Feminismo islâmico: uma consciência emergente de gênero em negociação e resistência à laicização

Nota inicial: Este texto foi originalmente publicado em outras mídias, como no portal www.icarabe.org.

 

O contato entre religião e gênero, embora seja palco de muitas tensões, é também de muita produtividade. A agenda contemporânea, com ênfase nas reivindicações das minorias sociais, impactou também os estudos e as vivências de religião. Esta aproximação entre religião e gênero não ocorre de maneira linear, sendo por vezes até contraditória, trazendo, de um lado, críticas ao papel das religiões na manutenção de sistemas opressores tais quais o machismo, sexismo, misoginia, homofobia, a ponto de alguns movimentos feministas seculares como o Femen , boa parte dos feminismos seculares, entre outros, enxergarem as religiões como as maiores fontes de legitimação das opressões contra as mulheres, indicando a necessidade de eliminação das religiões. Por outro lado, assiste-se ao surgimento de uma série de movimentos feministas que nascem no seio das religiões (católicas feministas, feminismo judaico, o próprio feminismo islâmico).

No caso do feminismo islâmico, existe um universo de pautas em construção que são muito distintas das reivindicações de outros grupos feministas, tanto os seculares como os religiosos de outras vertentes. De um modo geral, o Islã é visto equivocadamente pelo Ocidente como um todo homogêneo de costumes e valores, perdendo-se a dimensão de diversidade das culturas islâmicas. Como bem Edward Said (2007) comenta, o Oriente, como uma invenção do Ocidente, tem adquirido representações de um “outro” bárbaro, estranho e não civilizado.

Tal perspectiva ganha contornos ainda mais evidentes quando da intensificação dos processos de islamofobia no mundo. Identifica-se, principalmente em países europeus, uma agenda crescente de laicização, uma meta de eliminação ou diminuição das religiões no espaço público. Tal agenda, acrescida de um sentimento anti-islamismo, tem alimentado situações tensas, como vemos na França, Inglaterra e EUA, com políticas de endurecimento à entrada e permanência de migrantes, algumas delas claramente voltadas para migrantes muçulmanxs.

Em relação aos direitos das mulheres e ao seu papel no contexto do islamismo, o movimento feminista islâmico está na base do contato entre tradição e modernidade, em que a laicidade passa a ditar mudanças importantes nas relações entre religião e outros segmentos da cultura. Não por acaso, o feminismo islâmico tem muitas ativistas que cresceram e estudaram fora do mundo muçulmano, em sociedades “mais ocidentalizadas”. Isso explica a força do movimento em países como Turquia e Egito, que possuem um intercâmbio evidente com o mundo ocidental.

Atualmente, existe a compreensão de algumas feministas islâmicas de que a questão da vestimenta mulçumana teria se tornado um elemento usado em uma disputa política, na qual, em nome da defesa da laicidade, acaba-se por garantir legalmente tendências discriminatórias contra as mulheres muçulmanas e liberação de um discurso islamofóbico (ALI, 2012, p. 2). Acciari (2012) também alerta para o risco de instrumentalizar o feminismo para fins racistas e anti-islâmicos. Neste sentido, o uso da vestimenta muçulmana tornou-se um instrumento de poder em uma disputa política e dentro deste novo cenário de reislamização, vê-se uma defesa do uso do véu como forma de empoderamento e de marcação identitária pela escolha em ser muçulmana.

Nota-se que as mudanças de pautas das mulheres muçulmanas demarcam fronteiras delicadas e importantes entre, de um lado, a reislamização e demarcação de valores e da identidade islâmica, e de outro, a agenda ocidental e secular do feminismo, que pressiona a questionar tendências machistas e misóginas no interior das crenças islâmicas, vendo, muitas vezes, a religião muçulmana como fonte de boa parte das opressões contra mulheres existentes.

Nesse sentido, o feminismo islâmico, demarcando a identidade religiosa de suas líderes, passa a clamar por transformações nas interpretações dos textos sagrados, no que se refere ao papel das mulheres nas sociedades, assumindo uma inédita separação entre religião e cultura. Algumas de suas pautas são a reivindicação de que as mulheres possam desfazer o casamento a partir de suas escolhas, ou viajar sem a companhia (tutela) de um homem (BADRAN, 2009).

Adeptas do feminismo islâmico utilizam trechos do Alcorão e dos hadiths que designariam igualdade entre homens e mulheres e que estariam esquecidos pelo fundamentalismo islâmico, com o intuito de mostrar que a desigualdade de gênero não é endógena à religião, mas um traço de hermenêutica. Considera-se que as interpretações vigentes do Alcorão atribuem posicionamentos misóginos ao profeta, mas que tais posicionamentos seriam interpretativos, sendo possível ler os textos sagrados sem essa conotação (MIR-HOSSEINI, 2006; BARLAS, 2002). A estratégia central do feminismo islâmico tem sido a construção de uma nova hermenêutica dos textos sagrados islâmicos.

Um ponto a ser destacado é que existe uma procura entre as feministas muçulmanas de serem reconhecidas como religiosas e respeitadas nessa dimensão, na busca da reafirmação de sua identidade religiosa em outras bases, que não as concepções conhecidas como tradicionais do islamismo. A luta pela igualdade de gênero não rivaliza com a identidade religiosa. E este é um aprendizado que parece afrontar o mundo ocidental – externo a esta perspectiva.
Quando movimentos feministas – como o Femen, citado no início deste texto – atacam a religião muçulmana, acabam por desconsiderar a voz destas mulheres, potencialmente parceiras na luta de gênero.

Há que se considerar um isolamento político de feminismo islâmico perto de boa parte dos feminismos seculares, que consideram que o islamismo e seu código de valores apontam para a direção contrária à emancipação das mulheres e outras pautas dos direitos humanos dura e (ainda) parcialmente conquistadas. As religiões em geral, mas especialmente a muçulmana, são vistas pelos movimentos sociais, principalmente os feministas, como fonte de grande opressão às mulheres e, em geral, representantes de pautas conservadoras. Nesta perspectiva, os movimentos sociais acabam por associar religião a um universo ultrapassado e conservador, numa linha de opor religião à modernidade e de apregoar laicidade como eliminação das religiões dos espaços públicos.

Nesse sentido, identificamos no feminismo islâmico uma resistência à meta ocidental de laicização, e, embora seja possível identificar essa como uma característica dos movimentos feministas religiosos em geral, reconhecemos um cenário bastante acentuado entre as mulheres feministas islâmicas, que defendem sua religião, atacando justamente os olhares e as construções culturais sobre a mesma. Tal resistência cria um processo de defesa identitária importante e visível, no qual ser muçulmana, ser mulher e ser feminista exigem do restante do mundo um reconhecimento sobre os modelos binaristas, preconceituosos e ignorantes sobre o qual se têm estabelecido os olhares acerca do universo das mulheres islâmicas. Enfim, as mulheres mulçumanas não precisam ser salvas pelo Ocidente.

Clarissa De Franco é psicóloga da Universidade Federal do ABC, doutora e mestra em Ciência da Religião,com pós-doutorado em Estudos de Gênero na Argentina. Atua com temas como Religião, Gênero e Direitos Humanos; Religião, Laicidade e Política; Psicologia, Morte, Saúde e Espiritualidade.

Referências

ACCIARI, Louisa. Féminisme et religion, entre conflits et convergences: le cas des femmes syndicalistes au Brésil.Contretemps, oct. 2012.
ALI, Zahra. Femmes, féminisme et Islam: décoloniser, décloisonner et renouveler le féminisme. Front du 20 mars, Paris, 6. jul. 2012.
BADRAN, Margot. Feminism in Islam: secular and religious convergences. London: Oxford Press, 2009
BARLAS, Asma. “Believing Women” in Islam: unreading patriarchal interpretations of the Qur’an. USA: University of Texas Press, 2002.
MIR-HOSSEINI, Ziba. “Muslim women’s quest for equality: between Islamic law and feminism.” Critical Inquiry, 32, Summer 2006, p. 629-645.
SAID, Eward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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