ABRIL DESPEDAÇADO

Há quem veja uma remota ligação entre o nome “abril” e uma possível derivação do verbo latino “aperire” (abrir): aperilis, forma que designaria “o mês em que a terra se abre e amacia para receber as sementes” (Houaiss). Para nós, que temos em abril um período de safra, essa conexão com o plantio ganha o macabro simbolismo de uma colheita às avessas: no Brasil, nesse momento, a terra se abre para receber os corpos das vítimas da covid19. E não é que a terra se amacie para tais acolhimentos: ela é violentada pelo absurdo número de covas, consequência de políticas e comportamentos que fazem desse um abril despedaçado.

Graças à metáfora, chegamos rapidamente a uma nova conexão, em que ligamos o nosso abril real com a ficção trágica de Ismail Kadaré e sua paráfrase cinematográfica feita por Walter Salles. Uma ligação que se dá mais pelas diferenças que pelos pontos de encontro. No livro a situação trágica se estabelece a partir de uma ação conservadora: o protagonista não tem escolha a não ser seguir a lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, que regula ancestralmente as relações entre as famílias em seu meio; a sina inexorável do protagonista é vingar a morte de um parente. A culpa por essa morte recai sobre a família do criminoso e a vingança é um dever dos familiares da vítima. Assim, o percurso trágico do personagem é definido pela incapacidade de romper com a tradição, pela submissão a uma ordem culturalmente estabelecida.

Em sentido inverso, o programa narrativo que rege hoje a via trágica da realidade brasileira, começa com dupla ruptura de ordens: primeiro, o despedaçamento da ordem constitucional, através de um golpe parlamentar que depõe sem motivo legal um governo legítimo; depois, o desprezo alucinado, inconsequente, pelas conquistas da civilização e das ciências. Nossa situação trágica não se deve a um destino inelutável, determinado por teias seculares e pelos nós cegos de sua trama, mas é fruto da escolha insensata de alguns, ancorada na servidão voluntária de outros.

Assim nossa tragédia, verdadeira e atroz, tem uma estrutura de drama: a redenção é possível, já que não é obra do destino, mas fruto de nossas escolhas no mundo real dos humanos. O abril que hoje despedaçamos com nossas próprias mãos, ou que deixamos despedaçar, cruzando os braços, pode se transformar segundo nossa determinação, autores que somos de nossos enredos.

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Afonso Guerra-Baião é professor e escritor. Reside em Curvelo/MG. Publicou recentemente “SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER”, pela Aldrava Letras de Artes. Publicou duas narrativas em ebook pela Amazon: “O INIMIGO DO POVO” e “A NOITE DO MEU BEM”. Seus textos podem ser lidos no Face, no Instagram e em publicações especializadas, como o Suplemento Literário do “Minas Gerais”. Como letrista, possui parcerias com compositores com João Bosco, Gilberto Mauro e Tião Gomes.

15 Comments

  1. Afonso Guerra-Baião disse:

    Agradeço a Lucca Tartaglia e a Izabel Liviski pela oportunidade da participação e pelo acolhimento atencioso.

  2. André Luiz Baião Campos disse:

    Sempre lúcido e poético no tempero certo. Morando aqui no nordeste, vejo uma outra aflição (além das muitas) em outro mês tão sagrado para a cultura aqui: Junho. Sobre a duração desse pesadelo político-sanitário as pessoas me perguntam : “será que não vai ter São João de novo?” eu falo: “vai sim, vai sim…”

  3. André Luiz Baião Campos disse:

    Sempre lúcido e poético no tempero certo. Morando aqui no nordeste, vejo uma outra aflição (além das muitas) em outro mês tão sagrado para a cultura aqui: Junho. Sobre a duração desse pesadelo político-sanitário as pessoas me perguntam : “será que não vai ter São João de novo?” eu falo: “vai sim, vai sim…”

  4. Marlene disse:

    Que show ! Esse texto precisa circular, para que um número grande de pessoas possam ler. Parabéns Afonso !

  5. Eliane Barbirato disse:

    Parabéns.
    Li esse livro há muitos anos. Desassossegou- me a inércia daquela cidade, ou vila? que anos após anos cumpriam seus destinos sem que um movimento de rebeldia os acometesse.
    Você transportou para o nosso Abril e, frimente, nos faz protagonistas de nossos destinos. Esse auto despedaçamento que nos permitimos.
    Sucesso e obrigada pelos textos lindíssimos.
    Que triste, poeta.

  6. Silvana Maria Fernandino disse:

    Sempre usufruindo e aprendendo com as palavras do professor, escritor, poeta Afonso Guerra-Baiao. Soa tão bem esta fonte de autêntico saber que nos é dado com generosidade. Lembra-nos que ainda há riquezas neste mundo de meu Deus. Sucesso, amigo neste espaço que privilegia diversidade, arte e cultura. Parabéns!

  7. Luiz Raimundo disse:

    Como sempre, Grande Afonso: lúcido, sensato, culto e que nos transmite seu pontos de de vista de forma clara e marcante. Parabéns meu caro e querido amigo (quase parente)! Abraços recheados de saudade.

  8. Maria das Graças de Castro Bregunci disse:

    Afonso inaugura coluna com o brilho de sempre, a escrita sofisticada e contundente Parabéns!.Tema dramático e angustiante, do qual é impossível se esquivar.
    Mesmo despedaçada, leio como admiradora, com muito orgulho !

  9. Maria das Graças de Castro Bregunci disse:

    Afonso inaugura coluna com o brilho de sempre, a escrita sofisticada e contundente Parabéns! Tema dramático e angustiante, do qual é impossível se esquivar.
    Mesmo despedaçada, leio como admiradora, com muito orgulho !

  10. Lucilia disse:

    Texto muito real e, como tal, muito trágico, mas ainda deixa escapar uma esperança. Parabéns Afonso

  11. Clara Baião disse:

    Parabéns pela estreia nesta revista.
    O texto traz a realidade com recursos muito significativos da nossa cultura. Um abraço.

  12. Marcus Vinícius Campos Francisquini disse:

    Os leitores dessa revista irão ganhar muito ao passar a contar com o talento de Afonso Guerra Baião! Irão se deliciar com o dom da escrita e as mensagens embutidas nos textos, sempre escritos com maestria , acréscimos de referencias literárias preciosas, referências históricas e filosóficas.

  13. Bel disse:

    Parabéns, Afonso Guerra-Baião! Estreando em grande estilo.
    Em nome da Equipe Editorial reitero as boas vindas,
    agradecendo pela sua preciosa colaboração neste espaço
    que será, com absoluta certeza, surpreendente a cada edição.

  14. André Luiz Reis Mattos disse:

    Excelente reflexão Prof., alegria em conhecer seus escritos, parabéns.

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