O ovo da serpente

Beatriz Lima Oliveira da Silva
Licencianda do curso de História da UFF CAMPOS – Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional.
Marxista de esquerda em aprendizado, Feminista, assim como Gramsci odeia os indiferentes, fiel à crítica e outras formas de ser do contra, naruteira e “mãe” de gato nas horas vagas.

O ovo da serpente

O ovo da serpente

O filme de Ingmar Bergman O ovo da serpente, analisado a seguir, teve seu lançamento em 28 de Outubro de 1977, na Suécia. Seu título foi retirado de uma fala do personagem Brutus na tragédia de William Shakespeare Julius Caeser (1599).

A obra cinematográfica é considerada uma das mais importantes do diretor. A produção sobre o contexto de ascensão nazista na Alemanha reflete o debate estético da linguagem do Cinema no período Entre-Guerras: o realismo voltado para as massas, com objetivos didáticos: conhecer e refletir sobe a história contemporânea vivenciada por tantos – a Grande Guerra e uma situação de decadência ética que a situação de Guerra havia exposto.

No contexto do desenvolvimento da arte cinematográfica enquanto cultura de massa e da expansão da indústria do cinema como proposta artística e cultural que pretendia constituir um projeto de mudanças do pensamento, com vistas defender a liberdade de expressão, Bergman estabeleceu parcerias com estúdios estadunidense e alemão. Além de Bergman, outros profissionais de destaque estavam envolvidos neste projeto, entre eles: Dino de Laurentiis (produção), Petra Von Oellfen (edição), Rolf  A.Whillem (trilha sonora), Werner Achmann (direção de arte) e Sven Nykvist (fotografia). Esta parceria com Hollywood teria sido a única de Bergson.

Ambientado em 1923, a obra nos apresenta a situação social e econômica da Alemanha pós Primeira Guerra Mundial (1914-1918): um país arrasado pela Grande Guerra, sob os impactos das decisões do Tratado de Versalhes (1919), e experimentando a recém instaurada República de Weimar (1918) que retirou do poder o Kaiser Guilherme II.

Tendo como plano de fundo a semana em que Adolf Hitler liderou o Putsch Da Cervejaria em Munique na tentativa de um golpe de Estado contra a recém república de constituição democrática, somos apresentados aos personagens Abel Rosenberg um ex -trapezista judeu abalado pelo suicídio de seu irmão, vivido por David Carradine, e a dançarina de cabaré ex – cunhada de Rosenberg, Manuela Rosenberg, estrelada pela prestigiada atriz Liv Ullmann. A história do casal de excunhados, que mais tarde se envolvem na trama, passa por turbulências principalmente após a mudança para uma casa próxima a uma clínica chamada Clínica Santa Clara, lugar que Hans Vergérus, o amigo de Manuela, os ofereceu. Rosenberg não tem uma boa relação com Vérgerus, deixando explícito que não está disposto vir a ser seu amigo um dia, e suas suspeitas quanto ao homem são confirmadas quando descobre seus experimentos feitos em humanos na clínica. Com um final surpreendente, Bergman propõe em seu filme a auto-reflexão sobre a ascensão do Nazifascismo e os fenômenos que o precederam.

Um dos elementos incorporados pelo cinema que refletem esse período histórico está no tempo nebuloso e a constante ambientação chuvosa que Berlim é mostrada, assim remetendo a tristeza e apatia do povo alemão que tentava seguir sua vida apesar das dificuldades econômicas e sociais. Além disso, vemos um antissemitismo “germinando” na consciência dos cidadãos e alguns desses exemplos ocorrem quando Rosenberg está à procura de um emprego e precisa acertar sua estadia no país, então é interrogado pelo Inspetor Bauer que pergunta ao ex-trapezista se o mesmo era judeu, mas a situação é contornada quando ele questiona o motivo dessa pergunta tão específica. Desse modo, é possível notar características do ideal nazista já presentes na atmosfera institucional alemã antes mesmo do regime de Hitler chegar ao poder, ou seja, o “inimigo” judaico do povo germânico estava ganhando forma. Outro ponto que aborda não apenas o anti-semitismo, mas algo que foi citado diversas vezes como um fator de engajamento no discurso dos nazistas, a fome, é retratada por meio de uma das cenas mais fortes do filme na qual um grupo de pessoas de classe baixa matam um cavalo e comem sua carne para sobreviverem tendo em vista o trágico momento que a moeda alemã não mais correspondia ao valor impresso e sim ao seu peso, o que mais tarde ocasionou o seu desuso (fato narrado pelo personagem Rosenberg).

Além da crise econômica, social e o sofrimento das classes baixas, a prisão de Rosenberg (e sua tentativa de fuga) em que foi acusado pelo Inspetor Bauer de assassinar alguns judeus moradores de seu bairro, e o incêndio provocado pelos nazistas no cabaré em que Manuela trabalhava são dois acontecimentos que mostram como as autoridades foram permissivas com os ataques aos judeus e como a própria instituição policial também não via problema em tratar com hostilidade esse grupo. Robert Paxton na sua obra A Anatomia do Fascismo (2007) pontua que “(…) Sabemos, após rastrear sua trajetória, que, para se tornar enraizado, o fascismo não necessita de uma “marcha” de dimensões espetaculares sobre alguma capital. Ao que tudo indica, decisões anódinas de tolerar o tratamento ilegal de inimigos nacionais é o bastante.” (PAXTON, 2007, pp. 360 e 361). Partindo dessa análise, as cenas descritas anteriormente confirmam o argumento do historiador, principalmente no que concerne a questão ideológica por detrás dessas atitudes com relação ao inimigo, pois o fascismo apesar de ser apresentado como uma terceira alternativa entre o liberalismo e o socialismo, o mesmo possuí fortes ideais ideológicos que foram fundamentais para adquirir adeptos e conquistar as massas. Além de Paxton, o pesquisador eslovênio e marxista Slavoj Zizek classifica o imaginário ideológico contemporâneo como um fetichismo em sua obra Primeiro como tragédia, depois como farsa (2011), que segundo ele, não possuí mais sintomas que mostrem os “rasgos” do véu da “mentira ideológica”, ou seja, o sintoma torna-se uma exceção (ZIZEK, 2011, pp. 62)

No caso do “judeu” como fetiche fascista, a desmistificação interpretativa é muito mais difícil (confirmando, assim, o entendimento clínico de que o fetichismo não pode ser solapado com a interpretação do “significado” do fetiche; os fetichistas se sentem satisfeitos com seus fetiches, não têm necessidade de se livrar deles). Em termos políticos práticos, isso significa que é quase impossível “esclarecer” o trabalhador explorado que culpa os “judeus” por seu sofrimento – explicar-lhe que o “judeu” é o inimigo errado, promovido pelo verdadeiro inimigo (a classe dominante) com o objetivo de ocultar a luta verdadeira – e, assim, voltar sua atenção dos “judeus” para o “capitalismo”. (ZIZEK, 2011, pp 65).

Através de Zizek também podemos observar a importância de compreender como ideais nazistas funcionavam no imaginário popular e relacionarmos a forma na qual foram postos em prática. Paxton explica que mesmo que os adeptos da ideologia de Hitler possuíssem um programa a seguir, o mesmo precisou ser modificado para estar de acordo com o período em que foi colocado em prática, e afastado do que ele chama de fascismo real. Assim, explicitando também que apesar de estarem longe do racionalismo, suas ações eram pensadas previamente e movidas por paixões mobilizadas (PAXTON, 2007). Os acontecimentos anteriores ao governo hitlerista são mostrados com ênfase pelo diretor/roteirista Bergman, e é no final do filme que seu título é explicado ao telespectador e ao personagem Rosenberg: Com o falecimento de Manuela, que havia adoecido misteriosamente tempos antes, o ex-trapezista descobre que ele e sua ex-cunhada foram alvos dos experimentos de Vérgerus (assim como os judeus do bairro de Rosenberg). O médico explica que aquele momento turbulento que o povo alemão estava vivendo era apenas o ambiente perfeito para algo muito maior se desenvolver, que os filhos dos atuais pais alimentariam o ódio pela situação caótica que se encontravam, e então se juntariam a um movimento grandioso disposto a mudar a Alemanha de maneiras nunca vistas anteriormente. O ovo é uma metáfora desse período e que por dentro uma serpente como o nazismo estaria prestes a eclodir: “É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito”. (BERGMAN, 1977)

Como mencionada anteriormente, a obra possui um conteúdo reflexivo e já foi analisado por diversas pessoas desde jornalistas até cientistas políticos, principalmente em relação ao contexto brasileiro do século XXI, mais especificamente antes das eleições de 2018 que tinha como candidato o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Há um artigo no Jornal O Globo do dia 31/03/2018 escrito por Fernando Gabeira, jornalista e ex-militante comunista que lutou contra a Ditadura Militar por meio da guerrilha, no qual faz apontamentos que remetem a Teoria do Totalitarismo de 1950, fortemente criticada por Robert Paxton e Slavoj Zizek.

A crise que estamos vivendo é resultado do fracasso de um longo governo da esquerda. Seus erros estimularam o surgimento de inúmeras tendências na direita, inclusive a mais autoritária. O jogo da radicalização pode ser jogado com gosto por alguns. No entanto, seu desdobramento seria um país dividido, uma saída messiânica de um lado ou de outro. Esse argumento não comove nem direita nem esquerda autoritárias. Ambas contam com o conflito como dinâmica de sua estratégia de poder. (GABEIRA, 2018, O Globo)

O oportunismo que ele menciona por parte da esquerda e da direita autoritárias como forma de tática de poder nos mostra que Gabeira facilmente colocaria Stalin e Hitler no mesmo pólo. Apesar de envolvido com a esquerda radical no período de chumbo da Ditadura Militar, o ex-guerrilheiro não poupa críticas a essa mesma esquerda e utiliza da obra de Irgmar Bergman para sustentar sua argumentação

Muitas vezes citado em momentos críticos, o filme de Ingmar Bergman “O ovo da serpente” mostra os conflitos na Alemanha na ascensão do nazismo. As circunstâncias são diferentes, mas uma lição histórica, que talvez valha para outros momentos, é que a ascensão de um movimento autoritário não é algo que se afirma em contextos de grandes erros estratégicos da esquerda. (2008, GABEIRA, O Globo)

Sua interpretação liberal é um exemplo do que Paxton menciona nesse tipo de análise, onde o fascismo é tratado como algo que simplesmente surge e que não depende de fatores do próprio período histórico (PAXTON, 2007, pp 337), haja vista a comparação feita com o Brasil antes das eleições presidenciais de 2018. Desse modo, O ovo da serpente também é tratado por alguns como uma alusão a qualquer tipo de autoritarismo seja o próprio nazismo que é abordado ou de esquerda como o caso bolchevique. Isso nos mostra como esse tema é analisado de tal forma que características importantes que o diferem do socialismo são obscurecidas “Ver tanto Hitler quanto Stálin como totalitários, é tratá-los da mesma forma leva a um exercício moral comparativo: Qual dos dois monstros foi mais monstruoso?” (PAXTON, 2007, pp 348). O historiador não tem o compromisso de fazer uma análise moral dos fenômenos históricos, mas de analisá-los como específicos de seu próprio tempo e que as atrocidades reveladas ao longo da pesquisa sobre esse tema sejam usadas como uma forma de repensar o passado de forma crítica.

Não é fácil determinar as reações corretas ao avanço fascista, uma vez que seu ciclo não tende a se replicar de maneira cega. No entanto nossas chances de reagir de forma sensata serão maiores se compreendermos de que forma ele veio a alcançar êxito no passado. (PAXTON, pp. 361, 2007)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

PAXTON, Robert O. (Robert Owen), 1932, O que é o fascismo? , In: A Anatomia do Fascismo/ Robert O. Paxton; tradução de Patricia Zimbres e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2007. Cap 8, p. 335-338.

ZIZEK, Slavoj 1949. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.

O ovo da serpente. Direção de Ingmar Bergmann. Alemanha e Estados Unidos: Metro Goldwyn Maya. 1977. 120 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M0WqyFnNsiE&t=1s>

O ovo da serpente. 2018.  Jornal O Globo. Coluna do Gabeira. Rio de Janeiro. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/o-ovo-da-serpente-22543477>

THE SERPENT’S EGG. In: WIKIPÉDIA: A enciclopédia livre. Wikimedia, 2020. Disponível em: <  https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Serpent%27s_Egg >  Acessado em: 17/10/2020.

Professora Doutora do Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (LEIT) e do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA). Membro do Grupo de Estudos do Integralismo (GEINT).

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