O PODER EM FOUCAULT

  1.  A NOÇÃO DE PODER EM FOUCAULT

Não há certificação nem carteirinha de foucaultiano. […]

Foucault aponta para o fato de que não há muito sentido

 em alguém se declarar foucaultiano,

visto que segui-lo significa, necessariamente,

tentar sempre usá-lo e ultrapassá-lo, deixando-o para trás.

Assim, ser fiel à sua filosofia significa,

ao mesmo tempo, ser-lhe infiel, sem que aí exista

necessariamente uma contradição

(VEIGA-NETO, 2005, p. 24-25).

https://machinedeleuze.wordpress.com/2017/04/08/e-inutil-revoltar-se-por-michel-foucault

Michel Foucault, intelectual francês, fez estudos em campos variados do saber como os da Medicina, Direito, Psicologia, Geografia, Sexualidade, Psiquiatria, dentre outros, especialmente nas décadas de 60 e 70. Os estudos sobre as relações de poder perpassam toda a sua obra, não sendo, entretanto, objeto de uma sistematização totalizadora. Ou seja, Foucault não tem a rigor, uma teoria geral do poder (que poderia ser aplicada em qualquer contexto) mas sim, uma visão analítica do poder, como ele mesmo salienta:

O que está em jogo nas investigações que virão a seguir é dirigirmos menos para uma ‘teoria’ do poder que para uma ‘analítica’ do poder: para uma definição do domínio específico formado pelas relações de poder e determinação dos instrumentos que permitam analisá-lo (FOUCAULT, 1985, p.80)         .

Na verdade, o que Foucault propõe é uma reflexão mais específica do poder, evitando discutir, por exemplo, a origem do mesmo, como se vê neste trecho:

 […] o problema não é de constituir uma teoria do poder que teria como função refazer o que um Boulainvilliers ou Rousseau queriam fazer. Todos os dois partem de um estágio originário em que todos os homens são iguais, e depois o que acontece? Invasão histórica para um, acontecimento mítico para outro, mas sempre aparece a idéia de que, a partir de um momento, as pessoas não tiveram mais direitos e surgiu o poder. Se o objetivo for construir uma teoria do poder, haverá sempre a necessidade de considerá-lo como algo que surgiu em um determinado momento, de que se deveria fazer a gênese e depois a dedução. Mas se o poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações, então o único problema é munir-se de princípios de análise que permitam uma analítica das relações do poder (FOUCAULT, 2004, p. 248).

Ao mesmo tempo em que Foucault não se preocupa em formar uma teoria geral do poder, também não se prende a analisá-lo de uma forma tradicionalmente negativa. É uma percepção inovadora do poder e isso fica bem claro neste trecho: “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 2004, p.8).

Percebe-se claramente então, que Foucault entende o poder como uma força motriz, uma força de criação, de produção. Visto por essa perspectiva, o poder deixa de ser simplesmente um mecanismo legal ou repressor para transformar-se numa prática de produção.

As relações de poder são imanentes às relações sociais, não lhes são exteriores ou o reflexo mecânico das necessidades econômicas ou dos interesses de uma classe; movem os vários afrontamentos, disputas e distribuições que acabam por configurar e produzir as práticas sociais de certas maneiras e não de outras: produzem verdades, conhecimentos, identidades, funcionamentos, realidades (RATTO, 2007, p. 3).

Ao deixar de analisar o poder pela ótica do Direito –– “É preciso construir uma analítica do poder que não tome o Direito como modelo […]” (Foucault, 1985, p. 87) –– ele preocupa-se em entender o poder como um uma estratégia, um instrumento para se chegar a algo, com se vê:

Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições,  a manobras,  a táticas,  a técnicas, a funcionamentos (FOUCAULT, 2002, p.26).

As relações de poder estão vinculadas a toda e qualquer relação social, pois o poder não é propriedade, é relação; e onde há relação de poder, a qualquer momento, pode também haver a resistência. Este trecho é profundamente esclarecedor:

Eventualmente, a resistência manifesta-se na forma das grandes rupturas ou revoluções; mas seja na forma da mudança radical, seja quando a visualizamos como o outro do poder, a resistência é composta e se distribui em meio a múltiplos focos, em última instância, não possuem coerência ou identidade fixas. Daí porque a necessidade de analisá-la no plural e em sua contingência, sua singularidade –– para além do que pode ser reconhecido como os elementos comuns que a movem ––, como vários pontos de resistência que podem negar e podem também constituir-se como superfícies de apoio ao poder, a partir das mais variadas combinações. Tais especificidades indicam importantes variações de alcance, de função ou de potencial nas disputas em questão (RATTO, 2007, p.4-5).

Se levarmos essa lógica para o âmbito escolar, podemos entender que a indisciplina gerada pela escola implica também em certas  formas de resistência, uma vez que se configura no contexto das relações de poder aí existentes e no tipo de lógica que as movem.

1.1 Relações de poder: para além do Estado

Como já foi visto, para Foucault, não há agrupamento social sem relações de poder: Isso seria uma abstração, algo impensável, pois o poder é inerente a toda e qualquer relação humana e social. Historicamente falando, os agrupamentos humanos tendem para a hierarquia, quando o mais forte, o mais rico, o mais esperto, o mais capaz, a depender do contexto histórico e cultural, se sobressai e domina. Em qualquer momento histórico, antes mesmo da existência de um Estado organizado, as relações de poder estão presentes. Nesse sentido, a visão do Estado como fonte central e única de poder é questionável, uma vez que as relações de poder são anteriores e estão para além dele, não podendo ser analisadas apenas sob a ótica dos aparelhos estatais ou sob a ótica do Direito.

A questão do poder fica empobrecida quando é colocada unicamente em termos de legislação, de Constituição, ou somente em termos de Estado ou aparelho de Estado. O poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado (FOUCAULT,  2004,  p. 221).

Nesse sentido, Roberto Machado (2004, p. XI), na introdução do livro Microfísica do Poder, ao discorrer sobre o tema pela ótica de Foucault, deixa claro que o que aparecem são formas de exercício de poder complexas que

articulam-se de maneiras variadas e às vezes indispensáveis para a sustentação  e atuação do Estado.

Para Foucault, o estudo do poder foi fundamental para o entendimento do papel da humanidade e das diferentes maneiras de se lutar por uma sociedade mais justa.

Esta dificuldade –– nosso embaraço em encontrar as formas de luta adequadas –– não virá de que ainda ignoramos o que é poder? Afinal de contas, foi preciso esperar o século XIX para saber o que era exploração; mas talvez não se saiba o que é poder. E Marx e Freud talvez não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, que se chama poder  (FOUCAULT, 2004, p. 75).

Ao dialogar com a obra de Freud e Marx, Foucault quis apontar para outros caminhos, para uma análise nova e mais apurada do poder, entendido como uma força complexa e produtiva que deveria ser esmiuçado até as últimas conseqüências. Ao questionar a análise marxista, baseada sobretudo nas necessidades do capital, Foucault vai além. Para ele, o poder não se explica unicamente pela busca do lucro ou pela exploração do capital; mais sutil, o poder se esconde em relações tão delicadas e ínfimas que muitas vezes passa despercebido. É quase impossível vê-lo e saber quem é seu titular.

1.2 Uma “máquina” para exercitar o poder –– O Panóptico de Bentham

O Panóptico é uma figura arquitetônica. Foi criado por Jeremy Bentham, um jurista inglês, no final do século XVIII e pode ser definido com uma construção em anel, cujo centro é uma torre com janelas que se abrem para a face interna do anel. As celas ficam dispostas ao redor dessa torre. Cada cela possui duas janelas, uma para o interior e outra para o exterior.  Quem fica na torre, o vigia, tem uma visão perfeita do que acontece nas celas. Cada prisioneiro, fechado em sua sala, não pode ver ninguém; entretanto é visto o tempo todo pelo vigia, por quem está no centro. Para Foucault, o efeito mais importante do Panóptico é induzir no prisioneiro “um estado permanente e consciente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 2002, p. 166).         A questão  principal  não   é    alguém    estar efetivamente vigiando, mas sim que os prisioneiros saibam que podem estar sendo constantemente vigiados. Foucault esclarece que Bentham coloca o princípio de que o poder, nesse sentido, deveria ser visível e inverificável: visível porque o tempo todo o prisioneiro verá a figura da torre em sua frente, ela é o símbolo da vigilância; e inverificável porque o prisioneiro nunca sabe se está sendo vigiado ou não –– embora tenha certeza de que pode estar sendo a qualquer momento.

https://universodafilosofia.com/2017/12/o-panoptico-de-foucault-em-vigiar-e-punir/

É importante lembrar que quem pode exercer o poder é quem tem algum grau de autoridade. Nesse sentido, qualquer um pode exercê-lo. Basta que esteja no lugar certo, na torre. Não importa tanto sua posição na  hierarquia ou sua formação. Estar na torre legitima sua autoridade e potencializa seu poder perante os que estão sendo observados. O custo desse poder é mínimo. É o custo do olhar.

Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra si mesmo. Fórmula maravilhosa; um poder contínuo e de custo afinal de contas irrisório (FOUCAULT, 2004, p. 218).

Para Foucault, Bentham, ao inventar o Panóptico, foi um dos inventores de uma das tecnologias de poder mais exemplares da modernidade.

1.3 O bio-poder e as disciplinas

Mais especialmente a partir do início da década de 70, Foucault começa a se preocupar em como se dá a atuação do poder sobre os corpos, agindo sobre eles. Sua constatação inicial foi a de que o corpo, durante a época clássica, foi descoberto como objeto e alvo de poder. A partir disso, centrou-se em analisar esse processo de intervenção dos mecanismos de poder sobre o corpo dos indivíduos, constituindo-os de determinadas maneiras. Segundo Foucault, o corpo está completamente inserido no campo político. Toda e qualquer relação de poder atinge imediatamente o corpo, que se constitui a partir de determinados estímulos. Por um lado, há um corpo global, o corpo coletivo, que é o conjunto de toda a população. Do outro lado, estão os corpos individuais, ou seja, o corpo de cada um.  Às relações de poder que agem sobre as populações Foucault chamou-as de bio-poder.

 Já as técnicas que objetivam levar o corpo individual a uma docilidade, a um treinamento e até –– pode-se dizer –– a uma subserviência máxima, Foucault deu o nome de “disciplinas”. Tais disciplinas são tão sutis que, ao contrário da escravidão, não se fundamentam na apropriação explícita dos corpos. Não se utilizam de violência, portanto; mas seus efeitos de utilidade dos corpos são igualmente satisfatórios. Foucault também diferencia “as disciplinas” da domesticidade, que ele conceitua como: “[…] uma relação de dominação, constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma de vontade singular do patrão, “seu ‘capricho’ (FOUCAULT, 2002, p. 118).

Também faz distinção entre a vassalidade e as disciplinas monásticas, alegando que na vassalidade a submissão acontece menos sobre o corpo e mais sobre os produtos do trabalho. Sobre as disciplinas monásticas, Foucault (2002, p.118-119) considera que o objetivo final delas é dar ao indivíduo mais domínio sobre o próprio corpo.  Já “as disciplinas”, além de aumentar a habilidade do corpo e aprofundar sua sujeição, têm como  função principal  torná-lo, quanto mais obediente, mais útil e vice-versa. Assim, chega-se ao conceito dos corpos dóceis. Os corpos dóceis são exercitados e submissos, corpos produtivos em que as relações de poder fazem aumentar sua energia e sua capacidade.

Essas técnicas políticas de tipo disciplinar não se delinearam “da noite para o dia”. Elas foram acontecendo aos poucos, fruto de uma

[…] multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral  (FOUCAULT, 2002, p. 119).

Para Foucault, ao longo da modernidade, essas técnicas são facilmente encontradas nas escolas, nos hospitais e nos ambientes militares. Representam um modo de investimento político e detalhado sobre o corpo, uma nova “microfísica” do poder.  E ele afirma que desde o século XVII, essa microfísica não parou de alcançar cada vez mais espaços e campos sociais. 

Só que de uma maneira tão discreta, tão sutil e ínfima que torna-se muito difícil identificá-la. Sobre tais mecanismos, ele afirma:

Descrevê-los implicará na demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução; recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante, quanto da atenta ‘malevolência’ que de tudo se alimenta. A disciplina é a anatomia política do detalhe (FOUCAULT, 2002, p. 120; grifo nosso).

O olhar atento de Foucault encontrou muito mais sob o detalhe que talvez qualquer outro pensador. Ao tentar decifrar as minúcias, ele percebeu algo muito produtivo, grandioso, um poder gigantesco, que se apodera de maneira quase imperceptível do corpo humano, produzindo identidades.

Em qualquer agrupamento social, seja escola, quartel, hospital, oficina, enfim, em qualquer lugar onde haja interação social, os detalhes são importantes para que o sistema todo funcione. Assim, a disposição dos espaços e objetos, os olhares, as regras, os mecanismos de controle, tudo faz parte de uma mecânica cujo objetivo é fazer funcionar a organização. O alvo de qualquer organização –– os corpos –– agem e reagem de acordo com esses detalhes, que, somados, fazem com que se consiga  chegar a um resultado. Não a qualquer resultado, mas a um resultado pretendido e planejado, que no caso do tipo de lógica disciplinar apontada por Foucault visa a máxima docilidade e utilidade possível dos indivíduos.

  • Texto retirado do trabalho: O PODER DISCIPLINADOR DA ESCOLA – UMA PERSPECTIVA FOUCAULTIANA, escrito pela autora e orientado pela Prof.ª Dra. Ana Lucia Silva Ratto, da UFPR.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Vanisse Simone Alves Corrêa é Doutora em Educação pela UFPR e professora adjunta da UNESPAR - EMBAP no curso de Licenciatura em Artes Visuais.

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