Cristina Miyuki Hashizume
O cenário da pandemia, aliado à nossa condição de enclausurados em nossas casas faz com que nossa saúde mental também seja afetada. Dunker (2000) explica um fenômeno psicológico e social que temos vivenciado nos dias de hoje: uma certa negação (seja consciente, seja inconsciente) em relação à pandemia. Para compreender esse processo, a biopolítica, teoria que discute o controle sobre a vida e sobre os corpos sociais a partir de parâmetros produtivistas do capitalismo, nos mostra como a população é controlada a partir de critérios do capital e da produção. Do outro modo, a necropolítica não se preocupa em preservar vidas, mas de criar dispositivos que negam a existência de parcelas da população, permitem que o adoecimento se propague, ou ainda, que a desproteção leve alguns à morte (DAVIS, 2020; MASCARO, 2020).
O fenômeno de recusa à situação que vivemos nos coloca diante de uma simplificação da vida, deixando de lado discussões éticas sobre a solidariedade e sobre nossos sonhos e a condução de práticas que efetivem tais desejos. A negação da situação real em que vivemos nos leva a banalizar situações que, na verdade, deveriam ser inaceitáveis, além de nos impedir de analisar o cenário a partir de sua complexidade. O medo e a angústia que se apresentam no atual cenário, quando nos submetemos a um olhar negacionista, pode levar alguns a ter comportamentos agressivos ou de alienação à realidade. Nesse aspecto, podemos identificar a busca de grupos em apontar culpados pela situação que estamos vivendo. Atacar tais culpados, assim como fugir da realidade podem ser estratégias que minimizam o contato com a realidade difícil pela qual passamos. O risco que se corre, frente a essa estratégia é que o medo pode servir de pretexto para acentuarmos preconceitos, fantasmas e complexos relacionados a crenças diversas. Em todos esses processos, o não diálogo pode levar grupos a tomar decisões sem análise e sem discussão.
No que se refere à realidade educacional, acompanhamos a implementação, por parte das gestões, do ensino remoto (ou EAD), a partir de um discurso que ressalta a necessidade de cumprimento do calendário escolar, paralisado na pandemia. Nesse sentido, governantes se lançam da implantação das Tecnologias de Informação para as aulas on line. Porém a capacitação docente, assim como as condições sociais da comunidade escolar têm encontrado dificuldades na efetividade dessa prática, principalmente quando nos debruçamos sobre a educação básica.
Nosso objetivo, aqui, é problematizar as relações de trabalho docente na pandemia e discutir o cuidado laboral solidário necessário em relação à categoria docente com vistas a explicitar os excessos e violações a que são submetidos tais trabalhadores sob justificativas de aumento de eficiência na educação.
Além das fissuras aparentes escancaradas nas relações de trabalho dos profissionais que estão no front da batalha contra a pandemia, resultado do acirramento de práticas capitalistas, no trabalho docente nos deparamos com um discurso produtivista de necessidade urgente da continuidade das aulas remotas sob um pretenso discurso da produtividade e qualidade na educação.
Ainda que os docentes e profissionais da educação consigam se manter em quarentena, realizando as suas atividades docentes em home office, as redes públicas de ensino (seja a municipal, seja a estadual) clamam pela implementação do ensino remoto em nome dos prejuízos por não se cumprir o calendário escolar e da necessidade de avaliação do ensino básico, como se estivéssemos em condições normais de aulas e de vida. Diferentes situações, seja nas redes estaduais ou municipais públicas têm explicitado a cobrança das gestões educacionais pela produção escolar, sem necessariamente se considerar a situação atípica da pandemia.
Nesse sentido, estamos nos deparando com professores que estão sofrendo agudamente: desdobrando-se em atividades escolares diferenciadas (reuniões para planejamento e capacitação, atendimento individual a alunos, produção de conteúdo on line e físico para os que não têm acesso à internet), além de atividades estritamente docentes. A formação docente não tem se dado de forma adequada. E quando falamos de formação, nos referimos a questões relativas às ferramentas tecnológicas, pois o conhecimento pedagógico é um saber-fazer-reflexivo de domínio do docente, e que deve ser reconhecido como tal. Mas infelizmente temos visto um discurso da gestão que adia o reconhecimento do know how docente, como se o domínio dos softwares se sobrepusesse à sua expertise profissional. Com isso, percebe-se uma responsabilização do docente em relação ao possível futuro fracasso na aprendizagem do aluno no ensino remoto. Seria fundamental o reconhecimento da excepcionalidade do momento atual de pandemia, em que nem professores, nem comunidade escolar estão isentos das sequelas deste momento inédito. Os docentes, assim como seus alunos, estão passíveis de terem pessoas muito próximas afetadas pela doença, o que torna esse momento atípico para o exercício docente. Por parte das associações docentes há uma percepção de certa falta de solidariedade em relação a esses profissionais: mães, mulheres, negros, arrimos de família que podem estar passando por situações de descontrole e acirramento de problemas sociais, de moradia, segurança e emprego.
Segundo depoimentos, ainda preliminares de associações docentes, como a APEOESP-SBC, os professores têm se queixado de excesso de controle e pressão pelo seu trabalho. O uso das tecnologias para o controle remoto das produções docentes tem exaurido professores, que se queixam também de um ambiente de trabalho assediador, uma vez que não permite brechas para descanso e lazer, como é possível no trabalho presencial.
Esse cenário de trabalho abre brechas para a precarização ainda maior das relações de trabalho docentes, já que vemos que as atribuições docentes são cada vez mais flexibilizadas a ponto de, além das questões pedagógicas (propriamente ditas e de secretaria), terem que realizar outras tantas atividades, como envio de mensagens via redes sociais (em horários que extrapolam a sua carga de trabalho) individualmente ou em grupos pequenos, usando-se de ferramentas privadas. Nesse sentido, a vida privada (que, em geral, se desdobra em dupla ou tripla jornada de trabalho) se enreda à vida profissional, sendo que nem todos os profissionais têm condições adequadas para a realização das atividades docentes em casa.
Tal flexibilização deve ser ampla e profundamente debatida, tendo em vista que tem fragmentado o trabalho docente, limitando-o meramente ao “dar aula”, sem se levar em consideração o tempo de planejamento e capacitação para dedicação à essa nova modalidade de ensino.
De outro modo, temos presenciado, no ensino superior, debates por parte de associações de docentes que questionam o modo como o ensino à distância quer ser praticado. Por se tratarem de discussões epistemológicas importantes, trago-as aqui. Esse movimento alega que a educação pública superior tem o dever de pensar para além de questões pragmáticas, como cumprimento de calendário acadêmico ou mero controle do trabalho docente. A ANDES (Sindicato nacional dos docentes das instituições de ensino superior) vem denunciando a instituição do ensino à distância no ensino superior, uma vez que ele tem aprofundado desigualdades sociais, em nome da submissão ao capitalismo flexível no trabalho docente.
Há questões mais amplas que devem ser discutidas e que subjazem o ensino à distância. No Brasil, sabemos que a implementação da educação à distância tem como interesse primeiro a redução de custos, a privatização dos processos de ensino-aprendizagem, o que provoca a precarização das relações de trabalho, já que aumenta exponencialmente as atribuições docentes do professor. Nesse processo, defende-se uma máxima de que modernizar o ensino é sinônimo de incorporar as últimas tecnologias do ensino no ensino remoto. O perigo de tal máxima é abrir uma brecha para se questionar a eficiência do ensino presencial, reduzindo-o a critérios de mensuração meritocráticos e produtivistas, sem necessariamente se considerar os processos humanos e sociais envolvidos na relação de aprendizagem humana. E valorar as relações sociais, a solidariedade, tendo um olhar humanizado para os problemas da vida do aluno não é ultrapassado nem antiquado, como essa máxima pretende defender. Em última instância, podemos cair num discurso muito perigoso de contrapor o ensino presencial ao remoto (EAD), o que despolitiza as políticas educacionais para pensar a qualidade do ensino público.
Se formos pensar sobre a educação básica e o EAD, podemos refletir sobre a efetividade da prática atual neste momento de pandemia, assim como as relações humanas e de trabalho entre professores, gestão educacional e alunos. Sabemos que a sofisticação na criação de ferramentas tecnológicas nos permitem avanços em termos de conteúdo e gestão de conhecimento (LATOUCHE, 2009). A urgência e o momento atípico, porém, não podem justificar a implementação, sem reflexão, de modelos educacionais a partir de valores não coerentes com o ensino presencial público, existente e discutido ao longo de décadas de debates e práticas educacionais.
Referências:
DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.
DUNKER, C. L. A arte da quarentena para principiantes. São Paulo: Boitempo, 2020.
LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MASCARO, A.L. E- crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020.