Entre o Tempo da natureza e o Tempo do mercado: a disciplina de trabalho entre costumes e dinâmica da produção dos lavradores de Itaocara

Gabriel Câmara Ramos e José Ramos

Gabriel Câmara nasceu no município de Itaocara no ano de 1995 e passou toda sua vida na zona rural deste. Em sua infância, observava seu avô e demais familiares trabalhando e notava o quanto eram árduas as tarefas no dia-a-dia do campo. Começou a trabalhar efetivamente na lavoura de legumes aos 18 anos de idade, mas desde os 11 já auxiliava seu pai em algumas tarefas.

Concluiu o ensino médio no ano de 2013, iniciando sua graduação de licenciatura em História no ano de 2014, na Universidade Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes.

Sempre gostou muito de escutar as estórias que seu avô conta do período de sua juventude, relatando diversos aspectos e relações sociais que sofreram transformações ao longo do tempo.

Destas, o que mais lhe chamou a atenção foi o trabalho, que com um olhar crítico que está adquirindo em sua graduação, pôde notar de como o surgimento da lavoura de legumes em seu município mudou a relação de tempo e trabalho do homem do campo, o que o levou escrever o presente artigo.

Seu avô, companheiro de vida e trabalho, José Ramos, nasceu em Conceição, zona rural pertencente ao município de Itaocara, no ano de 1939. Filho de Leonardo Ramos e Maria José Geraldo Ramos, teve 11 irmãos, sendo criado por seus pais com grandes dificuldades, em uma época cuja zona rural tinha pouca assistência médica, financeira, educacional, entre outras.

Estudou até a 4ª série primária, começando a trabalhar aos 11 anos de idade com seu pai. Já aos 15 anos, junto com seu irmão Luiz, passou a trabalhar para outros, dando todos seus pagamentos a seu pai, a fim de ajudar a custear as despesas da casa.

Depois de casado, trabalhou como  “colono”, espécie de contrato entre um plantador e proprietário de terras, onde este recebia a metade da produção como forma de pagamento pelo arrendamento do terreno.

Teve cinco filhos, e todos eles os auxiliaram em seus serviços na roça, onde dois destes permanecem na zona rural como agricultores. Com aproximadamente 55 anos de idade, passou a plantar lavoura de legumes, que iria mudar a sua percepção de tempo e trabalho.

 

Entre o Tempo da natureza e o Tempo do mercado: a disciplina de trabalho entre costumes e dinâmica da produção dos lavradores de Itaocara

 

Gabriel Câmara Ramos

                                                Graduando em História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense ( Campos dos Goytacazes/ RJ)

 

Não busco tratar aqui de uma transição de uma forma de trabalho não capitalista para uma capitalista, mas sim como a intensificação desta última pode interferir nas relações de trabalho e noção de liberdade de uma pessoa ou determinado grupo. Para tratar de tal assunto, usarei exemplos de minha família e vizinhos.

Ao fazer uma entrevista com José Ramos, meu avô, nascido no ano de 1939, trabalhador rural e residente do município de Itaocara, eu pude perceber alguns pontos que podem ser relacionados com o livro “Costumes em Comum” de Edward Palmer Thompson especificamente o sexto capítulo: “Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial”.

Discutindo com meu avô como se dava as relações de trabalho antes do advento da lavoura de legumes, que segundo depoimentos de alguns produtores surgiu na zona rural do município no início da década de 1980, notei que eram diferentes as relações de trabalho e a percepção de liberdade dos trabalhadores antes deste advento para os dias atuais.

Ao perguntar meu avô o que ele plantava, relatou: “feijão, milho, arroz e cana (cana-de açúcar)” e mencionou que a colheita era feita com “companheiros”, ou seja, era comum as pessoas se ajudarem no dia da colheita. Esta era feita segundo ele a cada seis meses, as pessoas tinham mais liberdade para ajudar o vizinho em sua colheita. Isso vai ao encontro a Thompson, que relata:

“A atenção ao tempo de trabalho depende em grande parte da necessidade de sincronização do trabalho. Mas na medida em que a manufatura continuava a ser gerida em escala doméstica ou na pequena oficina, sem subdivisão complexa dos processos, o grau de sincronização exigido era pequeno, e a orientação pelas tarefas ainda prevalecia.”  (THOMPSON; 1998, p.280)

Nos dias atuais, é comum o plantio de legumes, como tomate, pimentão, quiabo, jiló entre outros. Verifica-se que o sistema de parcerias ainda existe, no entanto não mais na época da colheita, já que essa acontece duas vezes por semana, onde os produtos são levados ao mercado de produtores conhecido como “Ponto de Pergunta”[1]. Cada produtor fica em sua lavoura no dia da colheita, trabalhando de forma mais intensa para conseguir levar a tempo seus produtos para serem comercializados.

Thompson também menciona que era comum antes do surgimento da indústria moderna os artesãos não trabalharem na segunda-feira. “A Santa Segunda-Feira parece ter sido observada quase universalmente em todos os lugares em que existiam indústrias de pequena escala, doméstica e fora da fábrica.” (THOMPSON, 1998, p.283).

Observei aí algumas semelhanças no depoimento do meu avô, que relatou que era comum não trabalhar nos dias santos e nem domingos, já que o trabalho não exigia tanto. Contudo, atualmente a lavoura de legumes requer o comprometimento todos os dias, aonde muitas vezes os produtores rurais trabalham no domingo para poderem comercializar seus produtos na segunda-feira.

A forma de trabalho capitalista, com horários de chegada e saída, também modificaria o cotidiano deste grupo de lavradores, influenciando a rotina dos “camaradas”, que trabalham a dia, sem a necessidade de vínculo empregatício. A exigência de pontualidade e demarcações para os horários de chegada e saída, e também horário de almoço, substituíram os antigo costumes de acompanharem o “tempo da natureza”: de acordar ao alvorecer e ir para a roça, obedecendo aos apelos do corpo à alimentação e ao descanso após o “almoço” e ao fim do dia, com o “cair do sol”.

As relações de trabalho reguladas pela legislação alcançariam, em condições de vinculação não regular, a relação pessoal entre o trabalhador que vende sua força de trabalho e aquele que dispõe dos meios de produção nesta localidade. Como exemplo, cito um caso familiar:  Um camarada que trabalhou para meu pai, ao continuar trabalhando depois das 17h, horário geralmente de saída, perguntou quem iria pagar sua hora extra. Meu avô relatou que era comum os camaradas largarem não às 17h, mas às 18h. Observa-se que não se trata de apenas uma hora a mais, pois geralmente às 18h esta anoitecendo, ou seja, eles não tinham hora para sair, só quando não mais tivesse a luz do sol. Thompson menciona que os trabalhadores aprenderam a fazer exigências e greves pelo pagamento.

O que se percebe na localidade rural em análise é que as mudanças das relações de trabalho, embora integradas pelo mercado e pela legislação trabalhista, ainda estão diluídas entre os antigos costumes que se valem das relações pessoais e das redes de sociabilidade (parentescos, compadrios, amizades e confianças) e a impessoalidade das relações capitalistas de produção.

Como mostra Thompson, no capítulo de referência para este estudo, a primeira geração de trabalhadores nas fábricas aprendeu com seus mestres a importância do tempo; a segunda formou os seus comitês em prol de menos tempo de trabalho no movimento pela jornada de dez horas; a terceira geração fez greves pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual adicional (1,5) pelas horas trabalhadas fora do expediente. Eles tinham aceito as categorias de seus empregados e aprendido a revidar os golpes dentro desses parceiros. Haviam aprendido muito bem a sua lição, a de que tempo é dinheiro. (THOMPSON; 1998, p.294)

Conclui-se que o sistema capitalista impacta e pode gerar mudanças na forma de trabalho. Assim como o advento da indústria moderna provocou mudanças nas relações de trabalho e de vida dos ingleses do século XVIII, a lavoura de legumes gerou mudanças nas relações de trabalho e percepção de liberdade dos trabalhadores do município de Itaocara. Houve uma intensificação no ritmo de trabalho. Guardadas as distinções culturais/religiosas, que, em regiões rurais de Itaocara, preserva o catolicismo tradicional, todos estão aprendendo a lógica do que Weber chama de “Espírito do Capitalismo”, de que o tempo deve ser convertido em dinheiro.

Conclui-se, ainda, que Tempo e Disciplina não, necessariamente, submetem-se à ditadura do relógio mecânico, já que o costume de obedecer ao tempo da natureza manteve coeso o grupo de trabalhadores, que, sob condições diversas, incluíam em seus calendários, o tempo de trabalho coletivo, o de ajuda mútua na época das colheitas.

 

Referências bibliográficas:

THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial IN Costumes em comum. Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

[1][1] A localidade Ponto da Pergunta, no município de Itaocara, já abrigou o Instituto Brasileiro do Café, em meados do século XX, dada a importância da produção do fruto na região. Atualmente, a localidade abriga um mercado onde os lavradores locais vendem seus produtos frescos.

Professora Doutora do Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (LEIT) e do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA). Membro do Grupo de Estudos do Integralismo (GEINT).

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