabelecido a partir e como instrumento de colonização e catequese cristã, como o clássico texto de Décio de Almeida Prado, ”História Concisa do Teatro Brasileiro”, onde o autor diz que “O teatro brasileiro nasceu à sombra da religião católica”, mesma visão adotada no livro “Panorama do teatro brasileiro”, de Sábato Magaldi. Essa visão tende a construir uma historiografia parcial e ideologicamente euro-centrada, impedindo maiores percepções sobre as produções performáticas e comportamentos espetaculares existentes no Brasil, sejam eles de origem europeia ou mesmo afro-ameríndias[6].

O professor e encenador Zeca Ligiéro, criou inicialmente a expressão “Outro Teatro” para denominar as performances primárias existentes, mas não só. Ele também engloba em seu estudo as festas, folclores e danças cultuais, entendendo o valor cultural, estético, cênico e espetacular dessas manifestações não abarcadas pelo “teatro ortodoxo”[7]. Pode-se compreender, portanto, que o “Outro Teatro” é:

A definição aplicada às performances artísticas e culturais que envolvem narrativas, danças, cantos e elementos cenográficos, utilizadas principalmente pelas tradições africanas, asiáticas e ameríndias que se tornaram conhecidas como importantes para o mundo das artes cênicas através de diretores de vanguarda da Europa no século XX. (LIGIERO, 2013, p.1)

.

A partir de uma compreensão mais holística sobre as possibilidades históricas, sociais e críticas de um “Outro Teatro” possível, começa-se a perceber um projeto colonial estabelecido pelos portugueses – nas figuras dos primeiros padres jesuítas como Manuel da Nóbrega, João Azpilcueta Navarro[8] e José de Anchieta – como forma estratégica de se apropriar e aculturar-se aos costumes, língua e representações espetaculares/simbólicas já existentes entre os nativos. Desvela-se a intenção colonizadora de se estabelecer uma narrativa única de espetáculo, de arte e de religiosidade entre os indígenas, assim como de criar relações de classe, instituição e de poder, utilizando as formas de um teatro comprometido com o projeto colonial que assimila e se apodera das lógicas locais para criar pontes de dominação, letramento e tradução que se submeta às demandas europeias.

José de Anchieta (1534-1597), um dos maiores responsáveis pela produção artísti(co)lonizadora da época, traz em seu imaginário elementos de um teatro pedagógico[9] desenvolvido no período medieval, que tem como principal objetivo colonizar e levar os valores cristãos para dentro da cultura indígena, sempre através da “vida dos santos, episódios da paixão de Cristo, nascimento de Cristo, mistérios e milagres”[10] . Influenciado pelas peças de Gil Vicente, a produção do teatro de Anchieta “demonstra elementos de residualidade cultural e literária dos dogmas da Igreja Católica no período medieval que se cristalizaram na mente do povo brasileiro”[11].

O mais importante para a Igreja Católica e os jesuítas que desembarcaram nas primeiras navegações, era que os indígenas tivessem uma pré-disposição à cristianização, fossem “papel branco” prontos para “se escrever à vontade”, como disse padre Nóbrega. Posteriormente, pelas dificuldades de assimilação e resistência indígena aos valores europeus, “não passavam de seres inferiores que deveriam servir aos empreendimentos coloniais. Para [então,] evitar maior degradação desses quase ‘animaes’, melhor seria escraviza-los”[12].

A colonização estabelecida pela educação catequética/jesuítica, contribuiu diretamente para a alienação, desumanização e descaracterização sócio-cultural dos povos pré-brasileiros que habitavam a terra. A criação de escolas, igrejas, sistemas de trabalhos forçados, missas e peças teatrais religiosas, começam a penetrar coercitivamente o “imaginário” indígena.

No livro “Dialética da Colonização”, Alfredo Bosi constrói a ideia de que a aculturação linguística proposta pelo padre José de Anchieta, através de seus contos, poesias e peças teatrais, traz marcas profundas no ethos indígena. Nas palavras do autor “O projeto de transpor para a fala do índio a mensagem católica demandava um esforço de penetrar no imaginário do outro”. (BOSI, 1992, p. 65)

O clássico auto de São Lorenço, texto escrito pelo padre José de Anchieta, e encenado não se sabe a data ao certo (talvez em 1583 ou em 1587[13]), está adjetivado de um compromisso missionário-cristão, num projeto de demonização da cultura indígena que se respalda na política colonizadora da instituição estatal e religiosa. O texto teatral é responsável por uma “condenação impiedosa do pecador, [com] a presença do castigo eterno pairando sobre a cabeça de todos, e não apenas dos infiéis, talvez fosse uma regra do gênero, se não a sua regra básica”[14].

Bosi exemplifica essa compreensão com a fala de Guaixará – o rei dos maus espíritos – na peça intitulada “Na festa de São Lourenço”, sendo ela de profunda importância na compreensão no desenvolvimento desse teatro de colonização. O nome desse personagem (Guaixará) é relacionado com um dos episódios reais de resistência indígena frente aos colonizadores que, em certa ocasião, chefiou dois ataques em São Sebastião, Rio de Janeiro. Esse texto de Anchieta ainda cita mais outro ícone da luta indígena, “Aimberê”, que também “aparecerá apresentado como Satanás”[15] na peça:

Que bom costume é bailar!

Adornar-se, andar pintado,

tingir pernas, empenado

fumar e curandeirar,

andar de negro pintado.

 

Andar matando de fúria,

amancebar-se, comer

um ao outro, e ainda ser

espião, prender Tapuia,

desonesto a honra perder.

 

Para isso

com os índios convivi.

Vêm os tais padres agora

com regras fora de hora

prá que duvidem de mim.

Lei de Deus que não vigora.

 

Pois aqui

tem meu ajudante-mor,

diabo bem requeimado,

meu bom colaborador:

grande Aimberê, perversor

dos homens, regimentado.[16]

 

 

Observa-se no trecho supracitado a intenção colonial de desmantelamento do corpo social, símbólico, ritual, cenográfico e tudo aquilo ligado à existência indígena:  “Tudo quanto a fala de Guaixará vai nomeando como obras suas, o que representa se não o próprio sistema ritual dos tupis?”[17] A alusão direta que a peça faz aos nomes de lideranças nativas – responsáveis pela resistência frente aos europeus – e a sua comparação com o mal, o diabo e o perverso, compreensão religiosa cristã, adentram no imaginário social e são usadas como significantes religiosos e culturais.

Anchieta constrói um novo vocabulário de relações, significados e espetáculos que servem ao projeto político colonizador, além de enxertar uma pratica de letramento compulsório através das palavras de sua própria língua e cultura, que estabelece correspondências religiosas, políticas e sociais responsáveis pelo desmembramento do “ethos indígena”, podendo ser observado, como por exemplo, em: Pai-guaçu, para Bispo, Tupansy, para Nossa Senhora (mãe de Tupã), Tupãretama, para Reino de Deus, Anhanga, para Demônio (BOSI, 1992, p. 65), entre outros.

Através dessa imposição “teofágica”, cria-se a partir dos textos e espetáculos de Anchieta uma compreensão linguística colonizadora e violenta [18] para com outra concepção religiosa, social e cultural, capaz de criar e impor uma nova forma de organização oprimida e gradualmente distanciada de seus saberes ancestrais/ locais, consolidada historicamente pela oralidade de uma cultura própria. Como, então, conceber a “equação Tupã-Deus judeu-cristão”[19]?

Há nesse processo colonial a destruição do núcleo sagrado e cultural indígena, perdendo-se “a unidade fortemente articulada que mantinham no estado tribal, e reparte-se sob a ação da catequese”[20]. Essa ação colonizadora não leva em conta a comunidade local e suas experiências simbólicas e indenitárias que os torna povo, cultura.

Esse discurso é legitimado e fomentado pela Igreja Católica e pelo império português que conquista econômica, cultural e religiosamente indígenas e africanos trazidos para o Brasil em um projeto de dominação e privatização dos bens naturais e socias. O teólogo latino-americano José Maria Vigil, ao relatar sobre a história da Igreja na América Latina, relembra as palavras do missionário Antônio Vieira: “Vossa escravidão não é uma desgraça, mas sim um grande milagre, porque vossos pais estão no inferno para toda a eternidade. Vós pelo contrário, vos salvastes graças à escravidão”. (VIGIL, 2006, p.45)

Esse pensamento maniqueísta vociferado pelo colonialismo cristão/europeu missionário é historicamente instalado no que vem a se conhecer posteriormente como cultura brasileira.  Através da “demonização” dos ritos e performances, da criação de um imaginário de tensão entre o bem e o mal[21], essas características somam-se aos esforços de uma escolarização amparada pelo teatro jesuítico, que “exorciza” da cultura indígena tudo aquilo que a seu ver não corresponde com os interesses da colônia, fazendo que ao nativo, seja necessário a renuncia de todas as práticas consideradas como impróprias pelo colonizador. Por fim, a dramatização dos autos religiosos soma-se às propostas de aculturação dos símbolos, rituais e concepções estéticas, difundindo um controle ético e moral advindo dos interesses coloniais.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Wilson Ricardo Antoniassi. A educação jesuítica no Brasil e o seu legado para a educação da atualidade. Artido da revista GRIFOS N.36/37, 2014.

ANCHIETA, José de. Auto representado na Festa de São Lourenço, Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Ministério da Educação e Cultura, 1973.

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

GOMES, Carlos Magno Santos; RAMALHO, Christina Bielinski. Leitura Portuguesa I. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2009.

LIMA, Francisco Wellington Rodrigues. O Teatro Quinhentista de Anchieta e os Resíduos do Diabo Medieval em Três Autos Escolhidos: Auto da pregação universal, Na aldeia de Guaraparim e na vila de Vitória ou Auto de São Maurício. Periódico Letras Escreve. Macapá, v. 7, n. 3, 2º semestre, 2017. Disponível em: < https://periodicos.unifap.br/index.php/letras/article/viewFile/3275/pdf> Acesso em: 25 de fev. de 2019.

LIGIÉRO, Zeca. O Outro Teatro: Arte e educação entre a tradição e as experiências performáticas. Artigo da Revista Poiéses, nº 19, p. 15-28, Julho de 2013.

NETO, Alexandre Shigunov; MACIEL, Lizete Shizue Bomra; O ensaio jesuítico no período colonial brasileiro. Artigo na revista EDUCAR, Curitiba, n. 31, p. 169-189, 2008. Editora UFPR

NUÑES, Carlinda Frangale Pate. At alii. O teatro através da história. Volume I: O teatro ocidental. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Entourage Produções: 1994, 2v.

PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira: volume I : colônia. São Paulo: LeYa, 2016.

RUCKSTADTER, Vanessa Campos Mariano; ARNAUT DE TOLEDO, Cézar de Alencar. O Teatro Anchietano Enquanto Instrumento Pedagógico: Análise das Peças. Artigo da VI Jornada de Estudos e Pesquisas do HISTEDBR, 2005. Disponível em: < http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada6/trabalhos/777/777.pdf> Acesso em: 25 de fev. 2019

VIGIL, José Maria. Teologia do pluralismo religioso: para uma releitura pluralista do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006.[1] NUÑZ, 1994, p. 17

[2] As palavras “primário” e “primitivo” não ganham uma conotação negativa ou de juízo de valor. Entende-se, nesse texto, o lugar singular das primeiras manifestações espetaculares não como piores ou melhores, mas como manifestações originárias que constituem a gênese do processo de evolução cênica ao longo dos tempos.

[3] BERTHOLD, 2000, p.1

[4] BERTHOLD, 2000, p.2

[5] Ver o artigo “Outro Teatro: roteiro para principiantes”, de Zeca Ligiéro, onde se faz uma crítica aos principais historiadores do teatro.

[6] LIGIÉRO, 2013, p.1

[7] Ver o livro “Performance e antropologia teatro de Richard Schechner”, organizado por Zeca Ligiéro, onde se narra a dificuldade em classificar esse teatro não experimental e não oficial. Em contato com Richard Schechner, Ligiero começa usar a mesma terminologia “Teatro ortodoxo”.

[8] Foram responsáveis por algumas das primeiras encenações teatrais no Brasil. Mas, certamente, coube ao padre e missionário José de Anchieta “criar as primeiras manifestações da arte cênica religiosa em nosso país, mesclando em seu contexto, elementos oriundos do velho mundo e da Igreja católica com elementos de uma cultura cá existente” (LIMA, 2017, p. 125).

[9] Esse termo vem como construção de um estilo literário comprometido com a colonização e a catequização inerente ao período histórico: “Para entender o estilo literário de Anchieta, bem como a estrutura de suas peças, faz-se necessário entendermos o teatro enquanto arte e também enquanto instrumento pedagógico, bem como a função que este assumiu historicamente, principalmente o teatro medieval”. (RUCKS e ARNAUT DE TOLEDO, 2005, p.4)

[10] GOMES e RAMALHO, 2009, p.95

[11] LIMA, 2017, p.142

[12] PRIORE, 2016, p.21

[13] É debatido no artigo “Leitura do Auto de São Lorenço de José de Anchieta: Teatro e pedagogia no aldeamento”, de Paulo Romualdo Hernandes, as duas possibilidades sobre a data desta encenação. Maria de L. de Paula Martins acredita ser 1583, “baseando-se em Vasconcelos, jesuíta do século XVII, um dos primeiros biógrafos de Anchieta”, e padre Armando Cardoso afirma ser em 1587, a partir de relatos de pessoas que conviveram com Anchieta e testemunharam no “processo de sua beatificação”, em 1627.

[14] FARIA, 2012, p.26

[15] BOSI, 1992, p.70

[16] ANCHIETA, José de. Auto representado na Festa de São Lourenço, Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Ministério da Educação e Cultura, 1973.

 

[17] BOSI, 1992, p. 71

[18] “A aculturação católico-tupi foi pontuada de soluções estranhas quando não violentas.” Alfredo Bosi

[19] BOSI, 1992, p. 65

[20] BOSI, 1992, p. 66

[21] BOSI, 1992, p. 67

Professora Doutora do Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (LEIT) e do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA). Membro do Grupo de Estudos do Integralismo (GEINT).

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