LETRAS QUE VALEM A PENA, EM TEMPOS DE QUARENTENA…

Neste mês a coluna INcontros tem a colaboração em forma de crônicas e poemas de integrantes da Academia de Letras José de Alencar (ALJA), que iniciou suas atividades em 1939 como Associação de Cultura José de Alencar em Curitiba, Paraná. Sua atual presidente é a Dra. Anita Zippin. Para ilustrar esses belíssimos textos inspirados nas circunstâncias da pandemia em que estamos vivendo, nada mais coerente do que as imagens do pintor surrealista Salvador Dalí (1904-1989, Figueres – Espanha), o que dispensa quaisquer explicações lógicas. Boa leitura!

 

Não use máscaras (Ariadne Zippin)

Antes de reclamar, leia o texto.

Desde que a quarentena começou, eu tentei ficar o máximo em casa. Eu já tinha esse hábito de sair o mínimo possível entao não foi uma mudança tão drástica.

Precisei sair, por motivos pessoais sérios e me deparei com um mundo novo ou melhor com um mundo real, infelizmente.

O mundo está triste, as pessoas nos olham com medo, como se oferecessemos algum perigo, que de fato podemos oferecer, mesmo sem saber.

As máscaras nos deixam sentir um mundo mais melancólico pois não vemos o sorriso, não vemos o movimento facial e não vemos as pessoas.

Parada em uma rua observando o fluxo, me deparei com uma realidade pouco percebida por nós. USAMOS MÁSCARAS O TEMPO TODO mas elas eram invisíveis!

Sorrimos quando tristes.

Passamos batom para seduzir ou nos colorir e animar.

Não queremos que o outro nos veja como realmente somos.

Tentamos usar máscaras invisíveis por meio de palavras.

Já estamos habituados a isso e nem percebemos.

Quando percebemos nos machucamos.

O que está deixando o ar pesado e a tristeza é que por um lado estamos sendo obrigados a ver, com os olhos, o que nossa alma sempre soube. Usamos máscaras o dia todo!

Entramos em casa, fazemos a todo ritual de descontaminação mas esquecemos de tirar a máscara virtual.

A cada dia que passa, no isolamento, vamos descobrindo mais um pedacinho de nós, tirando um pouquinho dessa máscara, afinal estamos sozinhos.

Por um lado é salutar tirarmos a máscara mas por outro muitas vezes nos deparamos com alguém no espelho que nem sabemos mais quem é.

A vem a tristeza ou a depressão ou o medo ou o susto ou a ansiedade ou o nervosismo.

Estamos sozinhos em casa com alguém que não conhecemos mais!

Vamos as ruas e a sensação de usar a mascara acaba ficando de certa forma até confortável.

Não nos preocupamos com o mau halito, nem com o buço, nem com o sorriso e nem mesmo as palavras.

Sorte de quem consegue ver as pessoas por meio do olhar.

Desejo que tenhamos coragem para nos despir e tenhamos um mundo com mais máscaras de pano e menos máscaras na alma.

(Ariadne Zippin, terapeuta, escritora sócio-efetiva da Academia de Letras José de Alencar).

“Galatea das esferas”, 1952.

 

É preciso saber viver” (Elisa Monticelli)

Mais do que nunca, é preciso, sim, saber viver. Mas e aí? O que a vida espera de mim? Pode ser que estejamos acostumados demais em perguntar “o que esperar da vida?” E te digo: NADA! Não nascemos para esperar algo da vida, e sim para vivê-la.

Como diria Viktor Frankl, viver é arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, através do cumprimento das tarefas colocadas por ela a cada um de nós. Ou seja, a vida pede AÇÃO. Mas, e agora com essa tal de quarentena?

Ora, ora, a vida é dinâmica, meu caro leitor, e a cada hora e a cada um de nós ela pede algo. O que ela pede de você agora? Ah, Elisa, sei lá, não escuto nada, só vejo o caos se formando lá fora…estou preocupado demais, estou com medo futuro…e parece que ainda vai piorar né? Será o apocalipse? Pode ser que sim, mas pode ser que não. “Tudo muda o tempo todo no mundo”. Pergunte, silencie e escute. Ao perguntar, lembre-se de estar pronto para agir, pois sim, certamente ela lhe pedirá uma ação. Então aprume-se e pergunte. Pergunte realmente desejando ouvir a resposta: VIDA, O QUE VOCÊ ESPERA DE MIM?

Eu não tenho como adivinhar o que ela lhe pedirá, mas a mim ela respondeu “deixe o seu coração falar”. Confesso que meu primeiro impulso foi devolver com outra pergunta – “como?” – ela me sorriu e ainda respondeu: “apenas faça”. E aqui estou eu. Do meu coração ao seu coração.

n.a.: Respire profundamente 3 vezes, pergunte e solte-se da necessidade de ter a resposta no seu tempo. Esteja atento, sem ser marrento; a vida é sábia. Concentre-se no bem, e lembre que, o discernimento mora no silêncio.

(Elisa Monticelli- Formada em Coaching com PNL, certificada internacionalmente como Practitioner em Barras de Access, habilitada dentro do Sistema Universal de Cura Reiki e Magnified Healing, entre outras formações e pesquisas complementares na área de organização e autogerenciamento emocional. Além disso, é escritora, sócia-efetiva da Academia de Letras José de Alencar, e ainda, aprendiz da vida e professora por vocação).

“Rosa meditativa”, 1958.

 

Retiro Cultural (Anita Zippin)

No outono dia vida, quem diria que ficaríamos ao mesmo tempo em casa, a pensar e repensar na vida?

Quem diria que não iríamos viajar fisicamente, mas como bons escritores, darmos algumas passadas nos lugares sonhados ou até vividos em outras viagens?

Quem diria que estaríamos mais voltados para a família, para a mesa do café da tarde que nunca era usada , porque todos nós tínhamos nossos afazeres até a noite chegar bem forte?

Quem diria que poderíamos tomar banho longo, até de espuma para quem tem banheira ou hidro, como nos filmes, porque, depois de tantos anos, ou décadas… temos tempo?

Quem diria que os abraços e beijos proibidos pelo vírus mundial que se instala, deixariam de ser dados, ao menos nos companheiros e companheiras que há muito esperavam por um afeto um pouco mais longo?

Quem diria que podemos, mesmo de longe, dar um aceno para vizinhos que não víamos há anos, mesmo que de janela a janela, mas pensemos, há quanto tempo não notávamos a existência dos que vivem ao nosso redor?

Quem diria que podemos nos dar ao luxo de ver televisão sem que aquela voz estranha dentro de nós, obrigue a levantarmos para a produção de trabalho, literária ou mesmo doméstica?

Quem diria que iríamos ganhar férias, quase todos ao mesmo tempo, quase sempre remuneradas e poderíamos ficar de papo pro ar, vendo o sol nascer, se por e a lua toda bela chegar no meio das estrelas, dando até noites de luar?

Quem diria… quem diria…quem diria…

Saca do mal o bem, já me ensinava Dálio Zippin, advogado e jornalista, meu saudoso pai. Também ele dizia em alto brado:

para nós, nada de ruim acontece”.

E mais, pintou em letras garrafais no quarto das meninas Diana, Anita e Marilu, com o lápis de olhos de nossa mãe Lili a seguinte frase, um lema de vida:

Quando só se pretende a prática do bem, sempre se triunfa” (J.J. Rousseau)

Quem diria que um dia, todos ficaríamos em casa e poderíamos produzir literatura, textos, buscar outros escondidos em pastas, deleitarmos com matérias alheias que temos tempo de ler, organizar nosso computador que tudo aceita mas merece uma limpeza para deixar só o bom ao nosso redor?

Quem diria que os escritores estariam em Retiro Cultural?

Assim vejo os cancelamentos de reuniões culturais de todos os lados, de teatros e cinemas fechados, da Broadway, coração da cultura estar de portas fechadas por uma grande causa.

Por isso venho incentivar o escritor que vive dentro de cada um, aquele que procuro sempre nas palestras que ministro, dizendo que ou estes seres maravilhosos acordam, ou partem sem serem apresentados.

Busco o escritor dentro de cada um, e não precisa escrever. Basta apreciar a leitura, ou não gostar .É o escritor quem está se manifestando. Se derem um chance , ele vai acordando e, até dará textos belos, poemas lindos. Tudo poderá ficar dentro de uma gaveta, no computador, ser deletado, ou até se transformar em belo livro ou fazer parte de alguma antologia.

Por isso, querido leitor que me dá ouvidos, vamos , vamos, vamos!

Vamos ler, escrever, assistir os filmes que adoramos e nunca mais tivemos tempo para rever, conversar mais com nossos parentes e amigos, mesmo à distância. Mas vale a pena contar a eles o quão importantes são em nossas vidas. Temos tempo!

Que tudo volte ao normal, em breve.

Por enquanto, maestro música e Champanhe de Peppino de Capri.

Se quiserem acompanhar esta crônica com uma Moet, maravilha.

Até qualquer dia, ou qualquer noite, sempre com entusiasmo de quem está em Retiro Cultural.

Que “Tua seja a terra. E o céu também”!

(Anita Zippin, advogada, jornalista, escritora, presidente da Academia de Letras José de Alencar, ocupante da cadeira patronímica 7- patrono Humberto de Campos).

“O sono”, 1937.

 

ABSURDO (Arioswaldo Trancoso Cruz)

Planeta Terra, 2020

É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer outra coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”. Daniel Defoe, (In “A Peste”- Albert Camus, 1947).

Se hoje a nossa existência é um pélago profundo,

tudo ao nosso redor nos abate e amedronta,

invisível algoz nos castiga e afronta

com a dor mais cruel dentre os males do mundo;

Se vedado é o viver em convívio fecundo,

virulento, aleatório, o morrer nos confronta

essa ausência do amor que, liberto, desponta,

é de o homem cismar, sério e meditabundo:

– É mister que se feche a caixa de pandora!

Antes, deixe-lhe o fundo o brilho da esperança

por um retorno à paz, farol da liberdade.

Canto o instante feliz que bem próximo aflora,

pois purgado é o sofrer, e o direito à bonança

por merecer já o fez a pobre humanidade.

(Arioswaldo Trancoso Cruz, professor, poeta e escritor, 1a. vice-Presidente da Academia de Letras José de Alencar, ocupante da cadeira patronímica 24, patrono Castro Alves).

“Girafa em chamas”, 1936.

 

MAR CORÔNICO (Alberto Vellozo Machado)

(maio/2020)

Estamos, vários dias, navegando num mar corônico.

Em casas/naus trancados.

Grilhões: no isolamento atados.

Dúvidas anseios ansiedade.

Ajudaria sair, correr, falar, tocar: intimidade!

Entorpeceria, um momento,

Da doença o tempo.

Moléstia de Gaia, engendrada por seus filhos,

Agora, temerosos, nos tugúrios encolhidos.

Ajudaria o beijo, o abraço,

Os queridos, enlaçados, eon demorado.

Passará este dilúvio, esta lava de vulcão humano

Surto da teimosia e engano,

Nos erros persiste, persistiu sempre,

Hábito a não reservar, no presente,

Reflexão sobre as demandas humanas,

As reais.

Trancam-se, as pessoas, exasperam, insanas.

(Alberto Vellozo Machado, Procurador de Justiça, poeta, escritor, sócio efetivo da Academia de Letras José de Alencar, cadeira 38 – Patrono: Nestor de Castro)

“Cisnes refletindo Elefantes”, 1937.

 

https://academiadeletrasjosedealencar.blogspot.com/

Ofício de Flâneur : Lugares Secretos de Lisboa

“Lisboa, velha cidade
Cheia de encanto e beleza
Sempre a sorrir tão formosa
E no vestir sempre airosa
O branco véu da saudade
Cobre o teu rosto linda princesa
Olhai, senhores, esta Lisboa d’outras eras
Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais
Das festas, das seculares procissões
Dos populares pregões matinais, que já não voltam mais (…)”
(Trecho da canção Lisboa Antiga de Amália Rodrigues)*
Deambulando pela cidade de Lisboa descubro lugares inusitados, e a interação fortuita com as pessoas locais trazem oportunidades de reflexão e muitas vezes se transformam em situações pedagógicas por assim dizer, de estar-se aprendendo sempre algo novo. Pela segunda vez na ‘terrinha’ me descubro apaixonada por cada pequeno trecho, pelos muros antigos com graffites contrastantes, o velho e o novo transformando configurações urbanas. Meus trajetos estão situados fora do circuito tradicional de turismo, tudo o que me distancie das massas com guias em várias línguas, aquela Babel enlouquecida, com suas câmeras fotográficas metralhando tudo o que veem (ou não veem) pela frente.

Detalhe de porta no bairro Entre Campos

Parece que já vivi ali em tempos de antanho, mas não gosto de me aprofundar nesse tema, que soa metafísico demais para minha cabeça racionalizante. Fiquei hospedada no bairro do Saldanha, e pela manhã depois do café, fazia algumas caminhadas aguardando o horário para ir ao Congresso de Educação na Universidade de Lisboa, o motivador primário da viagem. Ao final da travessa Rebelo da Silva encontro um prédio da “terra pós-apocalíptica”, no dizer de um morador com quem mantenho um pequeno diálogo.

Graffites e construções tradicionais se harmonizam na paisagem urbana

Fico maravilhada ao encontrar aquele local único, o ar de abandono é visível, mas parece conter muita vida. Deixados ao sabor do tempo e do clima, esses prédios vão criando uma atmosfera nostálgica, até mesmo um pouco surreal. Observo com admiração lugares e casas assim, pela história que contêm, pela resiliência decrépita sobrevivendo em meio a outros edifícios bem comportados e dentro dos padrões estéticos convencionais.
– Se tiveres sorte, consegues ver os moradores….(diz o senhor, interrompendo meus pensamentos, com aquele delicioso ‘chiado’ na fala).
– Mas ainda existem moradores aí? (pergunto, entre encantada e perplexa)
– Sim, os pombos e morcegos (responde, com um tom de ironia)
Creio que ele disse somente pombos, mas a minha imaginação completou com os morcegos, Edgar Allan Poe também teria adorado o lugar. A (suposta) mãe desse morador, saindo do carro com muletas, me olha com uma expressão de estranheza quando digo que gosto do lugar e acho belo aquele prédio. “De que hospício saiu essa gaja? com tantos lugares turísticos, porque gastar tempo a tirar fotos, a admirar essas obras do acaso?”, deve ter pensado a velha senhora (adivinho pela sua expressão enfastiada).

Prédio da “terra pós-apocalíptica”, com um pequeno morador na janela.

No número 58 da rua Cidade da Horta, encontro o prédio onde Fernando Pessoa morou entre 1916 e 1917, sim, ele mesmo o poeta. A placa ao lado da porta com a pintura esmaecida diz que era um quarto alugado no primeiro andar. Como gostaria de viajar no tempo e de repente, ao virar uma esquina dar de cara com ele e dizer “bom dia”, quem sabe trocar algumas palavras. Que aspecto teria ele ‘em pessoa’? Magro, mal vestido, com o eterno chapéu ensebado e muito provavelmente, um livro embaixo do braço.

Fachada do local onde viveu Fernando Pessoa

Próximo dali, me chama a atenção uma lojinha chamada “Espaço Exibicionista”, um local para venda de bijuterias, a decoração toda feita com fotos de estrelas clássicas do cinema mundial. Por que será espaço exibicionista? O nome seria apenas para causar impacto? Ou teria a ver com a questão da vaidade do ‘se exibir’? Acabo concluindo que é meramente uma questão linguística entre expressões da língua portuguesa de lá e de cá.
Há uma pracinha recôndita no Largo da Estefânia, no bairro conhecido como Arroios, com a estátua de outro poeta lisboeta menos conhecido e menos incensado, de nome Cesário Verde (1855-1886)Este morreu muito jovem com tuberculose, como todo bom poeta do século XIX que se preze. Ninguém dá atenção a ele, que está a mais de um século sem direito a fala, imóvel, com seu olhar triste.
Em trecho do seu poema “O sentimento dum ocidental”, ele diz:
“Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer” (…)

Estátua de Cesário Verde, na Praça Ilha do Faial
Logo depois encontro o “Talho das Escadinhas” e descubro que talho significa açougue (faz sentido), próximo dali alguns gatos passeiam, provavelmente esperando um quinhão do açougueiro, ou talheiro. Converso com uma senhora, moradora local que diz preferir os gatos aos humanos (faz muito sentido). Observo ao pé das escadinhas alguns jovens turistas, e pelo som das conversas os identifico como alemães, estão sentados bebendo cerveja e parecem não se dar conta do lugar, ao sair largam as garrafas vazias próximo ao banco onde estavam.

Escadinhas, que dão nome ao local

Em muitas janelas há o charme das roupas estendidas nas áreas externas, o que me parece encantador, mas  penso no quanto isso representa um choque cultural para muita gente. Em alguns países, como nos EUA por exemplo (e até mesmo no Brasil) em certos locais é praticamente proibido secar roupas nos varais externos partindo de ideias culturalmente preconceituosas. Segundo o ditado popular “roupa suja se lava em casa”, se depreendendo daí que secá-la mesmo que limpa, deve-se fazer em ambiente privado também, para não expor sua intimidade e não desvalorizar o local.

Varais nas sacadas dos prédios:  um ar intimista e alegre às ruas.

Perscruto com olhar de uma etnografista urbana, objetos jogados como lixo em um dos pontos das escadinhas e lá encontro sapatos sofisticados ainda em bom estado, tecidos finos, caixas, tudo em desordem. Teriam sido colocados ali pelos herdeiros de uma velha senhora que “teria passado para o andar de cima” ou seriam acessórios de uma trupe falida de teatro?

Varal colorido, em meio às desoladas árvores do inverno

Dou um tempo na “Padaria do Bairro” para tomar sopa de cenouras com textura aveludada, acompanhada de pão, um copo d’água e uma taça de vinho tinto, e me decido a sentar em uma mesa do lado de fora. O dia é ensolarado, a refeição é perfeita mas quase acabo por criar polêmica com uma senhora que queria fumar sentada na mesma mesa, pois eram destinadas a ‘fumadores’ e ela insistia em que fosse me sentar lá dentro. Mas eu não podia perder a paisagem do lugar, observando as pessoas e aproveitando a trégua do clima ainda invernal do início de fevereiro.

Janela com gato

Voltei mais duas vezes para fotografar aquele edifício que ficava mais ou menos no trajeto das minhas caminhadas diárias. No primeiro dia estava garoando e a luz não estava apropriada, na última vez finalmente consegui capturar uma imagem com o sol se contrapondo às sombras, e aproveito para me despedir com respeito desse vetusto senhor, temendo por ele e por seus assemelhados, órfãos dos cuidados do poder público e do afeto dos seus habitantes. Olhando para o alto, além dos pássaros, não vejo “esta Lisboa d’outras eras”, mas enormes guindastes do progresso pairando implacáveis, sob os céus de Lisboa.

Janela e graffites, uma composição perfeita

*Para ouvir na íntegra essa belíssima canção de Amália Rodrigues, ilustrada com fotos históricas da cidade em preto e branco, acesse:
https://www.youtube.com/watch?v=v6P68KXeBy4
TEXTOS E FOTOS:  IZABEL LIVISKI (todos os direitos reservados)

                                                                         ***

ROBERT FRANK, O FOTÓGRAFO BEAT…

Robert Frank extraiu da América um poema triste diretamente para a película, cravando seu nome entre os grandes poetas trágicos do mundo”. (Jack Kerouac para o prefácio da primeira edição do  livro The Americans (“Les Americains”de 1958).

Fotografia e Sociologia nasceram quase simultaneamente no século XIX, e embora percorrendo trajetórias distintas, têm grande relação entre si, pois a fotografia serviu de ferramenta de análise social desde cedo, nas mãos dos primeiros fotógrafos que construíram a sua história.

Como exemplos,  Lee Frielander e Garry Winogrand que fotografaram comportamentos no espaço público como exemplos de fotógrafos que se dedicaram a abordar algumas das grandes questões da Sociologia, tratados nas obras de Georg Simmel e de Erving Goffman.

Também Robert Frank usou sua câmera no projeto de conhecimento da sociedade norte-americana, contribuindo para a visão “fraturada da sociedade americana”. Frank viajou pelos EUA entre 1955 e 1956, retratando as suas mais profundas contradições como discriminações raciais e desigualdades sócio-econômicas contrastando com os símbolos do patriotismo americano. Como se pode observar em suas fotos abaixo:

Obviamente seu trabalho foi muito mal recebido pelos norte-americanos, já que colocava a nu as questões mais candentes da sua sociedade. Em seu projeto, o fotógrafo refletiu as influências dos trabalhos de cientistas sociais como Tocqueville, Margaret Mead e Ruth Benedict.

Filho de judeus, Frank nasceu em 1924 em Zurique, na Suíça. Seu pai se tornou sem pátria após a Primeira Guerra Mundial e teve de lutar para conseguir cidadania suíça para Robert e seu irmão, Mandred. Apesar da família estar em segurança durante a Segunda Guerra Mundial, a ameaça nazista afetou Frank profundamente — e seu interesse por fotografia nasceu da vontade de expressar este sentimento. Para escapar do foco em negócios característico de sua família, treinou com alguns fotógrafos e designers até criar seu primeiro livro de imagens feito à mão, com 40 fotos (1946).

Um ano depois, Frank emigrou para os Estados Unidos. Foi morar em Nova Iorque, onde conseguiu um emprego como fotógrafo na Harper’s Bazaar, que logo deixou para viajar pelos continentes europeu e sul-americano. Retornou aos EUA em 1950, ano em que conheceu Edward Steichen, com quem participou da exposição coletiva 51 American Photographers no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) e se casou com a artista Mary Frank (antes Mary Lockspeiser), com quem teve dois filhos, Andrea e Pablo.

Ainda que sua visão inicial da sociedade e da cultura norte-americana fosse otimista, sua perspectiva mudou quando entrou em confronto com o acelerado ritmo de vida do país — o que interpretou como uma valorização exagerada do dinheiro. Frustrado, também, com o controle exagerado dos editores sobre seu trabalho, ele passou a ver os Estados Unidos como um lugar triste e solitário, o que se tornou evidente em sua fotografia.

Permaneceu viajando, mudou-se com sua família para Paris por um breve período e, em 1953, começou a trabalhar como jornalista freelancer para revistas como Vogue, Fortune e McCall. Sua parceria com fotógrafos como Saul Leiter e Diane Arbus fez com que se tornasse parte do movimento de vanguarda que a curadora Jane Livingston classificaria como “The New York School”.

Em 1955, sob influência do fotógrafo americano Walker Evans, que registrou os efeitos da Grande Depressão de 1929 no país, Frank conseguiu uma bolsa para viajar pelos Estados Unidos e fotografar todos os estratos de sua sociedade. Visitou cidades como Detroit, Miami, Reno, Utah e Chicago, quase sempre acompanhado de sua família. Ao longo de dois anos, e sempre de carro, tirou mais de 28 mil fotos. Oitenta e três delas foram selecionados para o livro The Americans.

O fotógrafo passou a ser atraído não simplesmente por objetos e personagens concretos (bandeiras, cowboys, motociclistas, jukeboxes…), mas pelo sentimento que esses transmitiam. O que o atraía em hotéis era a solidão, a melancolia das luzes noturnas, o isolamento das pessoas sentadas em paradas de ônibus. Suas fotos, embora muitas vezes passem a idéia de movimento, são imagens estáticas, congeladas, de personagens imóveis. Recurso, segundo Frank, essencial para uma boa fotografia: “A foto é tanto mais interessante quando nos faz pensar no que aconteceu antes e no que acontecerá depois.

Com a publicação, Frank se tornou um dos principais artistas visuais a documentar a cultura Beat. No retorno a Nova Iorque, conheceu Kerouac e Allen Ginsberg, afinado com seu interesse em registrar as tensões entre o otimismo da década e a realidade norte-americana, cheia de contrastes como as diferenças entre classes e as tensões raciais. Frank captou essa ironia com imagens contrastadas e enquadramentos e focos pouco tradicionais.

Na época do lançamento da obra, Frank abandonou a fotografia para se concentrar em fazer vídeos. Em seu portfólio está o curta Pull My Daisy (1959), escrito e narrado por Kerouac e estrelado por Ginsberg e outros poetas. Seu filme mais famoso é Cocksucker Blues, um documentário sobre a turnê mundial dos Rolling Stones de 1972. Quando viu o resultado, Mick Jagger falou: “É um filme muito bom, Robert, mas se você mostrá-lo nos Estados Unidos, nunca mais vai poder entrar no país novamente”.

Robert Frank faleceu no ano passado, em setembro de 2019, e em seu legado consta a contribuição que deu ao Movimento Beat, cruzando os Estados Unidos com Jack Kerouac que foi um de seus companheiros da viagem à Flórida, em 1958.

O fotógrafo e curador Jim Casper fez o seguinte comentário sobre a frase de Kerouac que abre esta edição: O texto do mais icônico escritor da Geração Beat complementa perfeitamente as imagens, ainda que forte e poderoso, é triste e inocente, como o Jazz dos anos 1950.

É sempre a reação instantânea a si mesmo que produz uma fotografia.” (Robert Frank)

Referências:
FERRO, Lígia (2005), “Ao encontro da sociologia visual” in Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º 15, pp. 373-398.

 

 

Izabel Liviski é Fotógrafa e Professora, doutora em Sociologia pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e da Cultura, e Relações entre a Literatura e Linguagens Visuais.  Escreve a coluna INcontros desde 2009 e é também co-editora da Revista ContemporArtes.

A TORRE DE BABELÔNIA (Afonso Guerra-Baião)

Vencida a última duna do deserto, chegou a Babelônia a caravana dos mineiros que iam perfurar a abóbada celeste. Desapeados dos camelos e dos dromedários, os homens descarregaram as ferramentas do lombo dos onagros e se dirigiram para o acampamento ao pé da Torre. Lá se confraternizaram com os pedreiros que tinham terminado sua construção, depois de séculos de trabalho e gerações de trabalhadores.

Afinal a Torre ultrapassara as esferas concêntricas de cristal sobre as quais giravam, ao redor da Terra, as estrelas e os planetas. Erguida para além dos astros, a Torre alcançara a abóboda celeste, que cabia agora aos mineiros perfurar. Convocados para o supremo desafio, dependia deles a realização do sonho último dos homens: adentrar os campos do Senhor.  No acampamento ao pé da Torre, nos preparativos para os meses de escalada, Aegon, o chefe dos mineiros, conversou com um dos sábios que os assistiam.

– Porventura, não será contrário ao desígnio divino esse avanço para além dos limites do degredo terrestre? –  perguntou Aegon.
– Devemos usar os talentos que o Senhor nos deu, para ir ao seu encontro – respondeu o sábio.
– Ainda assim, a volta ao paraíso perdido, não significa um desafio à Lei?
– O ser humano foi feito para buscar o paraíso.

Aegon e seus mineiros escalaram a Torre de Babelônia, degrau por degrau, ao peso das ferramentas com que, pela primeira vez, escavariam para cima. Pelos postigos e ventanas, eles viam a cidade, os campos e os desertos como formas cada vez mais distantes, progressivamente diluídas nas névoas, até que tudo foi encoberto pelas nuvens. Meses depois, no cume da Torre, os mineiros tocaram com as mãos o cristal de gelo da abóbada, pouco acima de suas cabeças.

Começaram com pequenas perfurações e foram aumentando o túnel, primeiro verticalmente, depois abrindo galerias horizontais. Sempre escavando, para cima e para os lados, os mineiros deixaram a Torre e enveredaram pelo mundo de cristal da abóbada, através da rede de passagens, do labirinto de túneis que produziam com incessante trabalho. Muito próximos no começo, os mineiros foram se dispersando, cada um ampliando uma ala, aprofundando um corredor, até que pouco se viam ou se falavam.

 

Ilustração: Igor Morski

 

Assim, avançado na perfuração de um duto, Aegon sentiu que encontrara o ponto fulcral, a passagem que todos buscavam no cristal gelado da abóboda. Soube disso quando um bloco cedeu e ele viu a luz do sol depois de tanto tempo. Esgueirou-se pelo buraco e saiu ao ar livre, pisando em chão de areia e terra; viu o verde das palmeiras, sentiu a brisa que as balançava, bebeu da límpida água de um oásis.

Descansava ali, à sombra, antes de voltar para chamar os companheiros, quando ouviu um tropel e depois vozes. Uma caravana chegava. Os homens corriam para os poços, bebiam, enchiam os odres, davam água às montarias e aos burros de carga. Então, ao ver Aegon, um deles, que parecia ser o chefe, lhe perguntou:  

– Seu camelo morreu? Quer juntar-se à nossa caravana? 

– Para onde vão? – perguntou o mineiro.
– Vamos trabalhar na construção da Torre.
– Que torre? – indagou atônito Aegon.
– Então não sabe? A Torre que vai dar no céu!

P.S. Escrevi esta narrativa como paráfrase a um conto de Ted Chiang, que faz parte do livro “História de sua vida e outros contos” (Editora Intrínseca), cuja leitura aproveito para recomendar.

*Afonso Guerra-Baião, é professor, escritor e tradutor. Publicou recentemente SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, Aldrava Letras e Artes, Mariana, 2019.

MULHERES QUE ESCREVEM POESIA

A Sala Leituras do Brasil do UniBrasil Centro Universitário recebeu no final de outubro, o lançamento do livro “Palavra de Mulher: Poesia”. A sala, que orgulha a instituição com sua bela coleção de obras de arte, recebeu muitas das autoras que tiveram suas obras publicadas no livro, e doze delas encantaram fazendo a leitura de seus poemas.