Fotografia, nostalgia e utopia.

Na edição de domingo, 3 de abril de 2011 do jornal “O Globo”, em um trecho da reportagem “Exposição de fotos revela o passado do Rio – Memórias da Cidade reúne imagens das décadas de 50 e 60, que fazem parte do acervo da Agência O Globo”, vemos algumas imagens deste acervo, em exposição que reuniu 65 fotografias separadas por temas como mobiliário urbano, transporte e arquitetura.

No final do artigo encontra-se destacada a opinião do designer visual da exposição, Sr. Jair de Souza que, analisando as fotografias, afirmou que estas “mostram a atmosfera diferente, que existia no Rio: “__ Tem a foto do Parque Shanghai, que hoje voltou a ser visitado, de um homem ouvindo jogo do Brasil num rádio de pilha enquanto fazia a barba. É uma época que você não conheceu, mas [da qual] sente saudade”. (meu destaque)

Em tempos de exaustão emocional como o que vivemos atualmente, decorrente das restrições impostas pela pandemia do Coronavirus, a nostalgia e a saudade se apresentam como “o anseio por um tempo diferente, não necessariamente [mas também] a saudade de um lugar” (Silva, 2019), tempo e lugares que ressurgem depositados nas imagens fotográficas de um passado “ao qual não se pode mais ter acesso, mas também como artifício que pode gerar sensações de presença através das possibilidades do ter sido.” (Silva, 219)

A fotografia não pode ser confinada a “qualquer sistema redutor”, e entre os vários “olhares” ou discursos, tem-se a dimensão temporal da saudade e da nostalgia como objeto de análise, por conduzir alguns – e eu me incluo entre estes, a uma lembrança representativa de uma realidade vivida, experimentada, não apenas por sua construção ocorrida num tempo próximo e igualmente histórico, mas por uma aspiração da natureza do sentimento de atração pelo passado, por um período ou um lugar que estabelece associações agradáveis, surgindo “voluntária ou involuntariamente, como instrumento gerador da utopia, ancorado (…) nos sonhos de um outro lugar e de um outro tempo”. (BEBIANO, 2000)

Imagens 1, 2, 3 e 4: Da esquerda para direita, de cima para baixo: (1) tomada de um parquinho na Praça São Sebastião em frente à antiga sede da Escola Estadual Condessa do Rio Novo (atualmente Casa de Cultura); (2) registro do concurso Garota Simpatia de 1968, promovido pela Rádio Três Rios em comemoração pelos seus 21 anos, nas dependências do Clube Atlético Entre-Rios – CAER; (3) e (4) tomadas do desfile cívico de sete de setembro com apresentação da bateria do Colégio Cenecista Walter Franklin e de uma das quermesses realizada na Igreja São Sebastião. Fotos da década de 1960, sem fotógrafo conhecido, do acervo Rádio Três Rios. Todas as fotos da cidade de Três Rios/RJ.

Não entendemos saudade e nostalgia como sendo a mesma coisa, mas partimos da ideia de que a nostalgia carrega uma força narrativa que permite maior decomposição de sua estrutura; a saudade aparece como uma de suas dimensões. (…) A história da historiografia, como analítica da historicidade, contribui sobremaneira para compreender o papel narrativo das emoções ao representar o tempo, seja em leituras do passado, seja em projeções do futuro. Pôr em evidencia as dimensões emocionais do fazer historiográfico, além de instigar uma nova relação entre o historiador e seu objeto, lança novas sensibilidades e empatias para o leitor. (SILVA, 2019)

As atividades referenciadas nos registros fotográficos acima são práticas presentes em nossa sociedade e apesar de tantas mudanças sociais ocorridas no passar do tempo, são percebidas e experimentadas ainda por muitos, sendo possível observar-se – nostalgicamente -, semelhanças e diferenças com relação aos momentos do presente e do passado.

Quantas lembranças são movimentadas nas memórias das pessoas quando nos deparamos com as imagens de crianças brincando em um parquinho na praça? As atividades religiosas com procissão, barraquinhas de salgados e doces, fogos de artifício, ruas enfeitadas, pessoas com “roupa de ir à missa”, nostalgicamente removem do esquecimento as lembranças de tempos experimentados ou apenas percebidos nos discursos de outros, referendados que são nas fotografias. Realidades que os impositivos da pandemia vão aos poucos nos afastando pela necessidade de preservação de vidas.

Desfiles cívicos, bailes populares, programas de rádio, concursos de beleza, passeios na praia, jogo de futebol nos estádios ou nos pequenos campinhos de terra batida ao observar tais eventos, tem-se a memória sensorial, emocional, como efeito de proximidade, no comparecimento vivo através de uma imagem do passado, que retorna ao presente pela lembrança reencontrada, movimentada e compartilhada pelos reminiscentes presentes nas fotografias.

Imagem 5: Jovens confraternizando no interior do coreto da Praça São Sebastião em Três Rios/RJ, nesta tomada externa realizada entre o final dos 50 e o início dos 60. O isolamento social necessário diante das características de contágio do Covid 19, tem diminuído as aglomerações como estas, gerando, para muitos, saudades destas vivências. Fotografia do acervo Rádio Três Rios, sem autor conhecido.

O isolamento social caracteriza-se por apresentar-se como agente fomentador de stress, com impactos psicológicos e emocionais e sentimentos de esgotamento físico e mental, agregando-se à solidão, à saudade, a depressão e desordens interpessoais; bem como, as experiências da fome, do desemprego, da morte e do luto, e da incerteza do futuro.

É neste contexto em que a nostalgia e a utopia se apresentam como impositivos de sentimentos no presente, que se atrelam ao passado que se pretende reviver (nostalgia) ou de um futuro (utopia) que se deseja construir.

A utopia nasce como gênero literário e discurso político. Enquanto a nostalgia é o anseio pela volta a casa, a utopia é o não lugar. As utopias não têm lugar definido, são peças do imaginário centradas na palavra e aspiram existência. Em seu sentido original, as utopias estão associadas à questão da ideologia. Compõem um conjunto de ideias e crenças que dão sentido e norteiam comportamentos. As utopias são a criação imaginária de uma sociedade em que as realizações de homens e mulheres são marcadas por valores de igualdade, justiça e bem-estar comum. O esfacelamento desses valores em uma sociedade cujas práticas (ou falta delas) são movidas pela expansão do capitalismo, pelo consumo e pelo fetiche do original tende a produzir uma incessante busca pelo passado idealizado. (SILVA, 2019)

Nostalgia e utopia se confundem neste momento em que o presente não corresponde aos anseios de todos por um país que proporcione segurança social em todos os seus campos, pois vivemos um …

(…) governo [que] vem se aproveitando do sofrimento do povo para aplicar medidas perversas de uma política econômica que esvazia as chances de um Estado soberano e com justiça social. Ao lado disso, esse governo e suas alianças promovem a mais danosa política ambiental e a escolha de um caminho isolado nas relações internacionais, em especial neste momento de extrema necessidade e dependência de tecnologias e insumos para o controle do novo coronavírus. O governo não é só incompetente em administrar o País na pior crise sanitária de nossa história. Ele trabalha contra os interesses das e dos brasileiros, deixando mortos pelo caminho, mentindo e fazendo descaso do sofrimento e aprofundando as condições de pobreza, com uma política econômica austericida que reduz o investimento público, considerado um modelo de política tosca, antiquada e de ineficácia comprovada em todo o mundo, mesmo entre teóricos conservadores. (RIZZOTTO, COSTA e LOBATO, 2020)

Neste contexto as fotografias então se qualificam como lugares de lembrança dos testemunhos de outros, que permanecem “vivos” no referente fotográfico, incitando não só uma leitura rememorativa de fatos e ações dos sujeitos históricos em seu tempo, mas também, através do olhar no presente, delinear as lembranças em comum; sem perder a condição de fonte e objeto de estudos e pesquisas multidisciplinares, permitindo abarcar temáticas diversas, passando do campo nostálgico e utópico, nas ciências humanas e destes para o campo dos estudos de memórias.

Fazemos parte de uma coletividade social e o nosso testemunho reflete muito do que absorvemos das relações nesta sociedade. Os referenciais de memória que formamos também espelham esta realidade, independente do tempo e dos espaços de relação de existência do ser, permitindo que os sentimentos de saudade e nostalgia também estejam entre as dimensões possíveis de análise das fotografias.

Imagem 6: Observa-se a presença do público – homens, mulheres e crianças -, durante a inauguração do estádio de futebol do Entrerriense Futebol Clube, na cidade de Três Rios/RJ, em 1930. Destaque à direita para arquibancada, que possuía, embaixo, os vestiários para os jogadores, e na esquerda, no primeiro plano, instrumentos musicais da Banda 1° de Maio. Os jogos de futebol tem ocorrido, nestes tempos de pandemia, sem a presença do público. Sem informação do autor da fotografia, acervo André Mattos

Como condição humana, a nostalgia é um elemento que acompanha as transformações da modernidade e faz parte de um repertório básico de experiências. Como conceito forte, seja por tradição seja por um tempo que não existe mais ou nunca existiu, ela é capaz de modular memórias individuais e coletivas. A nostalgia por muito foi entendida como um sintoma ou causa de buracos entre significantes e significados, uma doença que passou do estágio físico para o social e se transformou, numa análise conservadora, em uma abdicação da memória, um desejo inútil por um mundo ou um modo de vida do qual alguém é irrevogavelmente separado. (SILVA, 2019)

A nostalgia e a utopia em tempos de profundo impacto em habituais relações sociais, quando ocorre uma “busca ávida por traços distintivos de uma época [e lugares do passado ou pensados para o futuro], idílica, sempre se nos apresenta pulsante ao encararmos uma imagem já recuada no tempo.” (ARAUJO) Ademais, num outro “canto” deste conceito, é possível que o olhar de um fotógrafo do tempo presente observe no mundo ao seu redor, lugares, pessoas, hábitos, que encontrem similaridades ao experimentado e percebido por outras pessoas no passado; serão sempre como memórias compartilhadas.

Cada espaço vivido surge com funções originalmente particulares e distintas, e no seu processo de formação, as suas respectivas histórias e memórias se entrelaçam. Os registros fotográficos revelam-se de suma importância por permitirem a observação cuidadosa dos processos de rupturas, continuidades e sobreposições arrastados no âmbito das alterações urbanas, o que também favorece a percepção de caminhos possíveis que serão percorridos no futuro. A compreensão faz-se pelo papel de registro dos fatos em tempos históricos que, principalmente o material fotográfico disponível de diversos acervos concede. “Esquecer um período da vida é perder o contato com os que então nos rodeavam.” (HALBWACHS, 2009, p. 37)

Jean Duvignaud afirma que Maurice Halbwachs demonstra ser impossível “conceber o problema da recordação e da localização das lembranças quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais reais que servem de baliza a essa reconstrução que chamamos de memória”, (DUVIGNAUD, 2009, prefácio p. 7-8) estabelecendo que a pesquisa historiográfica não deva se desvincular de uma apreciação das memórias coletivas. A experiência compartilhada da memória através das interações sociais é fator formador da identidade dos sujeitos, e suas lembranças são resultados deste processo, preservando uma experiência histórica repleta de valores e tradições culturais.

“Não esqueçamos que a memória parte do presente, de um presente ávido pelo passado, cuja percepção “é a apropriação veemente do que nós sabemos que não nos pertence mais,”” e a imagem fotográfica é “uma coisa viva… que sobe do passado com todo o seu frescor. Chamada de novo, trabalhada pela percepção do agora, arrisca-se a fugir da captura de um presente que não se reconhece nela.” (BOSI, 2004, p. 20)

Estas reflexões me conduziram ao personagem Gil Pender do filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, 2011). Um homem vivendo os conflitos da modernidade, que encontra em passeios noturno por Paris um passado que ele não pode experenciar e que confia ser melhor que seu presente. Uma maneira de confrontar a realidade existencial do presente, que lhe ajuda a mudar o seu futuro (que no princípio da trama poderia ser visto como algo utópico).

Referências:

ARAUJO, Marcelo da Silva. Na imagem do passado a nostalgia do presente; memória, lazer e sociabilidade na Praça da Lira. Disponível no site: http://www.ffp.uerj.br/tamoios/2008.1/praca%20da%20lira%20Marcelo%20da%20Silva%20Ara%FAjo.pdf. Acesso mar. 2011.

BEBIANO, Rui. Nostalgia e imaginação: dois fatores dinâmicos num mundo global. Disponível no site: http://www.apfilosofia.org/documentos/pdf/RuiBebiano_Memoria_Globalizacao.pdf. Acesso abr. 2011.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial. São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.

DUVIGNAUD, Jean in prefácio, HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.

RIZZOTTO, COSTA e LOBATO; Ana Maria Frizzon, Ana Maria e Laura de Vasconcelos Costa. A esperança impulsiona, alimenta, move e fortalece a utopia. Disponível em https://www.scielo.br/j/sdeb/a/K8T7nqTnzZLXRXP4GswTvHP/?format=pdf&lang=pt. Acesso jun. 2021.

SILVA, Rodrigo Machado da. História e Historiografia Analítica e sentimental: Preposições sobre a distância histórica, nostalgia e visões da modernidade brasileira dos oitocentos. Disponível em https://www.scielo.br/j/alm/a/WVtpzfdGG8xKHNJYsDD4h6r/?lang=pt#. Acesso jun. 2021.

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Bacharel em Administração pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro , Licenciado em História pela Universidade de Uberaba, Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pela Faculdades Integradas de Jacarepaguá, Mestre em História Social - linha de pesquisa em História Cultural pela Universidade de Vassouras/RJ. Foi Presidente da Fundação Educacional de Três Rios/RJ, e Professor dos cursos de Pedagogia (História da Educação, História da Arte, Arte e Educação) e Logística (Comercio Exterior) da Faetec de Três Rios/RJ.

5 Comments

  1. Bel disse:

    Parabéns pelo seu artigo, André!
    Sensacional, mesmo.
    Abraço.
    Bel

    • André Luiz Reis Mattos disse:

      Muito obrigado, fique a vontade sempre para se manifestar, opinar, comentar; pois vc é uma referência importante para mim.

  2. Jonas M. Alvares disse:

    Excelente artigo, André!
    O Sr Quintino Pinto Álvares é meu trisavô, e não sabia da participação dele nesses projetos.
    Abraço!!

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