Macunaíma nas malhas da civilização (parte I)

No ano de 1928, Mário de Andrade, publicou a sua obra em prosa mais reconhecida: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Esse romance foi um marco na história do Modernismo e da Literatura Brasileira em virtude de apresentar o elemento nacional, valorizado pelo Movimento Modernista.

Fruto de anos de pesquisa de mitologia, folclore nacional, estudos sobre a linguagem do povo brasileiro, Macunaíma foi e é, até hoje, muito estudado por tratar-se da obra prima do autor, “uma narrativa de estrutura inovadora, ao nível do enredo, da caracterização das personagens e do estilo” (LAFETÁ, 2000, p.). Classificado, pelo próprio Mário de Andrade, como uma rapsódia, por apresentar uma base melódica pautada em ritmos folclóricos e populares, a narrativa foi escrita “em seis dias de trabalho ininterrupto, durante umas férias de fim de ano, em dezembro de 1926” (SOUZA, 2003, p.9).

Considerada por Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (2006), como o retrato do povo brasileiro, Macunaíma além de representar a cultura de nossa gente, representa, também, o selvagem que passa pelo processo de civilização.

Assim, na narrativa, como apontam alguns críticos literários, é possível evidenciar dois momentos. No primeiro, Macunaíma é apresentado como o herói de nossa gente, e vive com sua mãe e seus irmãos, Maanape e Jiguê, na margem do rio Uraricoera. Já no segundo momento, Macunaíma parte para a cidade de São Paulo, juntamente com seus irmãos, em busca da Muiraquitã.

Com a morte da mãe de Macunaíma, os irmãos começam a transitar pelo mato: “Macunaíma deu a mão para Iriqui, Iriqui deu a mão para Manape, Maanape deu a mão para Jiguê e os quatro partiram por esse mundo” (ANDRADE, 2004, p.23). No meio dessas andanças, Macunaíma casa-se com Ci, a mãe do mato, e torna-se o Imperador do Mato Virgem. Com essa união nasce o filho encarnado de Macunaíma e Ci. Porém, a criança morre pouco tempo depois, envenenada.

A primeira referência à cidade de São Paulo na narrativa aparece ainda nesse capítulo. Com o nascimento do filho, Macunaíma, em período de repouso, batia na cabeça do filho todos os dias e falava: “_ Meu filho, cresce depressa pra você ir para São Paulo ganhar muito dinheiro” (ANDRADE, 2004, p. 28). Ainda no capítulo III a cidade paulistana aparece como centro de comércio, foi lá que mandaram buscar os sapatinhos de lã para o filho de Macunaíma.

Já no IV capítulo, quando Macunaíma toma conhecimento que a muiraquitã se encontrava “na cidade macota lambida pelo igarapé Tietê” (ANDRADE, 2004, p.23), com o peruano Venceslau Pietro Pietra, o herói decide deixar a mata virgem e parte para São Paulo com seus irmãos, Maanape e Jiguê, para recuperar a pedra.

A partir desse momento inicia-se a segunda parte da narrativa e a possibilidade da interferência direta, pelo espaço industrializado, na identidade de Macunaíma. Ao deixar o Mato-Virgem, onde sua cultura ainda não era ameaçada pela civilização, e partir para a cidade de São Paulo, os personagens sofrem um estranhamento devido à diferença cultural existente entre os índios Tapanhumas e os paulistanos. Esse fato é evidenciado, principalmente, nos capítulos V e IX.

No capítulo V acontece o primeiro contato de Macunaíma com o “homem branco”. Ao chegar na cidade, Macunaíma “brincou” com três cunhãs e gastou, com tal fato, a quantia de quatrocentos bagarotes. O herói não imaginava a possibilidade de “comprar brincadeiras”, algo impensável no mato-virgem.

Depois desse episódio, Macunaíma estava com a “inteligência perturbada”, confuso no meio da vida agitada da cidade grande:

“Que mundo de bichos! Que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da mandioca!… A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiados sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjeta postes chaminés… Eram máquinas aparecem e tudo na cidade era só máquina! (ANDRADE, 2004, p.23).

 

Esse excerto faz alusão à modernização pela qual passava a cidade de São Paulo no início do século XX, além da sociabilidade do sujeito habitante da metrópole que sofre influência direta dessa transformação, evidenciando o poder da máquina sobre os homens, como observado por Macunaíma.

No início do século XX, São Paulo passou por mudanças dinâmicas e essas estão presentes na cidade da qual nos fala Mário de Andrade em seus poemas, romances, crônicas, cartas e na obra em questão. O processo intenso de urbanização e industrialização modificou o espaço urbano paulistano e, consequentemente, suscitou novos comportamentos e sensações no homem que habitava esse espaço.

Os elementos do mundo moderno, como os automóveis, as luzes, as fábricas, os arranha-céus; ao mesmo tempo em que surgem como inovadores, deslumbrantes, originam a presa, o cansaço, a agitação, a luta pelo dinheiro, a competição, a divisão de trabalho, etc., que são imposições, muitas vezes, cruéis e inexistentes no mato-virgem. Todavia, agora vivenciando uma sociedade urbana moderna, Macunaíma se vê obrigado a aceitar e viver em consonância com tal realidade. Para isso, ele se torna um “malandro” submetendo-se a situações exclusivas do mundo capitalista.

Ademais, os novos costumes da vida moderna, estavam sendo aceitos sem contestação pelos moradores da urbe, pois como ressaltou Georg Simmel (1979, p.15), os elementos do mundo moderno “são introduzidos à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana”, e possuem relação direta com a economia monetária, sistema sem o qual o sujeito moderno não poderia viver.

Corroborando com essa premissa, no capítulo IX, Carta para Icamiabas, Macunaíma escreve uma correspondência, destinada às senhoras Amazonas, relatando alguns acontecimentos de São Paulo. Esse capítulo, um dos principais momentos da obra, condensa as percepções do contato de um habitante, até então, não familiarizado com o modo de vida capitalista por meio de um gênero textual comum e recorrente na vida do escritor de Macunaíma: a epistolografia.

É doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, graduada em Letras pela mesma instituição. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e Sociedade, Literatura e espaço urbano e poesia brasileira.

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