Cecília de Oliveira Prado
Tema debatido há séculos por diferentes credos religiosos, por Aristóteles e fundamentada por cientistas, filósofos e economistas como Thomas More em 1516, aprofundada por Thomas Paine, Joseph Charlier, Condorcet, John Stuart Mill, James E. Meade, Bertrand Russel, Martin Luther King, Bernardo Shaw, Valter Van Trier, o casal E. Mabel Milner e Dennis Milner, Paul Singer, Milton Friedman, Galbraith, John Rawls, Celso Furtado, Antônio Maria da Silveira, Eduardo Suplicy, entre outros[1], importante não só nesse momento de pandemia, como veremos mais adiante, a renda mínima básica universal, vem sido apresentada e defendida como uma alternativa permanente, viável e necessária.
Para enfrentar a pandemia do coronavírus, o momento exige o isolamento social, porém, tal isolamento, impede que muitos trabalhadores informais, microempresários individuais, desempregados, imigrantes, moradores de rua, estudantes, artistas, entre outras, de obterem sua subsistência, expondo-se a ameaçada de não conseguirem sequer manter suas necessidades básicas como alimentação, moradia e transporte. Assim, para tentar minimizar tal situação, o Governo Federal implantou, como medida emergencial e temporária, um novo programa de renda mínima.
Tal programa, promulgado através da Lei nº. 13.982, de 02 de abril de 2020, estabelece “medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19)”. Dentre as medidas emergenciais previstas na Lei, destaca-se um auxílio emergencial de 3 parcelas de R$ 600,00 (seiscentos reais) aos cidadãos maiores de idade, que cumprirem um conjunto de exigências que visam identificar “miserabilidade” familiar.
Estimado pelo Governo para atender um grupo aproximado de 54 milhões de brasileiros, o projeto teve um número de 90 milhões de solicitações, tal fato traz à tona, uma realidade anterior à pandemia e revela o desconhecimento do Estado de parcela significativa de cidadãos miseráveis e que se encontram invisíveis aos seus olhos.
Considerando a dificuldade de acesso aos dados oficiais e pautando-nos em dados informados no site governamental “Cadastro Único – conhecer para incluir”[2] estima-se que no Brasil existam 28,5 milhões de famílias em situação de miserabilidade. Sendo importante ressalta que o país já mantem outros programas de apoio baseado nessa premissa da miserabilidade, sendo que muitas dessas famílias já recebem algum tipo de benefício, como por exemplo: o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada – BPC (para idosos e pessoas deficientes), o Seguro Desemprego, o Auxílio Gás, etc.
Por que 97 milhões de brasileiros (até de 04 de maio de 2020) solicitaram auxílio emergencial e no Cadastro Único do governo são registrados 28,5 milhões de famílias brasileiras que necessitam de uma renda mínima? Por que essa conta não bate?
Muitas podem ser as causas que levam as pessoas a não usufruírem do apoio da renda mínima. A título de exemplo sugerimos que assistam ao filme “Eu, Daniel Blacke”, que exibe a situação de dois personagens e seus percalços para conseguir benefícios governamentais necessários a sua sobrevivência, impedidos e dificultados pela burocracia, dificuldades de manuseio e acesso a recursos tecnológicos como computadores e celulares (analfabetismo digital), incluindo-se ainda a esta lista de empecilhos, o sentimento de vergonha da miserabilidade e de ter que se declarar como incapaz de auto sustentar. Por mais que o filme trate de leis tipicamente inglesas, a trama retrata situações que se encaixam perfeitamente ao cenário brasileiro, tratando também sobre a falência do Estado em cuidar dos seus cidadãos.
Será que renda mínima precisa necessariamente vincular-se a miserabilidade?
Estudioso e defensor da renda mínima incondicional, Eduardo Suplicy propôs, durante seu mandato como Senador, um projeto promulgado em nosso país através da a Lei N° 10.835/2004 que instituiu a Renda Básica de Cidadania (RBC), uma forma de pagamento individual e universal de uma renda desvinculada da condição socioeconômica e do cumprimento de condicionalidades, que foi aprovada no Senado e na Câmara (inclusive com apoio do então deputado Jair Bolsonaro) todavia essa Lei nunca foi regulamentada, nem consignado valor orçamentário para sua execução ou mesmo designado grupo de trabalho para sua analisar sua implementação. Segundo Suplicy: “Se tirada do papel, a renda básica vai oferecer dignidade e estímulo à economia em contexto de crise do coronavírus” e fora do período de pandemia também, acrescentaríamos.
Será que adotando as medidas citadas na Lei cumpriríamos com o estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da qual somos signatários, nos seguintes artigos:
Artigo VII: Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (…)
Artigo XXV: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
Eduardo Suplicy defende que a Renda Básica da Cidadania (RBC) seja universal e incondicional, ou seja, que toda pessoa residente em nosso país, não importando sua origem, raça, sexo, idade, condição civil ou socioeconômica deve ter direito de receber uma renda que, com o progresso do país, partilhe a riqueza do país, na medida do possível, de forma a tornar-se suficiente para atender suas necessidades vitais, caracterizando-se, assim, a RBC como um um direito e não mais como uma caridade.
As medidas já implementadas em nosso país priorizam apenas uma parcela da população de baixa renda, a ideia de Renda Básica da Cidadania (RBC) amplia o público a ser atendido, tendo em sua gênese a ideia de ser fornecida a todos os cidadãos, independentemente de sua renda e condição social, tendo como cerne a ideia de distribuição da riqueza como forma de garantir a todos uma renda mínima básica suficiente para garantir sua subsistência.
Sem condicionalidade, como garantir matrícula e frequência à escola ou vacinar filhos menores, a ideia é que a RBC seja capaz de promover maior justiça social como: diminuição da violência, exclusão e aumento do consumo – fazendo rodar a economia.
Rocha (2020) identifica cinco elementos que constituem a renda básica universal: 1.) regularidade, e não um pagamento único em determinado momento da vida; 2.) em moeda corrente, e não pela entrega de bens ou prestação de serviços; 3.) individualidade, em não em bases de estruturas coletivas, como a família, o lar ou a unidade nuclear; 4.) universalidade, concedida a todos indivíduos de determinada comunidade política independente de sua condição socioeconômica; e 5.) incondicionalidade, posto que não se exige daquele que a recebe que trabalhe, busque trabalho ou tenha qualquer nova conduta específica em relação a sua vida individual.
Dentre suas vantagens, a RBC se caracteriza como uma renda que é universal e despida de critérios e que possibilitaria às pessoas, de acordo com a defesa de Eduardo Suplicy, se recusarem a trabalhar em atividades que colocassem em risco a sua integridade física ou moral. Serviria para combater a prostituição, por exemplo, e impediria que jovens das periferias fossem aliciados pelo crime organizado.
Defendida internacionalmente por economistas, cientistas, filósofos dos mais variados espectros políticos (os espectros mais à direita defendem que a renda básica concede maior liberdade aos indivíduos e fortalece o mercado, pois garante aos consumidores meios para comprar mais produtos e os mais à esquerda defendem que sua implantação acabaria com a pobreza e diminuiria as desigualdades dando acesso a direitos básicos e permitindo a todos, o acesso à educação e, consequentemente, o exercício de profissões mais qualificadas). Registra-se que experiências de implementação da RBC são identificadas no Alasca, na Alemanha, na Finlândia e na província de Ontario no Canadá. Estudos nacionais e internacionais demonstram ainda que é perfeitamente possível implementar a renda básica, não apenas em situação emergencial, mas sim de forma definitiva, se estabelecendo como um direito permanente, universal e incondicional.
Urge debatermos sobre o tema colocando-o na pauta do dia. Estamos às vésperas de novo período eleitoral, momento importante para nos informamos sobre o que nossos atuais e futuros legisladores (vereadores, deputados e senadores), bem como nossos atuais e futuros chefes de executivos (prefeitos, governadores e presidente) propõem para alcançarmos a justiça social inclusive como forma de evitar do colapso do mercado de consumo.
Em 2018, Tatiana Roque, em um artigo de opinião, já indicava a viabilidade de implantação de uma renda cidadão incondicional que, segundo ela, é uma das de medidas de garantia de renda para todas as pessoas. Acrescentando ainda que:
a renda básica universal para todos os brasileiros adultos custaria 4,6% do PIB, segundo o FMI. Pode ser implementada aos poucos, começando pelos jovens. Quem não atenta para as prioridades pode achar caro, mas não é difícil compreender que a importância disso para o progresso e a segurança do país é muito maior do que a do excesso de mordomias nos Três Poderes, o auxílio-moradia, pensões altas para filhas de militares, anistias de dívidas de grandes empresas junto ao INSS, algumas desonerações fiscais absurdas e o perdão sistemático de dívidas de financiamento ao latifúndio.
Exigir que a economia funcione para todos, que o governo reconheça os direitos mínimos de renda cidadã é uma ideia factível e, no meu entender, já está na hora de abraçarmos essa luta!
[1] Em Renda da Cidadania: a saída é pela porta, Eduardo Suplicy explana sobre o papel desses e outros importantes estudiosos na formulação da ideia da renda mínima universal.
[2] https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/bolsafamilia/index.html
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Leandro Teodoro. Renda básica. Implementação e controvérsias. Dissertação de mestrado do Programa em Políticas Públicas. São Bernardo do Campo: UFABC, 2019.
LACERDA, Nara. Pandemia do coronavírus reacende discussões sobre renda mínima universal. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2020/04/16/pandemia-do-coronavirus-reacende-discussoes-sobre-renda-minima-universal.
Acesso em 23/04/2020.
MEIRELES, Carla. Renda básica: utopia, assistencialismo ou uma realidade próxima? Disponível em https://www.politize.com.br/renda-basica-universal/ acesso em 29/04/2020.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf acesso em 29/04/2020.
PEREIRA, Thiago. “Coronavírus: ‘Chegou a hora de implementar a renda básica de cidadania’, diz Suplicy. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/03/coronavirus-renda-basica-suplicy/ acesso em 28/04/2020.
PUTTI, Alexandre. “Precisamos garantir renda básica para todos os brasileiros”, defende Suplicy. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/precisamos-garantir-renda-basica-para-todos-os-brasileiros-defende-suplicy/ acesso em 26/04/2020.
ROCHA, Thiago Santos. Renda Básica Emergencial ou a Emergência de uma Renda Básica Universal? Disponível em: <https://www.linkedin.com/pulse/renda-b%C3%A1sica-emergencial-ou-emerg%C3%AAncia-de-uma-universal-thiago-rocha>. Acesso em: 27 abr. 2020.
ROQUE, Tatiana. Dia do trabalho: o emprego do futuro. Disponível em https://meiahora.ig.com.br/opiniao/2018/04/5536171-dia-do-trabalho-o-emprego-e-o-futuro.html acesso em 26/04/2020.
SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda de Cidadania: a saída é pela porta. São Paulo: Cortez: Fundação Perseu Abramo, 2002.