Em sua Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido, ao tratar de O Uraguai, afirma ser esta obra a mais importante para a formação da nossa literatura, pois Basílio é o primeiro árcade a substituir os pastores virgilianos das arcádias pelos indígenas brasileiros. A particularidade desse poemeto deve-se ao fato de o poeta árcade organizar a obra, dividindo-a em dois planos complementares, isto é, os versos e as notas como parte integrante da composição. Como afirma o crítico, isso faz com que se desenvolva uma complexa obra no plano dos intuitos e das diretrizes, e uma simplificação no plano da textura.
Logo, o elemento ideológico é reservado para as notas, garantindo com que o poemeto seja leve e brilhante em uma versificação pura. Tal escolha revela a incapacidade épica, tornando a obra no que Candido define como uma écloga heroica, devido às três características que marcam os versos: a lírica, a heroica e a didática. Como écloga a obra se estrutura em canto dialogado entre pastores personificados pelo exército misto de Espanha e Portugual e citadinos, personificados pelos guerreiros indígenas. O assunto do poema é a expedição mista entre portugueses e espanhóis contra as missões jesuíticas do Rio Grande para executar as cláusulas do Tratado de Madrid em 1756.
Embora a motivação temática seja o combate à presença jesuítica nas terras brasileiras, a trama narrativa se estabelece entre soldados europeus e guerreiros indígenas. Influenciado pelos filósofos do Iluminismo e defensor do governo de Marquês de Pombal, Basílio constrói essa obra com clara intensão política de propagar os ideais da ilustração, fazendo evidenciar na figura de Pombal o déspota esclarecido capaz de expulsar o jesuitismo e com eles as trevas da ignorância propagada pela Companhia de Jesus. É nesse sentido que, como observa José Guilherme Merquior, em sua Breve História da Literatura Brasileira, se manifesta o confronto civilização/natureza marcada por várias notas que manifestam a simpatia primitivista pelo selvagem e evidencia a motivação ilustrada de O Uraguai (MERQUIOR, 2014, p. 88).
Já se tornou lugar comum na crítica literária brasileira evidenciar a motivação ilustrada dessa obra. Interessa-nos perceber como Basílio da Gama constrói a personagem do índio com base na ilustração francesa. Para tanto, seguimos a análise de Sérgio Paulo Rouanet, em seu artigo Basílio da Gama e a Ilustração, pelo trabalho cuidadoso com que o crítico faz evidenciar os elementos literários da obra que manifestam essa motivação. Segundo ele, a língua ilustrada se estrutura a partir de dois princípios: a racionalidade e a universalidade.
O primeiro princípio – a racionalidade – manifesta-se por meio da metáfora da luz combatendo as trevas e se manifesta na obra desde a epígrafe retirada do oitavo canto de Eneida. Em um primeiro momento, a luz é representada pelo exército de portugueses e espanhóis, enquanto que os Jesuítas representam as trevas. Nesse dualismo, o papel dos índios é, conforme Rouanet, perturbar o esquema dualista do Iluminismo, o que se evidencia tanto no momento em que Cacambo põe fogo na floresta para escapar do exército, quanto na morte de Lindoia em que a noite se manifesta como consoladora.
O segundo princípio – a universalidade – manifesta-se pela abstração que determina a atmosfera da obra, isto é, a imprecisão do nome do rio que dá título à obra, a indeterminação dos índios, a abstração da natureza, o que se evidencia pela ausência dos nomes dos lugares em que se dá a batalha. Toda essa indeterminação possibilita a manifestação de alguns tópicos ilustrados no poema como a condenação da tirania, a defesa do pacifismo e, portanto, a condenação da guerra, o anticlericalismo e o pró-indigenismo. Esses tópicos contribuem para a estruturação da obra ligada à perspectiva iluminista desse período.
Conforme observa Rouanet, o pró-indigenismo corresponde na filosofia da Ilustração a duas vertentes: a primeira é a que idealiza o selvagem, considerando-o superior ao civilizado e tem na filosofia de Rousseau sua melhor expressão e defesa; a segunda, identificada como antiprimitivista, parte do pressuposto da superioridade do europeu e defende tutelar o indígena como forma de defender seus direitos e tem em Voltaire seu melhor defensor. Ambas compartilham de uma mesma perspectiva que é a de condenar as barbaridades praticadas contra os indígenas pelos europeus. Em um primeiro momento, parece manifestar-se na obra de Basílio a primeira vertente, uma vez que o poemeto louva a coragem e a lealdade dos índios guerreiros. Contudo, esse louvor não é para afirmar uma pretensa superioridade, mas para mostrar que eles não são inferiores aos brancos, evidenciando uma inovação da perspectiva pró-indigenista da obra, isto é, Basílio da Gama não é nem primitivista, nem antiprimitivista, mas igualitário.
A tese da igualdade manifesta na obra se evidencia a partir de dois elementos narrativos: a da valentia dos índios e dos brancos demonstrada nas cenas das batalhas e a igualdade racional entre eles narrado no momento que antecede a batalha em que há um debate entre o general Andrade e os índios guerreiros Cacambo e Sepé. A tese da igualdade como elemento inovador na obra O Uraguai e que faz com que Basílio construa seu índio ilustrado em condições de paridade com o europeu resulta, conforme observa Rouanet, no igualitarismo absolutista de Marquês de Pombal, cujo princípio visa irmanar índios e brancos na condição de súditos submetidos ao poder paternal de um soberano severo, mas justo: o déspota esclarecido.