Vitor Soeiro é professor de História, formado em História pela Universidade Federal Fluminense, com pesquisa sobre o comportamento da população alemã durante a aplicação das políticas antissemitas do regime nazista.
Reflexões sobre a Gestapo (Alemanha, 1933-1945): as denúncias particulares e o modo de operação
A organização da Gestapo e a rede policial
A missão da Gestapo não se resumia a perseguir os crimes políticos e ofensas ao Estado, detectar os crimes e investigar os infratores. Tinha também, como uma de suas funções básicas, o combate preventivo a todas as ameaças. Ou seja, a tarefa da polícia política estava na observação de todos os possíveis “inimigos” do povo e do Estado. Em um regime democrático, a polícia política representa um instrumento complementar de controle estatal, enquanto, em uma ditadura, se torna uma instituição principal. Durante o Terceiro Reich, a Gestapo se tornou um organismo “independente”, movida pela concepção de prevenção e aniquilação dos adversários. Exerceu, dentre suas competências, a de uma polícia ideológica, uma arma que diferenciava a polícia nazista das polícias de épocas anteriores.[i]
Desde o princípio da utilização da detenção preventiva, a Gestapo se destacava por realizar todo o vasto conjunto de atividades que se desenvolvia. Era preciso fazer cumprir as novas leis, além de supervisionar e regular a aplicação das novas formas de conduta.
Houve uma verdadeira avalanche de novas leis, disposições e decretos – somente na área da política racial – e seu alcance era tal que sua efetiva imposição jamais teria sido possível sem que houvesse logrado também um certo grau de cooperação por parte da maioria da população. Nenhuma polícia poderia depender por inteiro do medo gerado pelos métodos brutais, e certamente não poderia ter sido feito pela Gestapo, cujo trabalho passou a consistir no desempenho de um papel “positivo” na constituição da “nova ordem”.[ii]
Gellately (2004) reconhece o fato de que as pessoas na Alemanha nazista nunca estiveram longe da vigilância, fosse ela em público, em casa ou no trabalho. Contudo, afirma que a sensação constante de estar sendo observado não tinha como ser da presença física dos oficiais da Gestapo, já que a instituição tinha um efetivo bastante reduzido.
No final de 1944 havia aproximadamente umas 32.000 pessoas no corpo, das quais 3.000 eram oficiais administrativos (Verwaltungsbeamte), umas 15.500 eram oficiais executivos (Vollzugsbeamte), e 13.500 eram trabalhadores contratados (Angestellte y Arbeiter), dos quais 9.000 eram recrutas (Notdienstverpflichtete).[iii]
Dado o pequeno efetivo da Gestapo, a distribuição de pessoal pelo domínio territorial da Alemanha era necessariamente escassa. Gellately aponta informações provenientes de diversas localidades, as quais indicam que a regra geral da polícia política era o baixo efetivo nos postos oficiais, como, por exemplo, nos arredores de Dusseldorf :
Em março de 1937, um censo de pessoal realizado em toda a zona coberta pela Gestapo na região de Düsseldorf lançou a cifra de 291 pessoas, das quais 49 se ocupavam de questões administrativas, e 242 se encarregavam do trabalho policial. Nessa época, estavam postos 126 oficiais em Düsseldorf, uma cidade com uma população aproximada de 500.000 pessoas. Outras cidades incluídas no âmbito da jurisdição geral do quartel de Düsseldorf teriam distribuído pessoal adicional: Essen teria 4 oficiais para vigiar uma população de 650.000 pessoas, enquanto que Wuppertal dispunha de 43, e Duisburg de 28, para populações que superavam os 400.000 habitantes.[iv]
Os efetivos da Gestapo eram reduzidos para realizar por si mesmos todo tipo de vigilância e a quantidade de fontes existentes sobre a real proporção da rede de espionagem também é bastante escassa. A ideia que prevaleceu, por muito tempo, foi a de uma rede extensa e impossível de ser ludibriada. No entanto, embora existissem agências de informação e rede de espiões, algumas pessoas desempenharam diversos papéis no caráter de informantes remunerados. E sabe-se que os informadores dos rumores, que eram convocados para as ramificações locais da Gestapo, não formavam uma rede em si, já que o ritmo das denúncias variava de acordo com o estado de ânimo público.[v]
A Gestapo era uma força pequena em relação ao que sua efetividade sugestionou e sua eficácia estava baseada na colaboração de um conjunto de organizações e instituições. Podia perseguir os acusados de forma implacável quando mobilizada, porém não possuía um efetivo capaz ter promovido o gigantesco número de acusações.[vi]
As denúncias, as motivações particulares e os casos investigados pela Gestapo
A atmosfera de terror e desconfiança mútua que ocorreu na Alemanha nazista criou um ambiente onde ninguém podia se sentir totalmente seguro, seja nas atividades da vida pública ou na intimidade da vida privada. A incerteza de origem das fontes das denúncias que impulsionavam a ação da Gestapo e a obscuridade com a qual tratava os segredos serviam de base para propagar uma ideia de onipresença. A relação de brutalidade e terror com que a Gestapo tratava os capturados fez o medo de ser delatado prevalecer entre o povo alemão.[vii]
Em última análise, pode-se considerar que a polícia política foi a organização mais importante do regime para controlar o comportamento, no sentido que representava a execução da violência por trás de todos os esforços do nazismo. Tornou-se um órgão de coleta de informações e aplicação da lei e não apenas perseguiu os objetivos tradicionais de uma polícia política, mas também assumiu uma “missão ofensiva”, na medida em que agia quase desimpedida pelas restrições legais.
O historiador Robert Gellately, no livro “Gestapo e Sociedade alemã: a política racial nazi (1933-1945)”, fez uma abordagem que envolve um exame atento da correlação de importância crucial entre a polícia política e a sociedade alemã.
O historiador parte da premissa de que, em certa medida, a maioria dos estudos realizados sobre a Gestapo foi baseada em uma historiografia limitada sobre o assunto. Gellately incorpora descobertas originais de 19.000 arquivos documentais remanescentes da Gestapo de Wurzburg. Esses documentos cobriram todo o período do Terceiro Reich, e oferecem evidencias diretas da base social do regime e do processo de policiamento. Também foi feito o uso de materiais semelhantes extraídos de estudos derivados de 70.000 documentos da Gestapo de Dusseldorf. Além disso, o ensaio examina o trabalho de outros autores, com destaque para Reinhard Mann e sua pesquisa na área de Dusseldorf. Robert Gellatelly afirma que as denúncias eram parte complementar da estruturação social da Alemanha nazista e tinham um papel essencial no sistema de terror, sendo o instrumento que permitia a atividade da Gestapo.[viii]
O passo inicial desta análise é entender como a população podia ser aterrorizada, se a Gestapo não dispunha nem mesmo do recurso humano necessário para proceder com a vigilância da maioria do povo. A análise quantitativa de Gellately e os resultados estabelecidos sobre as operações da Gestapo partiram de um cuidado especial com a análise dos materiais e arquivos obtidos, sendo que considerava possibilidades evidentes de informações e diligências que poderiam ter sido desencadeadas de forma minimamente questionável. Uma clássica situação hipotética que Gellataly (2004) oferece parte da premissa de que, uma vez no poder da Gestapo, uma vítima poderia facilmente imputar em si ou em outras pessoas, durante os interrogatórios, notícias de ocasiões de todo tipo de comportamento “criminoso”. Contudo, mesmo tendo todo cuidado necessário para analisar as fichas de investigação da Gestapo, principalmente no exame relativo às fontes de informação, o que foi demonstrado com clareza é que as denúncias procedentes da população tinham um papel essencial. “Sabemos que 26% da totalidade dos casos começou com uma denúncia identificável e esta é a cifra que deve ser considerada como o mínimo.” (GELLATELY, 2004, p.189). Muitas informações provenientes de instituições nazistas, organizações de controle, de autoridades comunitárias ou autoridades do próprio Estado também constituíam em certa medida informações oriundas da população.
Deixando de lado a questão dos motivos, as denúncias da população constituíam o vínculo chave da tripla interação que existia na Alemanha nazista, entre a polícia, os cidadãos e as medidas políticas. No funcionamento do sistema de terror, a participação popular por meio do fornecimento de informação foi um dos fatores mais importantes. Esta conclusão sugere que é preciso considerar a ideia de que a Gestapo constituíra um “instrumento de dominação” (Herrschaftsinstrument): e se foi instrumento de alguma coisa, tratava-se de um instrumento que tinha sido construído no seio da sociedade alemã, um instrumento cujo funcionamento dependia estruturalmente da permanente cooperação dos cidadãos alemães.[ix]
Desta forma, as fontes indicam que a aterradora imposição do regime teria sido prejudicada sem um significativo grau de cooperação pública. E é inevitável a reflexão se isto constitui algum tipo de prova de que a população alemã aceitou o programa de Hitler e o consentimento em prol do nazismo foi de grande difusão, já que a cooperação foi originada sob todo um conjunto pretextos.
Gellately (2004) ressalta que não foi promulgada nenhuma lei especifica que obrigasse as pessoas a fornecer informações umas das outras e que as leis estavam formuladas de maneira tão ampla, que mesmo uma crítica inofensiva ao Estado, ao partido, a legislação e as lideranças políticas podiam fundamentar uma denúncia.
[…] o código penal alemão já existente (artigo 139) continha uma estipulação que convertia em dever o ato de informar determinados delitos que alguém suspeitasse estarem prestes a acontecer: a lei sobre alta traição definia que era delito não informar as autoridades um possível ato de traição, que incluía ameaças aos aliados da Alemanha, e outras coisas similares. O decreto presidencial de 21 de março de 1933 contra as críticas mal-intencionadas contra o governo, e a lei de 20 de dezembro de 1934 contra as críticas mal-intencionadas ao Estado e ao partido, foram ambos concebidos para parar com os rumores nos locais públicos, mas também afetavam os comentários que, realizados no privado, poderiam repercutir no público. Nenhum deles estipulava que a denúncia fosse um dever formal, nem sequer mencionavam a questão, mas ambos pareciam pressupor que um cidadão de bem informaria em caso de escutar algum rumor deste tipo.[x]
Nos primeiros meses do regime nazista, uma enxurrada de denúncias surgiu em toda a Alemanha: pessoas denunciavam vizinhos, parentes, amigos, maridos e esposas à polícia. “Denúncias ainda foram usadas para resolver disputas entre vizinhos e até mesmo as mais “triviais” acabavam de forma desastrosa” (GELLATELY, 2011, p.345). Muitas pessoas aproveitaram a situação para resolver problemas pessoais com inimigos, eliminar a competição em escala empresarial e nos comércios locais e resolver problemas com vizinhos, através das falsas alegações. A quantidade de denúncias falsas tomou uma proporção tão grande, que para não se deixar enganar com os muitos cidadãos que tentavam tirar proveito da situação, as autoridades do Reich tomaram uma série de medidas para conter a acelerada expansão dessas denúncias, muitas das quais se baseavam em verificar a existência de conflitos anteriores. No entanto, o problema desse tipo de acusações prosseguiu durante todo o domínio nazista e o drama foi ainda maior durante os anos de guerra, quando a vida social passou a estar cada vez mais sob a jurisdição da polícia. Nesse sistema de denúncias, o que prevaleceu foi uma desconfiança generalizada onde todos se espionavam de forma contínua e esse mecanismo foi utilizado para alguns fins particulares (que foi um aspecto das delações que o regime não previu em absoluto).[xi]
Gellately (2004) chama atenção para o fato que a maioria das pessoas denunciava gente que pertencia ao mesmo meio social, consequentemente, as fontes de informação da Gestapo incluíam predominantemente as pessoas pertencentes às camadas inferiores da escala social.
Sobre as conclusões de Reinhard Mann, Gellately afirma:
[…] em 37% dos casos, o motivo da delação residia no fato de constituir um meio para resolver conflitos particulares, em outros 39% dos casos não era possível discernir motivo algum, e apenas em 24% cabia situar a causa na lealdade ao regime como tal. Mais uma vez, estas estatísticas sugerem que o ingrediente mais relevante do sistema de terror – a denúncia – era geralmente determinada por razões pessoais, e isso foi usado por razões instrumentais que o regime nunca pretendeu buscar. A questão mais importante é que, na medida em que deram efeito prático as intenções do regime de controlar e modificar o comportamento social, todas as denúncias funcionaram de uma maneira que podemos qualificar como “lealdade ao sistema”.[xii]
Além disso, a política racial constituía o interesse supremo na Alemanha nazista e, embora múltiplos exemplos tenham demonstrado que denúncias podiam partir de razões equivocadas e que muitas pessoas viram uma oportunidade para tirar proveito próprio das novas leis, para a polícia, se havia a informação de um delito grave, os motivos do denunciante eram secundários. O fato de ter acontecido o delito era uma questão diferente da questão da origem da informação, em outras palavras, os motivos não eram tão importantes para a forma como o Estado policial operava.[xiii]
Gellately (2004) observa que “[…] suposições comuns sobre os denunciantes é que em sua grande maioria eram desajustados sociais cuja fraqueza de caráter veio à tona sob certas condições sociais.” (p.212). Contudo, analisa que em cenários de desordem social, períodos de guerra e escassez costumam estimular essa tendência de comportamento, explicando, assim, que a presença de delatores não foi uma característica exclusiva da sociedade alemã.
É necessário apontar que todos os aspectos da vida social durante o Terceiro Reich estavam politizados. As pessoas tinham ao seu alcance certo nível de poder social que nunca tiveram antes. Compreenderam que através da Gestapo podiam prevalecer nas disputas, saldar dívidas, se livrar de inimizades. Era mais eficiente levantar uma acusação politicamente significativa, embora até o simples fato de sugerir à polícia que havia algo “suspeito” pudesse funcionar por um tempo. De maneira geral, a polícia, até mesmo nos casos em que investigava pessoas difamadas, prosseguia como se pudesse haver algo nas alegações.
Em Wurzburgo do princípio de 1935, veio o caso de uma família que denunciou seu vizinho, Hans Fichtel, porque, supostamente, havia dito: “Para o inferno com a bandeira da suástica!” (“Hakenkreuzfahne, darauf scheisse ich!”). A Gestapo atendeu a denúncia apesar de conhecer a família que a criou – como toda a cidade sabia, no que diz respeito a isso – por suas acusações falsas. Em Wurzburgo, a família inteira, por causa de suas numerosas denúncias anteriores, havia sido condenada ao ostracismo, e necessitava agora de ajuda do departamento para voltar à vida social. A existência desta reputação não impediu que a investigação das acusações contra Fichtel seguissem seu curso.[xiv]
Este exemplo mostra que, em se tratando da Gestapo, qualquer denúncia poderia trazer graves consequências para a vítima. Gellately (2004) observou que “[…] de todas as pessoas denunciadas à polícia por motivos particulares, um quarto foi preso de forma provisória, passando uma média de três dias detida, enquanto não era estabelecida a falta de fundamento nas acusações”(p.213). Mesmo nos outros casos que não eram sucedidos por prisões só a experiência de ser interrogado pela Gestapo já seria uma experiência pavorosa.
Os colaboradores forneceram uma avalanche de informações à Gestapo, o que implicava na grande capacidade de controle social que a Gestapo e outras autoridades policiais tinham. Durante os anos de guerra, o conjunto de atividades que podiam ser denunciadas se ampliou de forma significativa: fechar as cortinas de casa, escutar a estação de rádio errada ou quebrar alguma regra de racionamento eram exemplos de delitos que podiam trazer graves consequências. E mesmo vindo de fontes questionáveis, não só eram registrados pela polícia como também eram objeto de uma investigação ativa, acompanhada e interrogatórios e prisões.[xv]
O conjunto de motivos, que a sociedade alemã encontrou para fornecer informação às autoridades policiais, foi da qualidade pessoal e torpe até a condição ideológica. A participação social que auxiliou o regime a fazer cumprir medidas políticas de todo o tipo, seguindo a lógica dos autores trabalhados, deve ser no mínimo um elemento de consideração para uma avaliação da estrutura do sistema de terror nazista, que, apesar de alguns receios em relação a natureza imprudente e falsa das denúncias, preferia contar com o consenso popular e dispor de um excesso de informação.
[i] TORO MUÑOZ, Francisco Miguel: “Policía, Denuncia y control social: Alemania y Austria durante el Tercer Reich”. En Historia Social, 34 (1999), Fundación Instituto de Historia Social. p.117-119.
[ii] GELLATELY, Robert. La Gestapo y la sociedade alemana: la política racial nazi (1933-1945). Barcelona: Paidós, 2004. p. 70. Tradução nossa.
[iii] Ibid. p. 71. Tradução nossa.
[iv] Ibid. p.72.
[v] Ibid. p.93.
[vi] Ibid. p. 112.
[vii] GELLATELY, Robert. La Gestapo y la sociedade alemana: la política racial nazi (1933-1945). Barcelona: Paidós, 2004. p. 181-182.
[viii] Ibid. p.33-35,185-187.
[ix] Ibid. p. 190. Tradução nossa.
[x] Ibid. p. 193. Tradução nossa.
[xi] Ibid. p. 194-200.
[xii] Ibid. p. 204. Tradução nossa.
[xiii] Ibid. p. 207-210.
[xiv] Ibid. p.. 212. Tradução nossa.
[xv] Ibid. p. 213-216.
Excelente artigo, parabéns!